Sucesso de bilheteria e indicado ao Oscar 2025 como melhor filme, “Ainda estou aqui” nos adverte que a História é feita de muitas histórias e que temos um longuíssimo passado em que a ação da memória é indispensável para a cultura de resistência.
Por Inês Ulhôa, compartilhado de Correio do Livro
“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, é um filme excepcional. Conta a história de uma mulher e de uma família apanhadas pela tragédia que se abateu sobre o Brasil a partir do Golpe Militar (1964-1985), de tristes memórias para o país. O roteiro, inspirado no livro de mesmo título, escrito por Marcelo Rubens Paiva para narrar a história de sua mãe Eunice Paiva, é rigoroso no encadeamento dos fatos e se materializa na perda e na dor à luz do medo que se desabou sobre muitos brasileiros. Uma obra de arte que suscitou lembranças e que significa muito nos tempos atuais, não apenas nas formas visíveis de um enfrentamento contra os medos e os retrocessos, mas uma luta constante ao nível da consciência crítica de homens e mulheres frente às injustiças, imprescindível para a esperança de mudar o mundo, torná-lo melhor.
Precisamos, sim, não à luz do medo, falar sobre as torturas, as mortes e os desaparecimentos deste obscuro período da história brasileira. A ditadura militar brasileira produziu anos de chumbo e de sangue, esmagando os adversários de forma cruel, cassando a cidadania, a liberdade e a voz daqueles que ousaram. Obviamente, há muitas camadas que o filme “Ainda estou aqui” não revela, mas entendamos que não há cobrança nisso, exatamente porque elas são muitas e complexas. Para tanto, as memórias são imprescindíveis e aqui lembremos o papel da Universidade em sua busca pelo conhecimento, pela informação e pelo saber nos desafios das dúvidas e da ciência para os transbordamentos pensáveis na transformação do mundo.
Todos temos que lembrar! Este é um alerta constante que exige o entendimento, o esclarecimento das realidades e que alimenta nossos sonhos na luta por justiça social. Nessa perspectiva, a importância de valorizar as tradições e os saberes para a conservação das memórias é imperativo, pois tem-se no contra-ataque aqueles que querem tornar-se senhores da memória e do esquecimento, os mesmos que buscam desde sempre dominar as sociedades, manipulando a memória coletiva e impondo silenciamentos. “Todos temos que lembrar”! Este, além do sentido de vigilância, é também o título de uma coletânea publicada pela Editora UnB, em 2013, que, conforme lembra o autor do texto de mesmo título, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, o estado desalmado da ditadura militar atacou “com violência maior o que mais assusta os tiranos: a universidade, o santuário do conhecimento, a trincheira do livre pensamento, a sede da consciência crítica. Profanaram o espaço desta universidade, a Universidade de Brasília, a academia que estava no coração da nova ordem sem coração, o regime que combatia a força das ideias pela ideia da força armada, desalmada, desatinada”.
Na UnB, prisão, tortura e desaparecimentos
A Universidade de Brasília, que tinha entre seus quadros democratas e defensores dos ideais de uma educação libertadora, sofreu os horrores da ditadura militar. Darcy Ribeiro, seu primeiro reitor, procurou redefinir as exigências da modernidade para a Educação. Para tanto, evocou o quão é importante a formação de estudantes como novas vanguardas de luta contra o sistema e que pudessem exprimir, pelo pensamento e pela ação, solidariedade para com os jovens que não podiam ter o mesmo acesso ao ensino superior. Não escapava a ele a ideia de tornar a educação disponível para além dos círculos da elite, acompanhando o pensamento de Anísio Teixeira de colocar na mesma escola pública pobres e ricos.
A UnB nasceu, assim, com a marca de projeto inovador destinado a pensar na democratização do ensino. Para se entender o processo e os conflitos que permearam a história da UnB é preciso conhecer também seus personagens. É sabido que apenas dois anos depois de sua criação, em 1962, sucedeu o golpe militar, mudando as condições políticas do país, provocando efeitos devastadores nas universidades e constrangimentos à liberdade de expressão e a qualquer participação política de suas comunidades. A interferência direta de militares na Universidade de Brasília resultou em prisões, expulsões e desaparecimentos, como conta o livro “Paixão de Honestino”, publicado em 2017 pela Editora UnB, de autoria de Betty Almeida.
O desaparecimento do estudante Honestino Guimarães no fatídico ano de 1973 deixou órfã a militância resistente ao golpe militar na UnB. Sua liderança e carisma foram responsáveis pelos muitos amigos e seguidores de seus ideais. Dentre essa legião de amigos e militantes estudantis sempre presentes, estava Betty Almeida, que trouxe à realidade atual, ainda circunscrita pelas sequelas da ditadura militar, episódios daqueles anos de resistência. Em seu livro, Betty Almeida recupera a trajetória desse militante estudantil que enfrentou com coragem a sua condição no mundo.
Muitos dos fundamentos históricos e sociais do movimento estudantil e do período em que durou o golpe militar estão contidos na narrativa de Betty Almeida. E ela alerta: “que ninguém se esqueça, sobretudo, de que os passos ainda trôpegos com que avançamos hoje para o futuro seguem a trilha que ele (Honestino) e outros de sua têmpera ajudaram a abrir”. Honestino sempre se manteve firme nos princípios que constituíram o seu existir. Nunca quis a violência, mas foi uma das suas principais vítimas. Foi pela sua esperança e crença nos ideais universalizantes, como liberdade, verdade e dignidade humana que ele lutou. E perdeu a vida. Até hoje não se sabe como. Desapareceu em 10 de outubro de 1973 e levou consigo a sua certeza de não aceitar a condição de oprimido.
Por isso, conjugar memória e tempo histórico é uma necessidade, porque traduz um contexto de luta por projetos transformadores e revolucionários de diferentes conteúdos e dimensões com fortes impactos culturais, políticos, econômicos e civilizatórios. Foi o que fez o professor Jaime G. de Almeida em sua obra “Universidade de Brasília: Ideia, diáspora e individuação”, publicado pela Editora UnB em 2017. Ao relacionar tempo histórico e memória em sua obra, o professor Jaime Almeida traz à reflexão fatos e histórias não contadas ou que valem a pena serem recontadas. É bom que se destaque que, consciente da importância de se provocar a memória de indivíduos, o que permite traduzir uma interpretação histórica, Almeida possibilita também a compreensão da tragédia que se abateu sobre a Universidade de Brasília nos tempos sombrios do regime ditatorial no Brasil advindos com o golpe militar em 1964. Entretanto, Almeida soube construir um enredo significativo, compreendendo acertadamente que a memória é também social coletiva, na perspectiva que apontou Maurice Halbawchs, segundo o qual, nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós.
É na profundidade daquele período histórico, não apenas na própria experiência, mas também na reflexão de diversos sujeitos sociais, que se compreende os fatos, até porque “não basta simplesmente saber que alguém foi preso ou demitido aqui ou acolá. É preciso conhecer a perversão introduzida pelo regime político no funcionamento das instituições e no comportamento das pessoas que o apoiavam e se apoiavam nele. Para isso, é indispensável entrar em detalhes: o subterrâneo das declarações públicas, opiniões expressas em reuniões nas salas fechadas, as cartas francas de uns, as cartas secretas de outros, os pretextos divulgados e as verdades escondidas”, conforme declara o professor Roberto A. Salmeron, em sua obra “A universidade interrompida: Brasília 1964-1965”. Publicado originalmente em 1999, a Editora UnB publicou em 2007 uma segunda edição revista.
Roberto Salmeron também foi vítima dos algozes que se instalaram na Universidade de Brasília. Nesta obra, o autor narra os acontecimentos dos primeiros anos da Universidade e da intervenção militar, que teve “interferência direta e contínua no seu funcionamento, prisões e expulsões de professores e de estudantes, tendo sido invadida três vezes por tropas militares”. Um dos episódios marcantes desse período é o pedido de demissão em protesto da maioria de seus professores em 1965, quando, já sob intervenção militar, a administração da Universidade demite alguns professores considerados ideologicamente suspeitos ou acusados de cumplicidade com a “subversão estudantil”. Em resposta, 223 professores pedem demissão coletiva, entre eles, Roberto Salmeron. Uma análise necessária, para compreender os ideais que credenciaram a Universidade de Brasília a despontar como liderança por sua inovação em seu projeto pedagógico e como vítima do Estado autoritário que desvirtuou o seu projeto originário. Em que pese a Universidade ter sido ultrajada pela força policial militar, a julgar pelos depoimentos contidos nesta obra, foi também espaço privilegiado para observar as ricas ideias que ali germinaram em nome de um projeto novo de universidade.
É o passado que se faz presente
Porque sabemos que o passado reconstruído não é um refúgio, como nos lembra Ecleia Bosi, no ensaio “Memória: enraizar-se é um direito fundamental do ser humano”, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar, em que a memória deixa de ter um caráter de restauração do passado e passa a ser a memória geradora do futuro: memória social, memória histórica e coletiva, é que temos também a obra de Mônica Tenaglia, “As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira”, publicado pela Editora UnB em 2024, e contemplada com o prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria História e Arquivologia. É desse sentido do passado, dessa memória construída, que o livro de Mônica Tenaglia se torna uma importante referência porque traz luz para entender questões e narrativas contraditórias sobre o passado de um país que viveu os horrores de uma ditadura militar sangrenta. A análise da autora gira em torno da Comissão Nacional da Verdade e das comissões instaladas em alguns Estados da Federação, municípios, universidades e em representações profissionais e de entidades para a garantia de princípios sobre o direito de saber, o direito à justiça e o direito às reparações, na qual ressalta o papel dos arquivos para a efetivação desses direitos.
Estamos falando do Brasil recente que tem um passado a ser mostrado. Sobre essa questão, Mônica Tenaglia lembra que os arquivos são fundamentais para a defesa dos direitos humanos e a proteção de direitos civis, “eles são essenciais para as investigações sobre violações de direitos humanos, ao direito de saber o que aconteceu com as vítimas de determinado período repressivo e ao direito coletivo da sociedade de conhecer a verdade sobre o seu passado”.
Por isso, a atualidade do esforço do diretor de “Ainda estou aqui”, amplia o repertório da necessidade que temos de incluir e fazer avançar o debate a respeito de como a memória, como valor histórico, é transmitida e de como ela se revela como questão de extrema importância para a história brasileira cujos contornos ainda merecem atualizações constantes. Há coisas que não cabem em um filme, mas há aquilo que nos provoca, que nos fazem pensar para além da tela como resistência ao apagamento da história, para que não esqueçamos jamais! Para que não esqueçamos do que importa!
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Livros citados neste texto e publicados pela Editora UnB e que podem ser adquiridos na Livraria do Campus ou pelo site www.editora.unb.br
– “Todos temos que lembrar: A lição e a missão do jornalista”, de Luiz Cláudio Cunha, José Geraldo de Sousa Junior, Luiz Gonzaga Motta, Flávio Tavares, Cristovam Buarque, Maria Jandyra C. Cunha
– “Paixão de Honestino”, de Betty Almeida
– “Universidade de Brasília: Ideia, diáspora e individuação”, de Jaime G. de Almeida
– “A universidade interrompida: Brasília 1964-1965”, de Roberto A. Salmeron
– “As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira”, de Mônica Tenaglia