Memória: como a mídia chocou o ovo da serpente

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Qualquer explicação que possa reduzir o impacto das matérias é deixada de lado, para não “esfriar” a denúncia.

Por Luis Nassif, compartilhado de seu Blog




Não me canso de repetir: a discussão sobre o caso Galdino representa uma oportunidade única de repensar questões como direitos individuais e papel da imprensa na formação da opinião pública.
Nos últimos anos, casos de repercussão junto à opinião pública têm sido instrumentalizados com o fito de aumentar tiragem e audiência de jornais.

Entrei de cabeça contra todas as “ondas” que se formaram nesse período -caso Escola Base, bar Bodega, Cláudia Liz, Osmar Santos, Agroceres, PT Venceslau, CPI dos Precatórios e muitos outros. E não por reflexo condicionado, por masoquismo ou para ser “do contra”, mas porque em todos esses casos havia erros primários de julgamento e sonegação de todas as informações que, de alguma forma, pudessem atrapalhar o impacto das manchetes. Repito: em todos os casos.

Na Escola Base, os donos eram inocentes. No bar Bodega, os meninos da favela que foram presos nem sequer se conheciam pessoalmente. No caso Cláudia Liz, a clínica acusada tinha dado o melhor tratamento possível à modelo. No caso Osmar Santos, a Santa Casa de Lins tinha sido a responsável por sua sobrevivência. No caso Agroceres, havia indícios claríssimos das tendências suicidas do empresário Ney Bittencourt. Na CPI dos Precatórios, um amplo mar de corrupção que nem sequer tinha sido tangenciado pelas investigações iniciais. No caso PT Venceslau, a comissão criada pelo PT partido confirmou todas as denúncias.

Um erro se justifica. Dois erros se aceitam. Mas errar reiteradamente denota uma deformação crucial na cobertura. A busca da verdade deixou de ser objetivo. A notícia passou a ser mero complemento para esse enorme show da vida.

Nos casos Cláudia Liz e Osmar Santos, recebi mais de cem e-mails de médicos agradecendo por eu ter dito o óbvio -que a clínica e a Santa Casa tinham tratado adequadamente seus pacientes. Era informação de conhecimento geral na classe médica. Nem assim vazou para os jornais.
Como se pode fazer jornalismo, ou uma sociedade buscar o aprimoramento, se os fatos são deixados de lado e se parte, primeiro, para o julgamento; depois, para a adaptação de todos os fatos à sentença exarada antecipadamente?

É que todos esses casos viraram mero álibi para o aumento de vendas e a promoção individual de algumas pessoas -os chamados “porta-vozes do clamor das ruas”.

Se os acusados são pretos e pobres, levantam-se os porta-vozes da direita exigindo seu linchamento (caso Bodega). Se são brancos e de classe média, levantam-se os porta-vozes da esquerda querendo levá-los à fogueira (caso Galdino). Invariavelmente, não analisam o episódio nem respeitam os direitos individuais dos acusados. Não lhes importam os fatos, mas a simbologia, o álibi para obter projeção. Não existe nada mais semelhante do que os justiceiros de direita e de esquerda.

Recebi dezenas de e-mails contra e a favor da posição da coluna no caso Galdino -desde domingo, mais a favor do que contra. Assim como na coluna, nenhum dos e-mails a favor advogava a absolvição dos rapazes. Repito: assim como a coluna, todos eram a favor de punição para os culpados. Apenas não queriam o linchamento. Porque, ao se permitir o linchamento dos assassinos de Galdino -sob o argumento de que são réus confessos-, está-se autorizando novamente a imprensa a reeditar todos os crimes perpetrados contra inocentes.

Vício geral

Essa incapacidade de perseguir objetivamente os fatos reflete-se em todo o noticiário -não apenas no policial. É um vício de cobertura, que apequena o papel da imprensa e impede que realidades complexas sejam transmitidas com isenção aos leitores.

A diferença de padrão entre as reportagens de publicações internacionais e as nossas é patética. Naquelas, a capacidade de descrever conflitos, mostrando ângulos diferentes dos casos e permitindo ao leitor fazer seu julgamento.

Aqui, o monolitismo absoluto, primário. Qualquer explicação que possa reduzir o impacto das matérias é deixada de lado, para não “esfriar” a denúncia. Leitores que já dispõem de uma exigência maior de qualidade são obrigados a engolir fatos de um ângulo só, como um pianista que só sabe tocar com um dedo.

Vai mudar, não se tenha dúvida. A cada dia que passa, mais leitores, mais jornalistas e mais jornais se chocam com esse primarismo. Nos veículos mais responsáveis, já se nota claramente a preocupação com a ética e a qualidade jornalística. Há um movimento nos sindicatos e nas faculdades para discutir essas questões.

É questão de tempo para que esse primarismo seja varrido do mapa, institua-se o verdadeiro pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas e a mídia avance degraus no sentido da qualidade e da defesa dos direitos individuais.

Mas quantos mortos a mais serão deixados pelo caminho?

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