POST ELEITO
por: Saul Leblon do site Carta Maior
Uma agenda acima das urnas inclui a independência do BC, emenda a responsável pelo seu programa de governo, a Neca do Itaú.
Foi um mal entendido, justificou Marina.
É possível.
Mas não há mal entendido no que acaba de anunciar a coordenadora de programa do PSB, Neca Setúbal.
Uma das donas do Itaú –espécie de Banco Central tucano— Neca avisa que num eventual governo marineiro será implantada no país uma das teses mais caras ao neoliberalismo duro: a independência do Banco Central.
Ao experiente repórter da Folha, a quem confiou a diretriz estratégica, não ocorreu perguntar à herdeira do Itaú em relação a quem, ou a quê, destina-se a independência mais valorizada que a do próprio país.
Quantos dentro do PSB e entre os recém seduzidos pela imagem pura e firme de Marina sairão à medida em que a plataforma made in Itaú for, aos poucos, esclarecida?
A nova coordenadora de campanha da ex-ministra, por exemplo.
O que a respeitável, coerente e combativa ex-prefeita, Luiza Erundina, acha disso?
Não é fácil opor-se às santidades.
Por duas vezes Lula esteve a ponto de demitir Marina Silva de seu ministério. Ao final das audiências o ex-Presidente deixava o gabinete balançando a cabeça para desabafar com os auxiliares mais próximos:
‘Como é que eu posso demitir uma santa?’
Marina fala como santa. Veste-se como uma. Sobretudo, acha que é predestinada pela providência divina.
Marina ficou no ministério de Lula até sair por conta própria no dia 13 de maio de 2008.
Alegou que não se sentia mais em condições de preservar a coerência de seus ideais e princípios no âmbito de um governo de coalizão imantado de inegáveis contradições.
Não se diga que a posição é descabida.
O espaço da coerência histórica num sistema político em que o Presidente é refém de um Congresso no qual a bancada ruralista conta com 162 deputados e a dos trabalhadores rurais inclui dois representantes, está longe de ser razoável.
Marina não compactuou com o constrangimento de uma correlação de forças difícil, muitas vezes regressiva.
E para onde foi Marina?
Foi sentar-se à direita da santíssima trindade dos mercados.
Em rumoroso encontro a portas fechadas com banqueiros, em outubro do ano passado, a ex-ministra ,segundo o bem informado Valor Econômico (14/10/2013), explicitou pela primeira vez, de forma clara, o seu cuore independente do constrangimento petista.
Conforme relato de investidores que estiveram no evento, ouvidos pelo Valor, a agora candidata do PSB disse então para gáudio da banqueirada: a) o tripé “ficou comprometido e é preciso restaurá-lo’; b) o ‘expansionismo fiscal adotado pelo governo Dilma’deve ser revertido em superávits primários “expressivos, sem manobras contábeis’; c) o câmbio ‘deve voltar a flutuar livremente’.
Por aí afora.
Não foi um arroubo apenas para agradar plateias afins, como indica a senhora Neca Setúbal na Folha desta sexta-feira. Era uma oferta ao desfrute do dinheiro grosso.
Em resumo, afinal livre dos constrangimentos petistas, a ex-senadora revela-se uma convicta defensora do sacrossanto ‘tripé’.
Que vem a ser uma espécie de enforcador à distância. Sendo o pescoço, a sociedade. E os mercados, a mão que controla a correia.
A coleira tacheada permite que o dinheiro grosso submeta governos, partidos e demais instâncias sociais a um comando de desempenho monitorado por três variáveis.
A saber:
I) regime de metas de inflação– ancorado no chicote dos juros ‘teatrais’, se necessário, como asseverou a nova cristão do monetarismo à banqueira embevecida com o intercurso entre ecologia e rentismo.
II) câmbio livre — leia-se, nenhum aroma de controle de capitais; vivemos, afinal, em um período de pouca volatilidade e incerteza global mínima…
III) o superávit ‘cheio’ – o nome honesto disso, convenhamos, é arrocho fiscal: corte de investimentos públicos estratégicos para garantir o prato de lentilhas dos rentistas.
Marina descobriu ali que quando abre a boca encanta os banqueiros.
Pudera.
O que sai de seus lábios é música aos ouvidos sensíveis do capital a juro.
Nas palavras da ex-senadora –sempre segundo o credenciado Valor– trata-se agora de buscar ‘uma agenda que não mude porque mudou o governo’.
Uma agenda independente das urnas?
Escavar um fosso entre a representação política da sociedade e o seu poder efetivo de alterar os rumos da economia é tudo o que as plutocracias almejam, urbi et orbi.
Incluir o Banco Central independente no programa de governo é um sinal de que a coisa é para valer.
Se alguém é capaz de tratar esse estupro com leveza e sedução, como resistir?
‘Impressionante’ ; ‘cativante’, disseram clientes endinheirados do Credit Suisse , banco que patrocinou o mencionado encontro a portas-fechadas com a ex-ministra .
Desdenhar dos partidos e entregar o destino da sociedade a uma lógica que se avoca autossuficiente e autorregulável é com eles mesmos.
O principal assessor de Marina para assuntos econômicos, Eduardo Gianetti da Fonseca, acaba de reforçar essa embocadura histórica.
Desprendido, Gianetti reiterou em encontro empresarial, na semana passada, que entre ele e Armínio Fraga –o centurião ortodoxo que tutela Aécio Neves– não há nenhuma diferença substancial de conteúdo.
Às favas a terceira via.
Dias depois, o mesmo tutor de Marina debulharia as razões pelas quais considera os economistas da Unicamp uma espécie de contrapartida acadêmica da ditadura militar –o denominador comum seria a resistência ao Estado mínimo neoliberal (leia a resposta educada de um punhado de mestres da luta pela desenvolvimento brasileiro nesta pág)
Quem ouve Marina, Gianetti e Neca do Itaú acha mesmo que o problema do Brasil é a dupla dissonância histórica representada, hoje, pela Unicamp e o PT; antes, por Vargas e os desenvolvimentistas, depois, por Jango, Celso Furtado e a república sindicalista’…
Não fosse a mão dura da Dilma – ‘ela fala como homem, bate na mesa’, reclama Neca do Itaú– o país estaria liso e pronto para decolar.
Falta só Marina assumir o manche e dar o start.
Embora martelada diuturnamente pelo jogral do Brasil aos cacos, a tese é controvertida.
O relevo econômico brasileiro, na verdade, inclui-se entre as encostas mais acidentadas pela ação secular de predadores ora cativados pela heroína verde – e a metáfora cromática aqui nomeia mais de um sentido.
Os ouvidos para os quais as palavras de Marina, Aécio, Neca do Itaú, Gianetti e Armínio soam como música –assim como soavam as de Palocci, em 2003– sabem que drenar cerca de R$ 200 bilhões em juros de um organismo social marcado por carências latejantes de serviços e infraestrutura não é politicamente palatável.
Sustentável, na chave de Marina.
O valor refere-se ao gasto médio do país na rubrica de juros pagos aos rentistas da dívida pública (nas três esferas da federação) nos últimos anos .
Representa uns 5% do PIB. Mais de dez vezes o custo do Bolsa Família, programa que beneficias 55 milhões de brasileiros.
Ou quatro vezes o que supostamente custaria a implantação da tarifa zero no transporte coletivo das grandes cidades brasileiras.
Ou ainda dezoito vezes mais o que o programa ‘Mais Médicos’ deve investir até 2014, sendo: R$ 2,8 bilhões para construir 16 mil Unidades Básicas de Saúde e equipar 5 mil unidades; ademais de R$ 3,2 bilhões para obras em 818 hospitais e aquisição de equipamentos para outros 2,5 mil, além de R$ 1,4 bilhão para obras em 877 Unidades de Pronto Atendimento.
Repita-se: daria para fazer isso 18 vezes com o que se destina ao rentismo em um ano. Hoje o Mais Médicos já atende cerca de 50 milhões de brasileiros.
O ponto é: como Marina que se avoca herdeira dos votos da ‘ insatisfação da sociedade civil’, pretende lidar com essas assimetrias descomunais, apoiada na defesa do ‘tripé’ –se preciso cometendo ‘juros teatrais’, diz ela?
“Se o tripé ficou comprometido, é preciso restaurá-lo”, sentenciou quase mística aos cliente do Credit Suisse em rota de levitação.
Ao abraçar a utopia neoliberal, sem abdicar da santidade, Marina aspira ser uma pluma imune ao atrito que contrapõe os interesses populares aos da elite brasileira.
A dúvida é saber por quanto tempo a pluma pode pairar acima da história.
É uma boa pergunta à coerência de Luiza Erundina.
A combativa socialista sabe que por trás da neutralidade das plumas esconde-se a bigorna em cima da qual poderosos interesses submetem povos, nações e governos às marretadas impiedosas do dinheiro.
Há um tipo de neutralidade que só enxerga os erros da esquerda.
E costuma rejuvenescer o cardápio da direita, sempre que esta se ressente de espaços e agendas para disputar o poder.
O ziguezague entre a forma e o conteúdo de Marina reflete a dificuldade histórica dessa agenda.
O ambientalismo de Marina terá que decidir se quer ser um guia de boas maneiras para o ‘capitalismo sustentável’, que encanta o público da Casa do Saber –espaço de tertúlias dos endinheirados que se cultivam em SP; ou um projeto alternativo à lógica desenfreada da exploração da natureza e do trabalho?
Não são escolhas postergáveis.
Ignorar as urgências sistêmicas escancaradas pela desordem capitalista, desde 2008, equivale a adotar como bússola o oportunismo.
O oportunismo acredita que pode transitar entre leões famintos sem ser notado.
Marina quer levar o Brasil a esse safári desconsiderando a determinação das mandíbulas do capital financeiro em devorar a natureza , a economia, a sociedade e a civilização em nosso tempo.
Negligenciada pelos adeptos da ‘terceira via’, ou melhor cortejada por eles, a supremacia das finanças desreguladas condiciona todo o cálculo econômico nos dias que correm.
A essa bocarra pantagruélica a gentil Neca do Itaú pretende oferecer a ‘independência do BC brasileiro’, conforme nos informa a Folha desta sexta-feira.
Taxas de retorno incompatíveis com a exploração sustentável dos recursos naturais – de ciclo mais lento e mais longo – constituem o cardápio de engorda desse metabolismo insaciável.
Ele dá as ordens na cozinha globalizada.
Sob a ameaça de migrar para opções especulativas de maior retorno, exige-se a maximização permanente das taxas de lucros, dos juros e dos dividendos — que a Petrobrás insiste em comprimir para investir na exploração soberana do pré-sal.
Dissemina-se assim um padrão de retorno econômico incompatível com a sustentação dos direitos sociais (‘o custo Brasil’), e a preservação dos recursos que formam as bases da vida na Terra.
Que tipo de Estado é necessário para viabilizar essa pilhagem?
Fica claro por que Gianetti atacou a agenda de desenvolvimento preconizada pela Unicamp como tributária do estatismo da ditadura.
O Estado mínimo é a ‘transversalidade’ (para ficar, de novo, na chave de Marina) de uma ‘terceira via’ que se credencia para terceirizar o país aos mercados.
À outrance dessa aposta acomoda-se o jogral verde, que cerra fileiras contra o ‘estatismo da Unicamp’ por ver aí um inimigo do ‘decrescimento’ ambientalmente sustentável.
O tucano André Lara Resende, interlocutor de Marina, ex-presidente do BNDES e protagonista do escândalo da privatização das teles, em 1998, é um dos teóricos desse braço alternativo da terceira via.
Em vez de respostas, a tese do ‘decrescimento’ repõe velhas perguntas dirigidas às utopias centristas.
Quem decidirá o quê, como, quanto e para quem a sociedade vai produzir, ou deixar de produzir no reino do decrescimento?
Como planejar o decrescimento com um Estado mínimo?
Quais critérios definirão o rateio sustentável do uso dos recursos naturais dentro de cada nação e entre as nações?
Como serão superadas as desigualdades históricas acumuladas até então –por exemplo, o patrimônio em cavalos de corrida acumulado pelo cosmopolita Lara Resende terai qual destinação?
A verdade é que a tese do ‘não crescimento’ responde aos desequilíbrios sociais e ambientais tanto quanto a panaceia do crescimento é vendida como sinônimo de desenvolvimento.
A despolitização dos conflitos subjacentes à destinação do excedente econômico é a pátina dessa dupla mistificação.
Em bom português: arrocho ou democracia social?
Ao eximir-se das consequências de sua aliança com o capital financeiro, Marina joga a equação do desenvolvimento brasileiro nos marcos insolúveis da agenda conservadora, a saber: descontrole inflacionário ou juros argentários; arrocho ou estagnação; Estado mínimo ou recessão?
Abstraída a centralidade da democracia social na qualificação do desenvolvimento tudo é possível.
Inclusive transformar a campanha de 2014 num atalho para a restauração de um neoliberalismo ainda mais devastador que a experiência vivida nos anos 90. Agora travestido de econeoliberalismo, à la Lara Resende.
Ou de ambientalismo argentário, à la Neca do Itaú.