Por Pedro Ribeiro Nogueira, da Repórter Brasil, compartilhado de RBA –
Entidade criada para defender direitos dos sobreviventes afirma que há mutilados que nunca foram reparados pelo Estado; já os cerca de 50 familiares que receberam indenização reclamam da falta de assistência médica desde 2018 e dos baixos valores recebidos
O trabalhador rural José Carlos Agarito Moreira, 41 anos, enxerga apenas vultos. Desde os 16, suporta, como pode, uma bala alojada entre seu olho direito e o crânio que lhe roubou a visão de um lado. Passados 25 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás, o sobrevivente começa a perder a visão do olho esquerdo. Não tem coragem de ir ao hospital com medo de se infectar com covid-19.
“Rapaz, é complicado viu. Só recordação de tristeza”. Com a voz embargada, fala com pesar sobre não poder trabalhar, das dores que sente todos os dias, de como a bala afetou também a sua audição. Acredita, que com acompanhamento adequado ao longo dos anos, poderia estar melhor. Diz que queria voltar a enxergar de novo e que, como ele, tem muitos outros. O massacre, para os sobreviventes, nunca acabou.
Agarito, que vive em Eldorado dos Carajás (PA) com ajuda dos parentes, é vice-presidente da associação criada em 2012 para lutar pelos direitos dos sobreviventes e familiares dos mortos, a ASVIMECAP (Associação dos Sobreviventes, Viúvas, Dependentes, Familiares e afins dos Trabalhadores Rurais Mortos no Massacre de Eldorado dos Carajás e em Conflitos Agrários no Estado do Pará). Recentemente, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, a associação levantou uma lista de 25 sobreviventes que nunca receberam qualquer forma de reparação pelo acontecido naquele dia 17 de abril de 1996, quando uma marcha de cerca de 2 mil manifestantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foram atacados por dois batalhões da Polícia Militar. O saldo foi de 19 mortos e 69 feridos.
A associação também denuncia que, desde 2018, mesmo os mutilados que foram indenizados estão sofrendo com a completa falta de assistência médica do Estado.
“O atendimento médico nunca foi consistente. São pessoas que até hoje carregam balas e marcas no corpo, mas mesmo assim ocuparam ruas, fizeram protestos e se reuniram com representantes do governo. Sempre escutaram promessas [de assistência médica], mas elas nunca foram cumpridas”, relata o advogado Walmir Brelaz, que representou as vítimas na Justiça desde o primeiro processo, em 1998.
A distribuição das reparações foi irregular ao longo dos anos que seguiram ao massacre: existem atingidos e viúvas (todos os mortos eram homens) que receberam indenizações e que hoje recebem pensões por morte, em torno de um salário mínimo (R$ 1.100 nos valores atuais). Alguns só obtiveram indenizações. E outros que nunca conseguiram ter acesso a esse direito que, segundo Brelaz, consta do acordo firmado em 2007: qualquer pessoa ferida naquele dia tem direito à reparação.
A Repórter Brasil conversou com dois sobreviventes, da lista de 25, que nunca foram indenizados. Maurílio da Silva Soares, 51, fraturou o braço esquerdo e levou um “balaço” na perna. Reclama até hoje de falta de ar causada pelo episódio. Afirma ter medo até hoje de ir a restaurantes e estar em lugares públicos. “É a pior parte. Nunca perdemos o medo. Até hoje eu vejo polícia e fico estranho”, relata. Ele vive como agricultor, em Parauapebas, de onde saiu um dos batalhões que agiu no dia do massacre.
‘Nunca perdemos o medo. Até hoje eu vejo polícia e fico estranho’, diz Maurílio Soares, sobrevivente que nunca foi indenizado
Já Lindomar de Jesus Cunha, o Mazinho, 44, foi atingido por uma bala no joelho. Conta que até hoje sofre com dores e que ficou com os movimentos limitados. “O massacre deixou sequela tanto na parte humana das pessoas, como na física. Mas também feriu os movimentos sociais e a política pública do Estado, que até hoje é um lugar de conflitos e de latifúndios”, lamenta o militante, que mora a poucos quilômetros de onde tudo aconteceu.
Ambos dividem uma história em comum: após o massacre saíram fugidos, às pressas, para viverem “entocados”. O medo se justifica: ao menos dez pessoas, segundo os laudos oficiais, foram executadas durante o massacre. A maior parte delas eram lideranças e coordenadores do movimento, assim como os dois.
A fuga após o ocorrido fez com que seja difícil comprovar a relação direta entre os problemas de saúde e o massacre, explica Brelaz. “É difícil provar. Um se tratou em Brasília, outro nem por hospital passou. Juntar os documentos para comprovar é trabalhoso e muitos não têm recursos para conseguir isso”, pontua.
A lista com os nomes dos mutilados que ainda não foram indenizados foi anexada à denúncia que tramita na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA). A petição original foi protocolada em 1996 e, em 2003, uma reportagem da Folha dava como certa a condenação. Passados 17 anos, ela ainda é uma expectativa.
“Esperamos que aconteça uma decisão nos próximos meses porque o processo já está avançado e a comissão tem todos elementos para decidir”, analisa Beatriz Galli, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, uma das organizações que assinou a ação. “Mesmo as indenizações ficaram muito aquém do que a gente esperava. As pessoas que receberam, receberam muito menos que os valores negociados nos primeiros acordos judiciais”, afirma, destacando que espera, após o julgamento na OEA, que o governo complemente a indenização dos que foram contemplados.
‘Lembro todo dia do massacre’
Os cerca de 50 que foram indenizados confirmam que, apesar de ajudarem na recuperação, os valores pagos foram muito baixos.
“O judiciário fixa a indenização de acordo com a renda e, como eles eram agricultores, acabaram recebendo valores bastante baixos se a gente comparar com outras profissões”, afirma Diego Vedovatto, advogado e membro do coletivo de Direitos Humanos do MST.
Foram vários os processos impetrados na Justiça. Em um deles, cerca de 20 mutilados pediram, além de indenização, uma pensão do Estado e atendimento médico reparatório. O ganho de causa veio em 1999, obrigando o Estado a garantir cuidado especializado e ressarcir as vítimas. Mas o Estado recorreu. Somente em 2008, durante o governo de Ana Júlia (PT), que as indenizações foram pagas à 50 sobreviventes através de um acordo extra-judicial – os valores variavam entre R$ 20 mil e R$ 90 mil. Cinco anos antes, porém, a 14ª Vara Cível de Belém havia definido valores entre R$ 50 mil e R$ 300 mil para os sobreviventes, além de pensões e tratamento médico.
“O fato emblemático dessa história é que ela não acabou. O Estado segue agindo de forma ilegal ao não cumprir o que estabelece a decisão judicial, causando sofrimento evitável após 25 anos”, analisa Brelaz.
Lembro todo dia. Porque dói. Porque eu tenho refluxo por conta das medicações. Porque a fala ainda é dolorida de sair’, lamenta Rubenita da Silva, sobrevivente que tem bala alojada no maxilar
“Nós ficamos com medo de que o Estado lavasse as mãos após a indenização e foi isso que aconteceu. É lamentável. A gente vê pessoas que estão ficando com a vida inviabilizada por conta dos ferimentos”, concorda a dirigente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Ayala Dias.
A insatisfação com as baixas remunerações é confirmada por Agarito, que hoje vive com um salário mínimo de pensão, tem dois filhos e não pode trabalhar. “Muitos de nós estamos abandonados. É muita sequela, muita depressão. Mas nossa luta é para que a gente pare de ser massacrado. Para que a gente possa, no mínimo, ter uma saúde melhor”, diz.
Para José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra, nunca houve reparação integral aos atingidos. “A indenização em si não corrige nenhuma injustiça que foi feita. É algo que está assegurado no direito e precisa ser respeitado, o que não aconteceu no caso das indenizações, que foram irrisórias e estão longe de cumprir com o que a própria legislação estabelece”, afirma.
Em Cotijuba, uma ilha próxima à Belém, Rubenita da Silva, hoje com 56 anos, diz que ainda vive o massacre “como se fosse hoje”. Ela foi atingida por uma bala — ainda alojada em seu maxilar. Foram 5 anos de operações para restaurar minimamente sua capacidade de falar e de comer alimentos sólidos. Mas ainda sente dores e nunca recuperou completamente a dentição.
“O Estado teve um cuidado apenas paliativo”, ela diz. “A gente vai sobrevivendo como dá. Eu lembro todo dia, né? Porque dói. Porque eu tenho refluxo por conta das medicações. Porque a fala ainda é dolorida de sair. Quem cuidou de mim foi o MST mesmo”, relembra a sobrevivente, que hoje se sustenta como guia turística e com a pensão de um salário mínimo. “A gente teve que lutar muito para o Estado fazer o mínimo”, lamenta.
Após a publicação da reportagem, o governo do Pará informou que a “Procuradoria-Geral do Estado (PGE) informa que desconhece formalmente a existência de 25 vítimas não reparadas do massacre de Eldorado dos Carajás. No entanto, ressalta que, por meio de um acordo extrajudicial, firmado pelo Governo do Estado, em 2011, o pagamento de indenização e de pensão aos atingidos podem ser reclamados a qualquer tempo, sem o risco de prescrição do direito, desde que sejam demonstrados dano e nexo causal com a ação policial”. A Secretaria de Saúde e a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado não se manifestaram. A Repórter Brasil também entrou em contato com a CIDH da OEA para saber do andamento do processo e não obteve resposta.
Impunidade e mortes por covid
A via crucis dos sobreviventes por hospitais, gabinetes, protestos e processos judiciais tem paralelo na condenação dos responsáveis: a lentidão, a negligência e as pendências nunca resolvidas. Apenas 14 anos depois do massacre, duas pessoas foram condenadas: o coronel da Polícia Militar Mário Colares Pantoja e o major José Maria de Oliveira, comandantes da operação. No entanto, o então governador do Estado, Almir Gabriel, e o secretário de Segurança Pública do Pará, Paulo Sette Câmara, sequer foram indiciados, apesar de terem dado a ordem de “liberar a via [onde estavam os sem-terra] a qualquer custo”. A investigação contra eles foi arquivada em 1997.
Dos quatro, dois morreram recentemente por complicações relacionadas à covid-19: Sette Câmara, em maio, e Pantoja, que ficou quatro anos em regime fechado antes de ir para prisão domiciliar, morreu em novembro de 2020.
Os fazendeiros da região, que se reuniram com o governador dias antes para pedir o fim da marcha e que foram acusados por uma testemunha de terem feito uma vaquinha para financiar o ataque da PM, foram investigados. Por fim, 153 policiais militares que participaram do massacre foram absolvidos.
Passados 25 anos, completos no último sábado (17), o Pará é um estado de feridas abertas. José Batista, da CPT, acredita que após o massacre os movimentos se fortaleceram na região e o número de assentamentos da reforma agrária cresceu: foram criados 516 assentamentos nos anos seguintes. Nos últimos dez anos, no entanto, o número de novos assentados foi caindo até atingir a paralisia completa no governo Bolsonaro. Mas a violência segue vitimando aqueles que desafiam o poder do latifúndio.
“De 1996 até agora, foram mais de 300 assassinatos de camponeses. Muitas lideranças. Dorothy Stang, o casal Maria e José Cláudio Silva Ribeiro. E tantos outros massacres, como Pau d’Arco, em São Félix do Xingu. E a impunidade segue como uma das principais causadoras. Segundo levantamento da CPT, 90% das investigações nunca foram concluídas”, lamenta.
De acordo com o especial Cova Medida, da Repórter Brasil, das 31 vítimas de violência no campo no primeiro ano do governo Bolsonaro, apenas 1 teve seu caso concluído – cujo resultado é contestado pela família.
Em agosto de 2019, o presidente Jair Bolsonaro disse que planeja dar o indulto para os policiais de Eldorado dos Carajás. Se isso vier a acontecer, o indulto será dado a apenas um policial, já que o outro que foi condenado morreu pela condução desastrosa da pandemia no Brasil.
Em 2018, o então candidato já havia afirmado, para uma plateia de policiais que “quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”, enquanto era aplaudido por um grupo de policiais em frente ao Monumento das Castanheiras Mortas. A instalação foi erguida pelo movimento em memória das vítimas do massacre após o Monumento Memória Eldorado, de Oscar Niemeyer, em Marabá, ter sido destruído sob o olhar complacente da PM, dias após sua inauguração. Mais resiliente, apesar dos vandalismos morais e do descaso, as castanheiras – pelo menos sete delas – permanecem de pé.
No dia do massacre, pela contagem oficial, foram 19 mortos e 69 feridos. Três deles morreram nos dias logo após o massacre por conta dos ferimentos graves. A associação dos sobreviventes estima que, desde então, outros sete mutilados faleceram. Todos, alegam, em decorrência direta ou indireta do massacre.
‘Nós sentimos que o estado está empurrando a gente com a barriga’, diz Josimar Pereira de Freitas, presidente da Associação de Sobreviventes
Ayala Ferreira, coordenadora do coletivo de Direitos Humanos do MST e assentada na região de Marabá, no Pará, conta uma história emblemática da persistência dos danos daquela tarde em 1996. Domingos da Conceição, o Garoto, que tinha 15 anos quando dez tiros disparados pela PM esfacelaram sua perna. “Ele teve um encurtamento na perna e uma dificuldade de mobilidade permanente”, relembra. “E aí ele morreu num acidente de motocicleta em decorrência dessa dificuldade de equilíbrio. Então, por mais que o Estado tente lavar as mãos não dá. Está tudo relacionado”, afirma.
“Nós sentimos que o estado está empurrando a gente com a barriga”, diz Josimar Pereira de Freitas, presidente da Associação de Sobreviventes. “Tem a dona Eva e a dona Maria Badia e outros que já não existem mais no meio da gente porque não tivemos um acompanhamento de saúde digno que possa nos curar desse episódio”, se entristece. Ele também deixa transparecer na voz o sofrimento que vem ao lembrar das dores que sente até hoje ao caminhar. “O certo era ter uma bota ortopédica. Mas é muito caro. O Estado não se dignou nem à isso”.
Ele afirma, como todos outros sobreviventes ouvidos pela reportagem, que os tratamentos todos ficaram pelo caminho com o passar dos anos. Outra noção que encontra eco entre todos eles, é a de que, com tratamento adequado, poderiam estar numa situação melhor. “O que a gente precisa do Estado é que ele faça o mínimo e cumpra o acordo”, conclui.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil