Por Weden, publicado em Jornal GGN –
Atenção: no futuro este texto poderá ter sido uma ficção. Mas todo o passado é verdadeiro.
No dia 27 de março, contrariando manifestos de milhares de juristas, vozes discordantes entre advogados, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, personalidades internacionais, sindicatos, intelectuais e acadêmicos, artistas, a OEA, a CNBB, e toda uma Rede pela Democracia, a OAB insistiu em apoiar o Golpe de 2016. Mas para para pensar o futuro, vamos lembrar do passado, com esta passagem brilhante do artigo de Denise Rollemberg, Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974. Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Orgs.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96)
“A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974)”.Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Orgs.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96). Denise Rollemberg ∗ À época a classe dos advogados não vacilou um só instante. J.B. Viana de Moares.2 No dia 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB realizou uma reunião ordinária. Era a primeira após o golpe de Estado que depusera alguns dias antes o presidente João Goulart. A euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal. Definindo todos os conselheiros como “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição”, o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti3 , orgulhoso, se dizia “em paz com a nossa consciência”.
A reunião é uma celebração. Nos embates que marcaram os primeiros anos da década de 1960 e, em particular na crise do pré-golpe, a OAB chama para si a defesa da ordem jurídica e da Constituição ameaçadas, inclusive, com a cumplicidade do presidente, cujo governo era “influenciado por um Ministério do Trabalho pelego”5 . Rejeitando-o radicalmente, a derrubada do presidente eleito pelo exército garantiria a democracia. A celebração da vitória sobre o “totalitarismo” das “forças subversivas” identificadas às reformas e ao “populismo”.
Povina Cavalcanti referiu-se à posição da OAB quanto à reforma constitucional rejeitada no ano anterior.6 A reforma agrária aparece como o centro da polêmica do conjunto de reformas pretendidas. Afirmava-a
“perigosa como precedente, [pois] atenta contra o direito de propriedade e resulta totalmente desnecessária ao fim declarado, o de proporcionar aos trabalhadores rurais o acesso às terras”. Acreditavam os conselheiros que “dentro da Constituição da República, como na legislação ordinária em vigor, há elementos suficientes para a mudança da estrutura agrária do país, atendendo ao homem e às necessidades da produção, sem que sejam golpeados os direitos fundamentais dos cidadãos, com grave risco para a ordem jurídica”.
Assim, o presidente da OAB continua:
“….antecipando-nos à derrocada das forças subversivas, acionadas por dispositivos governamentais, que visavam, já sem disfarces, à destruição do primado da democracia e à implantação de um regime totalitário, no qual submergeriam todos os princípios da liberdade humana, tivemos a lucidez e o patriotismo de alertar, na memorável reunião extraordinária de 20 de março p findo, os poderes constiuídos da República para a defesa da ordem jurídica e da Constituição, tão seriamente ameaçadas. Mercê de Deus, sem sairmos da órbita constitucional, podemos hoje, erradicado o mal das conjuras comunosindicalistas, proclamar que a sobrevivência da Nação Brasileira se processou sob a égide intocável do Estado de Direito. Que a providência Divina inspire os homens responsáveis desta terra e lhes ilumine a consciência jurídica, pois que sem o direito, como pregou Rui Barbosa, não há salvação”
E, concluindo a sessão:
“’Srs. Conselheiros, se mais não fizemos em 1963, foi porque as condições adversas da vida nacional não o permitiram. Queira Deus que um Governo isento, de gabarito que não se meça pela altura dos demagogos, nos dê condições para servir à classe e ao Brasil’”. Por fim, a consagração das palavras do Presidente Povina Cavalvanti “coroadas por uma salva de palmas dos presentes”.
9 A lembrança de 1964 aparece em 1976, na VI Conferência Nacional da OAB, no discurso de J.B. Viana de Moares, representante da delegação de São Paulo. A redefinição da Ordem quanto à posição assumida, na época, não redefinia as palavras do “ilustre advogado paulista”:
“ ‘Quando explodiu o grande movimento de 1964, para impedir o prosseguimento do caos, o povo acolheu a providência com radiosa expectativa. À época, a classe dos advogados não vacilou um só instante. Colocou-se ao lado da nova autoridade que buscava, com patriotismo, o concerto da paz social, do império da lei e, notadamente, da ordem coletiva. Aderiu afetiva e civicamente à transmutação ocorrida, hipotecando toda a energia de sua inteligência às novas perspectivas que se abriam, acreditando nos novos horizontes que se descortinavam para a democracia brasileira’
Entretanto, a OAB mudou de posição. Saiu do clássico anticomunisto da época, com todos os jargões e lugares-comuns conhecidos, para o enfrentamento do regime. Marly Silva da Motta e André Vianna Dantas percorreram o caminho da OAB, da participação no golpe à luta pela redemocratização. Ao longo do percurso, os autores destacaram os temas recorrentes nas reuniões do Conselho Federal que mobilizaram a Ordem, levando-a de um pólo a outro.11 Procurarei, então, trabalhar algumas dessas questões, refletindo sobre a opinião e a cultura política da OAB que explicam as posições assumidas, as rupturas e permanências, a memória construída de uma importante organização civil sob a ditadura, memória que foi capaz de ler “à época, a classe dos advogados não vacilou um só instante” pelo seu avesso”..