Marinho Peres, um sujeito peculiar

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As aventuras do zagueiro da Portuguesa, Santos, Barcelona, Internacional e Palmeiras

Por Walterson Sardenberg, compartilhado de Textos do Berg




Marinho Peres era uma figura única. Peculiar. Sua trajetória foi uma das mais incomuns no futebol brasileiro.

Primeiro porque o zagueiro que morreu dia 18 de setembro, aos 76 anos — sofrera um AVC há quatro anos —, destacou-se ainda muito jovem. Foi um beque capaz de se mandar para o ataque, driblar defesas e marcar tentos antológicos. Já era assim nos juvenis do São Bento de Sorocaba, sua terra natal, em 1965, quando, depois de atuar no meio de campo em algumas partidas, passou a dividir a zaga com outro jogador ousado e com talhe de atacante: Luís Pereira. 

Na Portuguesa de Desportos, a seguir, continuou marcando gols, apoiando o ataque, driblando quando preciso. Era uma equipe ofensiva, com um ataque radiante — Ratinho, Paes, Ivair, Leivinha e Rodrigues. Mesmo assim, a compulsão de Marinho para partir para cima dos adversários não se refreou.

Ele também foi peculiar porque se expressava bem, se interessava por política, tinha uma visão progressista do país e do mundo. Filho de um médico bem-sucedido, firmou um compromisso com o pai: o de cursar uma faculdade, mesmo sendo jogador profissional. Era uma rara opção na época. 

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Ainda nos anos 40 houve Heleno de Freitas, do Botafogo e da Seleção Brasileira. Era formado em direito. Mas Heleno sempre foi um caso à parte, seja pelo futebol esplendoroso, pelo temperamento mercurial ou pela insanidade que o acometeu em seus últimos anos, recolhido a um sanatório em Barbacena (MG), onde morreu, com apenas 39 anos.

Já nos anos 60, alguns jogadores entraram em universidades. Em geral, preferiam um curso novo, o de educação física. Foi o que Pelé escolheu. Mário Peres Ulibarri, o Marinho Peres, resolveu estudar economia, área de imensa flexibilidade de ideias, de Karl Marx a Roberto Campos.

Tostão, outro craque com título universitário, formado em medicina depois de aposentado da bola, conta que numa excursão da Seleção Brasileira, em 1968, ano fervilhante de mudanças no planeta, assombrou-se com o que, naquele período, se chamava de alienação política dos convocados. O único com quem conversava sobre a ditadura militar era Marinho Peres. Sim, o zagueiro que sabia se mandar para o ataque.

Marinho foi peculiar também porque, assim como Tostão, também era craque. Deveria ter sido chamado para a Copa de 70, no México. Não foi. Jogava mais do que Brito e Fontana juntos. O Santos o contratou para ocupar a posição de um zagueiro lendário, o argentino Jose Manoel Ramos Delgado, que completara então 37 anos. Mas a equipe da Vila Belmiro já não era o mesmo esquadrão. Começara a claudicar e extinguia sua aura de melhor time de São Paulo com a ascensão do Palmeiras, do eterno Ademir da Guia.

Ainda assim, o técnico Zagallo desta vez fez justiça ao levar Marinho Peres para a Copa de 1974, na Alemanha. Embora o zagueiro sorocabano tivesse ido bem nos treinamentos, o treinador titubeava na escolha da dupla de zaga. Estava confuso. Adiava a decisão. Em um treino, resolveu escalar Marinho e Luís Pereira juntos. Os dois se entenderam à perfeição. Surpreso, Zagallo comentou que parecia que a dupla já atuara no passado, embora fosse inédita. Ao que Marinho contrapôs, respeitoso, mas rindo um bocado:

— Nós jogamos juntos um bom tempo no juvenil do São Bento de Sorocaba.

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Zagallo não sabia. Por fim, deu a Marinho a faixa de capitão e escalou a dupla na Copa, embalado no sonho do tetra, tornado pesadelo na partida contra a demolidora Holanda. Perdemos de 2 a zero, embora a partida tenha sido renhida, bem disputada. Naquele dia, o técnico holandês Rinus Mitchell, então ainda pouco conhecido, se viu obrigado a reconhecer em Marinho um zagueiraço. Apesar do resultado.

Não admira que, uma vez escolhido como treinador do Barcelona, tenha recomendado à direção do clube a contratação de Marinho. Em especial quando ficou sabendo que o beque brasileiro tinha ascendência espanhola, o que lhe facilitava o trâmite de aquisição da cidadania espanhola e da dupla nacionalidade. E assim Marinho, filho de um ibérico que imigrou para o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, cruzou o Atlântico para atuar no mesmo clube do homem que infernizou a zaga brasileira na Copa da Alemanha: o holandês Joham Cruyff. 

Trabalhar com Rinus Mitchell lhe abriu a cabeça para detalhes que ele próprio usaria mais tarde, na carreira de treinador. Marinho gostava de lembrar de uma dessas dicas, que lhe pareceu, ao mesmo tempo, simples e de sábia estratégia: quando adversário batia o tiro de meta, o Barcelona marcava homem a homem a saída de bola — como fazem hoje diversas equipes pelo mundo, meio século depois —, mas deixava livre o zagueiro com menos intimidade com a pelota. Este receberia a bola e teria menos chances de fazer uma jogada correta. 

Ao comandar equipes em Portugal, onde faria os melhores trabalhos como treinador, Marinho seguiria este e outros ensinamentos de Rinus Mitchell. Também por isso era um sujeito peculiar.

Mas em especial pela maneira como deixou a Espanha, no turbulento ano de 1976, quando o país saía da ditadura franquista. Marinho se viu obrigado a fugir, em meio à segunda temporada no Barça, clube pelo qual marcou sete gols. 

Estava com 29 anos e, uma vez cidadão, tinha uma dívida com o exército espanhol. Os dirigentes do Barcelona foram os primeiros a lhe recomendar a fuga. Venderam Marinho ao Internacional de Porto Alegre. Em seguida, bolaram a logística para tirá-lo do país na surdina. O zagueiro atravessou o último terço da Espanha em um carro do clube, cruzou os Pirineus e, uma vez na França, aliviado e livre, entrou em um voo comercial para o Brasil.

Em Porto Alegre deu a sorte de entrar na melhor geração do Internacional. Era a equipe de Carpegiani e Falcão. Formou a zaga em dupla com outra figura lendária, o chileno Figueroa. O Inter nunca mais teve outra equivalente. No Colorado, Marinho ganhou o título brasileiro de 1976. Só deixou o clube porque ficou interessado em voltar a São Paulo tão logo recebeu um convite do Palmeiras.

No Parque Antártica, já veterano, viu-se obrigado a amargar a reserva com a chegada do técnico Telê Santana. Marinho era beque consagrado, ex-capitão da Seleção Brasileira. Outro, em seu lugar, teria esbravejado. Elegante, aceitou a reserva. Não só. Passou a incentivar o novo titular e a colaborar com o treinador que lhe tirara a vaga.

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Este comportamento também o tornou peculiar. Em virtude dele, recebeu um telefonema de Telê Santana. Era 1981. Aos 34 anos, Marinho estava atuando pelo América do Rio de Janeiro. Fim de carreira. Já pensava em voltar para Sorocaba e sossegar o facho. Telê, do outro lado da linha, convidava Marinho para ser seu braço-direito, como assistente de treinador no Al Ahli, da Arábia Saudita. A resposta precisava ser rápida.

Telê já assinara com o clube asiático, mas não podia assumir o cargo de imediato, uma vez que, em seguida, fora chamado para dirigir a Seleção Brasileira. Nesse ínterim, Marinho começaria o trabalho no Al Ahli. Que tal?

Marinho ficou atônito. Não era amigo de Telê Santana. Não tinha qualquer intimidade com o técnico. Além disso, jamais trabalhara como treinador. Nem pensava nisso. Ainda estava atuando como jogador. Telê explicou que admirara o seu caráter na passagem pelo Palmeiras, quando aceitou a reserva e incentivou seu sucessor. Também apreciava suas dicas táticas, aprendidas com técnicos do quilate de Otto Glória (na Portuguesa) e Rinus Mitchell.

Marinho, o sujeito único, peculiar, incomum, aceitou o cargo. 

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