Massacre de Paraisópolis: cada dia de espera é mais um dia de sofrimento, diz antropóloga

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Antropóloga Desiree Azevedo, responsável por relatório que reconstitui massacre, fala à Pública

Por Andrea DiPClarissa LevyRicardo TertoStela Diogo, compartilhado de A Pública




“No dia 1º de dezembro de 2019, eu fui pega com a surpresa da notícia do assassinato do meu filho. Foi o momento de maior maior sofrimento que eu passei ao longo dos meus 40 anos, idade que eu tinha na época. Quando tudo veio à tona, eu entendi que meu filho foi assassinado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foi um choque mesmo, um baque.”

Esse é o relato de Maria Cristina Quirino, mãe de Denys Henrique Quirino, que foi morto aos 16 anos durante o massacre de Paraisópolis. Passados pouco mais de cinco anos, o caso ainda segue sem resolução. As famílias continuam sem conclusão do caso, mesmo sabendo que foram 12 policiais militares os responsáveis pela morte dos nove jovens asfixiados, sendo Denys um deles. Os policiais ainda permanecem em liberdade. 

No dia 17 de maio, houve mais uma etapa da audiência. Pela terceira vez, testemunhas, familiares e movimentos de luta por direitos humanos foram ouvidos. Os relatos das dez pessoas acrescentam elementos suficientes para que a Justiça considere os réus como criminosos, já que ainda permanecem vinculados ao quadro de PMs do estado, inclusive, trabalhando normalmente nas áreas administrativas.

Para as famílias, essa pretensa normalidade é sentida de maneira ainda mais angustiante. “Estamos no aguardo, nessa espera que a gente fica sofrendo arduamente, contando os dias, os minutos, os segundos, para que esse processo ande. Mas acontece tudo lentamente, muitas coisas corroboram com a naturalidade do caso, dos fatos, por ter policiais envolvidos. A gente espera que a Justiça seja justa com a gente”, anseia Maria.

Para refletir sobre as investigações desse caso e entender as camadas sociais que não podem ser esquecidas dessa chacina, o episódio 120 do Pauta Pública recebe a antropóloga forense Desiree Azevedo. Responsável por conduzir um relatório realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a Defensoria Pública, ela explica como as provas do inquérito se tornaram peça fundamental para desconstruir a versão inicial da polícia que põe a culpa do massacre nas próprias vítimas.

Na conversa, a pesquisadora reflete sobre a importância das duas organizações na defesa da proteção e escuta das famílias. Segundo ela, esse acolhimento é fundamental, já que o tempo é sentido de formas diferentes pelos envolvidos, os policiais culpados e os familiares das vítimas.

“Independente de ir ou não a júri, o tempo que demora, o tempo que se gasta para chegar nesse momento, para você ter uma solução, uma resolução final para esse caso, ele é muito custoso afetivamente para as famílias. O tempo dentro de casa é o tempo sem justiça, é o tempo sem que a sociedade conheça a verdade, é o tempo com a memória dos meninos sendo desrespeitada”, explica.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

EP 120 Massacre de Paraisópolis, a espera pela justiça – com Desirée Azevedo

17 de maio de 2024 · Podcast recebe antropóloga que ajudou a desmontar versão da polícia

[Clarissa Levy] Para começar, queria pedir para você nos contar da pesquisa que o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, o CAF da Unifesp, vem fazendo. Vocês fizeram um relatório reconstituindo a dinâmica dos fatos no momento do massacre. Quais foram as principais descobertas? Pode nos detalhar, por favor?

A primeira questão que é importante esclarecer é que o CAF, especificamente, não coletou evidências.

Faço parte dele desde 2019, coisa de um mês antes do massacre, quando fomos convidados pela Defensoria Pública para fazer uma assessoria técnica, um trabalho de apoio técnico-científico complementar ao que haviam começado a realizar, no caso, de investigação defensiva.

A investigação defensiva é uma atividade de investigação que é realizada no âmbito da defesa de pessoas que estão enfrentando a acusação do Estado.

Logo após o caso, a Defensoria Pública passou a acompanhar, fazendo a defesa das famílias, defendendo o direito à memória, à verdade e à justiça desses familiares. É no âmbito dessa defesa das famílias que ela passa a realizar essa investigação defensiva.

Então, é algo um pouco sui generis nesse sentido, porque é a defesa não de pessoas que estão sendo acusadas pelo Estado, mas que tiveram o seu direito violado pelo Estado. 

A Defensoria, então, foi ao território, logo nos primeiros dias depois do massacre, se reunir com a população e com as lideranças; encontra e coleta evidências materiais junto às testemunhas, especialmente vídeos e fotos que foram registrados pelas pessoas que estavam lá e que são moradoras do bairro.

Ao fim, todo esse material foi entregue à delegacia local que começou as investigações, o 89º DP. Já no dia seguinte foi transferido para o Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa – DHPP. Então, nessa atividade de investigação defensiva da Defensoria, o delegado aceita e assimila todas essas evidências ao inquérito. E a partir daí o inquérito passa a ter, além das evidências periciais e materiais que também foram colhidos pela polícia, essas evidências que foram trabalhadas pela Defensoria.

E a Defensoria vai nos procurar para poder fazer uma análise técnica desse material. Para além de colher, acompanhar as testemunhas e o inquérito, a Defensoria queria entender como é que aquelas evidências poderiam falar ou não a respeito do que aconteceu no caso.

Lembrando que o registro inicial do caso foi feito pelos policiais envolvidos. Então, o massacre acontece e são eles mesmo que “socorrem”; pegam as nove vítimas e as levam nas próprias viaturas ao hospital. De lá, eles saem e vão ao 89 DP, que é a delegacia da área, e registram o caso.

E aí o que eles alegam: dizem que foram atacados por uma motocicleta que adentrou o baile de Paraisópolis, disparando contra eles. Nisso, em função de uma perseguição policial, as pessoas que estavam lá foram pisoteadas em meio à correria.

Portanto, o caso foi registrado nesse primeiro momento como tentativa de homicídio contra policiais e mortes suspeitas. Então, quando se transfere para o DHPP, já se transfere com uma perspectiva de que poderia haver um homicídio relacionado ao caso.

O CAF é buscado por uma experiência que a gente tinha anteriormente, do trabalho com os crimes de maio, que era bastante focado nas evidências necroscópicas, nos laudos que foram feitos a partir dos corpos das vítimas. A princípio era isso que a Defensoria gostaria que a gente fizesse, especialmente porque, quando os laudos do IML saem, eles registram que a morte dos nove jovens se deu por asfixia mecânica indireta. Isso significa que tiveram os corpos comprimidos, ao ponto de não conseguirem respirar e morreram então asfixiados.

E não havia naqueles laudos indícios de que tenha havido pisoteamento. Por quê? Porque numa dinâmica de pisoteamento você tem lesões relacionadas a esse pisoteamento, especialmente fraturas. E esses jovens não tinham fraturas, com exceção de um deles, que é o Mateus. E aí chamou bastante atenção nossa, na época, que essa única fratura que esse jovem teve, na coluna, tenha sido usada pela imprensa na época para se referir aos laudos como se eles tivessem confirmado a versão de pisoteamento.

A princípio, a ideia era que a gente debruçasse sobre esses laudos. Mas, quando a gente viu a quantidade de evidências que haviam sido produzidas sobre esse caso – que eram muitas e bastante reforçado –, percebemos que nenhuma delas sozinha era capaz de nos esclarecer o que havia acontecido. Era preciso que a gente analisasse cada uma delas, mas principalmente que a gente colocasse essas evidências para conversar, ou seja, que a gente fizesse uma convergência entre todas elas.

Nos chamou atenção o fato deles terem morrido asfixiados, porque isso fala sobre o local da morte. Porque, nos casos mais recorrentes de situações em que pessoas morrem relacionadas à atuação policial, ou seja, mortes decorrentes de intervenção policial, são casos que a morte se dá por hemorragia ou por traumas, por exemplo.

E essas mortes são mortes um pouco mais lentas. Na asfixia não. A asfixia é uma morte muito rápida. Então, a primeira coisa que a gente pôde perceber a partir dessas evidências – trabalhando só com as evidências necroscópicas – foi que as mortes aconteceram no local.

E aí, além dos dois vídeos que nós temos de câmeras de segurança e as outras filmagens de testemunhas que estão ali dispostas dentro e fora do quarteirão – local onde basicamente o crime aconteceu –, temos também os áudios do Centro de Operações Policiais Militares, Copom, que também nós podemos ter acesso.

Essas foram as três evidências mais importantes que a gente trabalhou: os áudios do Copom, as câmeras e os vídeos de testemunhas e os laudos necroscópicos. A partir desses áudios do Copom, a gente sabe que os jovens foram autorizados a retirar os corpos do local e levar para o hospital, 43 minutos depois que houve a primeira comunicação de que haviam jovens desfalecidos na viela.

Uma morte por asfixia, ela varia também o tempo, mas ela acontece no máximo em 15 minutos. Então, quando eles são retirados do local e levados para o hospital, eles já estão mortos. Mas a questão é que, para fazer o socorro – e aí os agentes de segurança pública que estão na rua são formados em primeiros socorros, não só por situações de confronto com a polícia, mas também por situações de ter que socorrer policiais também –, o primeiro procedimento que você precisa ter é fazer a verificação dos sinais vitais dessas pessoas.

E os sinais vitais que os policiais descrevem nos seus depoimentos que esses jovens tinham é impossível que eles tivessem no momento em que foram socorridos, que é respiração, dilatação da pupila, movimentos corporais. Isso porque eles estavam num processo de asfixia que começa com a parada respiratória e evolui por uma parada cardíaca, que é algo que todo mundo que é formado em primeiros socorros sabe identificar.

Então, o correto de se fazer naquela situação seria chamar o Samu e iniciar imediatamente primeiros socorros, iniciar imediatamente as manobras de ressuscitação. Isso não foi feito. Então, a gente tem uma certeza baseada em evidências. Depois, as demais evidências cruzadas, especialmente as câmeras, as filmagens, as evidências audiovisuais e o áudio do Copom, também colocam em xeque uma série de outros pontos que os policiais colocam na narrativa deles.

[Andrea Dip] Nos julgamentos prévios, a todo tempo a gente vê a polícia deslegitimizando e culpabilizando as vítimas: “Ah, eles estavam num baile funk, em lugar de bandido”. Ou até questionando se os jovens estavam sob uso de drogas, como se isso tivesse alguma coisa a ver com a morte, Que relações você vê entre a criminalização, o racismo e esse extermínio?

Em termos de evidências, a partir desse exame toxicológico, o uso de drogas lícitas e ilícitas pelos jovens, foi levantada a hipótese de que essas drogas tivessem facilitado, por exemplo, o processo de morte.

Houve, inclusive, um questionamento aos próprios legistas do IML e eles fizeram parecer, negando que pudesse ter havido qualquer relação entre o uso de drogas e as mortes. Então isso fica descartado. Mas de todo modo, para além dessa explicação técnica, o uso de drogas faz parte de um processo, uma tentativa de culpabilização das vítimas.

E que, nesse caso em específico, vai se conectar com a questão que os policiais alegam quando dizem que tiveram que fazer o uso das armas não letais, em razão de uma atuação de resistência da multidão. Como se a multidão tivesse se dedicado a proteger aqueles criminosos, inicialmente, que estavam na motocicleta e que entraram no baile, atacando a polícia.

No contexto específico dos bailes funk, essa questão do uso de drogas tem a ver com um processo que é bastante conectado entre o julgamento moral das pessoas que estão no baile funk com a criminalização propriamente dita.

Porque a gente sabe que essas mortes ocorreram no contexto de uma Operação Pancadão e uma Operação Saturação, que estavam acontecendo em Paraisópolis ao mesmo tempo. Essas duas operações estão bastante conectadas, porque a Operação Saturação foi desencadeada no dia seguinte à morte de um policial, um policial da Força Tática, o sargento Ronaldo Ruas, que estava atuando numa Operação Pancadão.

As operações Pancadão existem em São Paulo desde o início da década de 2010, mas a partir de 2019, a partir do governo Doria, ela se torna uma política estadual, se torna uma política pública, através da qual o Doria, como governador, estava ali cumprindo uma promessa de campanha.

E aí lembrar que, por exemplo, Doria vai dizer, ainda enquanto prefeito, recém- eleito prefeito de São Paulo, que os bailes funk em São Paulo são organizados pelo PCC. Então, é um processo de criminalização que vai fazer uma conexão como se fosse uma coisa só, entre os territórios periféricos, a atuação do PCC, grupos armados no território, os mercados informais de maneira geral e os mercados ilícitos, os mercados de droga e os bailes funk.

Então é uma conexão, como se tudo isso tivesse profundamente emaranhado e como se os bailes funk em São Paulo não tivessem uma história própria, que tem a ver com as formas de lazer da juventude periférica, com o direito ao lazer e à cidade.

Aí todas essas coisas vão se misturar em um mesmo discurso que procura dar aos bailes funk e às pessoas que os frequentam um ar de ilegalidade e, com isso, referendar as operações policiais como solução para os problemas que obviamente estão atrelados à realização de bailes funk de rua sem estrutura. 

Aqui eu não estou negando que realizar baile funk na rua com milhares de pessoas e sem uma estrutura adequada não gere problemas. Evidentemente que gera, né?

Poluição sonora, questão de estrutura e segurança para as pessoas que estão no evento. Mas daí você considerar que a solução para esse problema é impedir os bailes através de operações policiais e da segurança pública, tem uma distância muito grande.

Então, essas coisas estão bastante conectadas em uma cidade que tem um alto grau de segregação, de exclusão e de criminalização da pobreza. 

[Clarissa Levy] Olhando para o caso de Paraisópolis em perspectiva com outras pesquisas sobre operações policiais que acabaram com mortos, que padrões de repetição vocês identificam no que aconteceu na noite de 1º de dezembro no baile da 17? E quais singularidades desse caso fazem ele diferente dos outros?

Essa pergunta esbarra numa questão que é uma lacuna que a gente tem aqui em São Paulo de conhecimento acumulado sobre operações policiais. Acho até que é algo importante diferenciar o que é patrulhamento policial de rotina e operações policiais, são coisas distintas.

E aqui em São Paulo, muito embora a gente tenha um histórico de pelo menos duas décadas de operações policiais com soluções para problemas da segurança pública nas periferias, a gente teve operações acontecendo nas periferias de São Paulo com pouquíssima repercussão, e essas operações geralmente são chamadas de operações Saturação. Diferente do que a gente tido agora vindo a público, com a Operação Escudo e a Operação Verão, que tem chamado a atenção das pessoas para o plano das operações.

As operações são extremamente invisibilizadas. O que não significa que elas não provoquem muitos danos humanitários. Então, eu acho que o que a gente pode falar sobre repetições no caso do massacre é chamar atenção de que o massacre vai acontecer no contexto de duas operações. E aí isso é muito diferente da declaração em que tudo é discutido, como se o massacre tivesse ocorrido no contexto de uma ocorrência isolada: “Ah, um homem que passou com uma moto atirou na polícia, houve uma perseguição, entrou no bairro”.

Só que não é isso que acontece, o massacre acontece no contexto de duas operações policiais, a Operação Pancadão e a Operação Saturação, tendo essa durado cinco meses. E aí você tem um conjunto impressionante de denúncias relacionadas a essa operação, incluindo três mortes decorrentes de intervenção policial, quatro desaparecimentos forçados – que não são registrados dessa maneira pela Secretaria de Segurança Pública, mas são assim percebidos na comunidade, porque as pessoas desaparecem e depois aparecem mortas fora da comunidade –,além de um massacre.

No contexto dessa Operação Saturação, a gente totalizou 15 mortes, incluindo dentro as nove do massacre. Então, primeiro, o importante de chamar a atenção é a invisibilização disso. O massacre não é um fato isolado, ele é um fato dentro de um conjunto de violações que estavam acontecendo em Paraisópolis, no contexto de uma operação policial.

Paralelo à Operação Saturação, estavam acontecendo operações Pancadão. Como eu disse, essas são mais recentes, têm mais ou menos uma década, mas têm, também, a sua recorrência de violações relacionadas a elas.

E aí temos alguns desdobramentos. Porque essa primeira pesquisa foi relacionada ao evento, ao fato em si, o que aconteceu no dia do massacre. E agora o que a gente está trabalhando atualmente é a contextualização desse massacre.

Então, como foi possível que a Polícia Militar do Estado de São Paulo matasse nove pessoas no contexto de um baile funk? Por isso, estamos fazendo essa pesquisa agora. E, ao tentar entender a história dessa Operação Pancadão, o registro mais antigo de violação que a gente encontra nessas operações é de 2012. De lá para cá, tem uma série de casos de pessoas que vão ser agredidas, algumas com lesões corporais com resultados permanentes.

Tem vários casos desse. Em Paraisópolis teve um caso, em 2013, de uma Operação Pancadão na qual a jovem foi atingida e perdeu a visão. Em 2018, alguns meses antes do massacre em Paraisópolis, houve um caso de morte de três pessoas supostamente por pisoteamento num baile funk em Guarulhos, o baile funk do Vermelhão – esse caso teve pouquíssima repercussão, mas ele chegou a sair na imprensa. E a gente teve acesso ao inquérito desse caso e aos laudos das pessoas que morreram nesse caso, em que chegamos à conclusão de que essas pessoas também não morreram pisoteadas, mas num processo de asfixia. Então, existe uma probabilidade grande desse processo ter sido bastante semelhante com o de Paraisópolis. 

Como a gente vive em São Paulo, as operações policiais que geram muitos danos geram muitas violações humanitárias e são invisibilizadas. Essas situações não chegam à mídia, ao conhecimento público. Quando chegam, são desvinculadas das operações, elas são narradas como se fossem situações pontuais, específicas, relacionadas à resistência, ou seja, à legítima defesa do policial.

E nenhuma dessas histórias, nenhuma dessas histórias, pelo menos que nós tivemos contato e nos aprofundamos em estudar, tem relação com resistência à atuação policial. Paraisópolis é o caso que chamou a atenção, que chegou ao público e chamou a atenção para violações que são corriqueiras em operações policiais no estado de São Paulo.

Do ponto de vista prático, foi mais difícil criminalizar esses jovens porque, de fato, eles eram todos inocentes, como se diz. Então, todos eles eram trabalhadores, estudantes, eram muito jovens e estavam num contexto de lazer.

E foi bastante difícil imputar algum crime a eles. Então, se havia uma motocicleta que entrou no baile e atirou, os nove não estavam na motocicleta. Isso gerou uma comoção bastante grande na época e aí a atuação dos movimentos sociais e dos poderes públicos fez diferença nesse caso.

E esses casos geralmente não caminham dentro do sistema de justiça, geralmente morrem na delegacia. Assim, são enquadrados, é considerada legítima defesa do policial. Muitas vezes, mesmo havendo evidências que contradizem – porque são casos que se baseiam muito na narrativa policial –, acabam na fase inquisitorial, com o delegado fazendo a recomendação de que a investigação se encerre, com o Ministério Público concordando com o delegado e o juiz concordando com todo mundo. e os casos se encerram ali, na casa dos 90%.

Então, se a gente considerar que esse caso é um caso que se assemelha em termos de dinâmica, um caso de morte decorrente de intervenção policial, nesse sentido também é um ponto fora da curva, porque é um caso que está caminhando dentro do sistema de justiça. 

[Andrea Dip] E quais são as expectativas para o julgamento que acontece dia 17?

Até o momento foram duas audiências desta fase de instrução. A fase de instrução tem dois tipos de audiência, a de acusação e a de defesa. Então, todas as testemunhas vão ser ouvidas, primeiro as de acusação e depois as de defesa.

Então, nós já tivemos duas audiências, as duas de acusação. Agora estamos numa terceira audiência de acusação, e nós não sabemos se haverá mais uma, porque ainda há uma boa quantidade de pessoas para serem ouvidas, se não me engano, 15 pessoas ainda.

Dentro dessas testemunhas de acusação você tem tanto testemunhas oculares, testemunhas que viram, como testemunhas técnicas, o CAF, eu e a Ana Paula, que é a outra perita, na qual já demos nosso depoimento. Além disso, as testemunhas de conduta, que eu chamaria assim, são os familiares, que não viram absolutamente nada, mas que vão testemunhar. Nesse caso, a discussão fica muito em torno, justamente, da índole da pessoa que morreu e dos danos causados pela morte.

Em seguida vai ter as audiências de defesa, e são muitas pessoas também, incluindo o comandante Salles, na época o comandante da PM, que está arrolado como testemunha de defesa.

Qual é a nossa principal preocupação? É o postergamento, é o tempo que demora entre uma audiência e outra, é a quantidade de testemunhas que provoca mais e mais audiências. Então, a gente tem uma preocupação muito grande com o tempo, porque, do ponto de vista do processo legal, você tem os seus tempos marcados por uma série de coisas do funcionamento interno da Justiça, um tempo frio, um tempo burocrático.

Mas, do ponto de vista das famílias, o tempo é algo que é sentido de outra maneira, o tempo é o tempo dentro de casa, é o tempo sem justiça, é o tempo sem que a sociedade conheça a verdade, é o tempo com a memória dos meninos sendo desrespeitada. Então, o tempo conta diferente para a Justiça e para as famílias.

Eu, particularmente, tenho muita convicção de que esse caso vai a júri popular, porque são muitas provas materiais, muitas testemunhas. Nós conseguimos expor o nosso relatório e eu avalio muito positivamente essa oportunidade que nós tivemos de discutir as evidências, os fatos, e não discutir conduta de A ou B e não discutir como é difícil o trabalho policial, porque não é isso que está em causa.

O que está em causa foi o que aconteceu naquele dia. Então, eu tenho uma expectativa muito boa, eu acho que esse caso vai a júri popular. Indo a júri popular, aí eu já não consigo dizer. Porque aí são outros fatores que contam. O júri decide a partir de paixões sociais, a partir das suas convicções ideológicas e políticas, a partir das pressões. Já não é mais uma decisão técnica.

Mas, considerando que a gente está falando de um juiz de direito que vai decidir, considerando a quantidade de provas que nós temos nesse caso, eu tenho bastante confiança de que vai a júri. A minha única preocupação é essa. Independente de ir ou não a júri, o tempo que demora, o tempo que se gasta para chegar nesse momento, para você ter uma solução, uma resolução final para esse caso, ele é muito custoso afetivamente para as famílias.

Então, isso é um dano irreparável. É preciso entender que, independente do resultado desse julgamento, do resultado final desse caso, as famílias não têm como reparar o que as famílias sofreram, e cada dia a mais dessa espera é mais um dia de sofrimento, mais um dia de injustiça.

E que isso aí é irreversível. Não tem como reparar. E é um sofrimento completamente invisível que as pessoas não têm acesso, não sabem o que é o familiar na sua casa, com a sua vida dilacerada. Estão à espera de uma justiça que não se sabe quando vai chegar e se vai chegar.

Colaboração: Danilo Queiroz

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