Por Celso Sabadin, crítico de cinema, cineasta, Facebook
De acordo com o site especializado IMDb, há mais de 200 adaptações cinematográficas ou televisivas realizadas a partir da obra de Victor Hugo. Como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre Dame” são, disparadas, as campeãs de obras audiovisuais adaptadas do famoso autor francês, muitos acabam se esquecendo do também icônico “O Homem que Ri”, escrito em 1869, e levado às telas cerca de meia dúzia de vezes.
O selo Obras Primas lançou no Brasil, em DVD, a versão 1928 de “O Homem que Ri”, produzida nos EUA pela Columbia e dirigida pelo alemão Paul Leni. Os primeiros 15 minutos do filme são de uma crueldade ímpar. No melhor estilo do que hoje se convencionou chamar de “filme de origem”, o roteiro assinado pelo norte-americano J. Grubb Alexander conta a tragédia do menino Gwynplaine (Julius Molnar), herdeiro de um nobre, raptado por ciganos que mutilaram seu rosto para que ele aparentasse estar sempre rindo, servindo assim como atração em shows de aberrações.
Para piorar a situação, o garoto é depois abandonado pelos próprios ciganos que o raptaram. Sozinho em meio a uma nevasca, ele encontra um bebê chorando nos braços da mãe morta por congelamento. Ambos são acolhidos por Ursus (o italiano Cesare Gravina), que faz apresentações teatrais ambulantes. Ele logo percebe que o bebê salvo pelo menino é uma menina cega. É muito sofrimento junto!
Há então um corte de tempo no qual veremos que Gwynplaine, agora adulto (interpretado por Conrad Veidt, o enigmático Cesare do clássico “O Gabinete do Dr. Caligari”) e a garota cega Dea (Mary Philbin, que três anos antes vivera também para a Universal o papel feminino principal de “O Fantasma da Ópera”) se incorporaram à pequena trupe teatral de Ursus. Dea se transformou numa linda cantora, e Gwynplaine tornou-se um sucesso como palhaço, ganhando fama como “O Homem que Ri”.
O problema é que ambos se apaixonaram, mas o mutilado Gwynplaine não se considera digno do amor da bela Dea que, por sua vez, não sabe que seu amado tem o rosto deformado e, claro, não compreende a resistência do rapaz. O contraste entre a intensidade deste amor e o abismo de percepção que envolve os protagonistas gera uma tensão dramática das mais intensas nesta verdadeira releitura de outro clássico
francês: “A Bela e a Fera”, que Gabrielle-Suzanne Barbot escreveu em 1740.
O drama se intensifica para Gwynplaine quando a corte descobre que ele é o herdeiro legítimo de Lord Clancharie (também interpretado por Conrad Veidt), e faz de tudo para que ele se case com a Duquesa Josiana (Olga Baclanova, atriz vinda do teatro russo), que deseja se aproveitar de sua fortuna. Suas próprias inseguranças interiores aliadas às pressões da coroa para a realização deste casamento forçado fazem com que o rapaz tenha pouquíssimos motivos para sorrir de verdade.
Super produção que consumiu três anos de trabalho e um orçamento superior a US$ 1 milhão (dos mais representativos para a época), “O Homem que Ri” traz cenas memoráveis, como a simulação que toda a trupe de Ursus realiza forjando uma apresentação inexistente de Gwynplaine, apenas para que Dea não se dê conta que seu amado foi levado pelas forças ditatórias da corte, e que poderia estar morto.
Verdadeiro exemplo do modo de produção cinematográfica norte-americano como base financeira de vários profissionais do talento europeu, “O Homem que Ri” é um típico produto da era de transição do cinema mudo para o falado, na qual as cópias traziam trilha sonora e eventuais ruídos de cena, mas os diálogos ainda eram substituídos por cartelas com os dizeres dos personagens.
O filme é o penúltimo do diretor Leni, que faleceria em 1929, com apenas 44 anos, após realizar “A Última Ameaça”.
“O Homem que Ri” está na caixa Expressionismo Alemão volume 3, do selo Obras Primas.