Memórias da pior noite do Be Bop a Lula

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Por Walterson Sardenberg, jornalista

Lembranças do tempo em que cabeludo não podia dar 40 passos na cidade de São Paulo sem levar uma geral




Sim, os nazistas perseguiam os judeus. Mas sem exclusividade. Também encarceravam ciganos, homossexuais e deficientes físicos, entre outras minorias. Da mesma maneira, e guardadas as devidas proporções, a ditadura militar no Brasil não se limitava a eliminar a esquerda armada. Com diferentes graus de bronca, também detestava sindicalistas, professores, democratas, sociólogos, antropólogos, advogados, jornalistas, cineastas, músicos e uma longa lista, que incluía, em especial, uma categoria nada organizada: os roqueiros. Delegados de polícia paulistanos, sobretudo, tinham particular ojeriza de cabeludos. Não viam a hora de raspar o cocoruto dos infelizes.

Pobres roqueiros. Não podiam caminhar mais de quarenta passos nas ruas de São Paulo sem que fossem parados por policiais para uma rigorosa revista. Na metade dos anos 70, os meganhas adoravam “dar uma geral” em busca de um fuminho, também conhecido por jazco, jererê, bagulho, chá, baurette, légues dum, coisinha e uma graúda coleção de etcéteras. Ato contínuo, o ritual seguia, sem mais delongas, com um ríspido imperativo: “Cospe!”.

Tratava-se de um exame empírico para constatar se o cidadão — na verdade, não existiam cidadãos naqueles idos — havia ou não dado uns tapinhas num baseado. Se estivesse no barato, não teria, segundo os cientistas de cassetete, saliva suficiente para uma simples cusparada, dessas que os craques profissionais do esporte bretão dão a cada 2 minutos.

Os roqueiros eram mesmo desafortunados. A esquerda nacionalista, em geral, também não gostava deles, vistos como alienados e americanizados. Àquela altura, Plinio Marcos escrevia que o movimento hippie havia sido organizado para vender instrumentos Fender, Gibson, Ludwig e afins ao mundo tolo e despolitizado.

Glauber Rocha ia além. Bradava que o rock era a agenda da CIA para “desvirilizar a juventude latino-americana” e torná-la refratária aos ideais revolucionários no Terceiro Mundo. Como sempre contraditório, no dia a dia Glauber vivia como um hippie, à Freak Brothers, recebendo em casa os amigos absolutamente nu e tragando um baseado atrás do outro. Mas nem mesmo seu velho amigo Luiz Carlos Maciel, chamado de guru da contracultura no Brasil e astro do segundo curta do cineasta baiano, podia lhe falar de rock sem levar um sonoro passa-fora.

Por essas e outras, era muito natural que os roqueiros vivessem em guetos. Um deles tinha o nome de Be Bop a Lula. Era uma casa noturna instalada no começo da avenida Santo Amaro, em São Paulo, bem perto de onde funcionou, mais de uma década antes, a Cord Discos, loja de um pioneiro do rock no Brasil, Ronnie Cord. Pois é, o roqueiro de “Rua Augusta”, composta pelo pai dele, Hervé Cordovil, tinha um lojinha da avenida Santo Amaro.

Uma curiosidade: lançada em 1964, a música, embora ingênua, foi o primeiro rock brasileiro com a letra censurada pelos militares. A terceira estrofe teve de ser mudada. A original dizia: “Comigo não tem mais esse negócio de farda/Não paro o meu carro nem se for na esquina/Tirei a 130 a maior fina”.

O Be Bop, a rigor, não passava de um corredor. No primeiro cômodo havia um bar, onde se trocava por bebida os dois tíquetes que o ingresso na boate conferia de bônus. A seguir se descortinava o espaço maior, com um palco e uma diminuta arquibancada, com uma pista de dança no meio.

Por fim, existia um terceiro cômodo, com mesas e cadeiras. Este tinha menos iluminação, permitindo carícias mais íntimas aos casais que se formavam, às pencas, nas gloriosas noitadas. Ou nem tão gloriosas assim. Era fácil perceber, com frequência, roqueiros de araque entre a garotada. Você adivinhou: policiais à paisana, doidinhos para botar um roqueiro genuíno daqueles na parede e intimidar: “Cospe, cabeludo!”.

Esses meganhas deviam achar o Be Bop um antro de excentricidades. A começar pelos dois porteiros. Eram, provavelmente, os únicos leões de chácara magros e pouco musculosos da noite paulistana, ambos negros e com os cabelos eriçados no melhor estilo Jimi Hendrix. Duas figuraças. Um alto e outro baixo, de modo que nós, fãs de blues, os apelidamos de Buddy Guy (o comprido) e Junior Wells (o de pouca estatura), com quem, de fato, pareciam um bocado. Ainda no terreno das exclusividades, eram a única dupla de leões de chácara que não intimidava ninguém. Amistosos, ardilosos, matreiros, acabavam subornados por um mísero baseado, facilitando a entrada da turma do vira-de-cabeça-pra-baixo-e-não-cai-uma-moeda.

Não sei se a dona do Be Bop sabia dessa fraude contábil. É possível que fizesse vistas grossas. Aliás, vista grossa. A dona do Be Bop era outra figuraça. Alta e magra, Dona Sabine tinha um olho de vidro, como uma vilã de telenovela mexicana, de quem também emprestava o sotaque castelhano. Nascera na Argentina, assim como seu irmão, Billy Bond — que, mais tarde, seria vocalista do Joelho de Porco. Por sinal, aquele trecho da Santo Amaro parecia um consulado argentino.

Bem ao lado do Be Bop, afinal, funcionava um barzinho, muito mais acanhado, comandado pelo músico Cacho Valdez e sua bela guitarra semiacústica – um conterrâneo da dona do Be Bop. O tal barzinho se chamava Blue Note, mas nada tinha a ver, apesar do nome, com a célebre casa noturna nova-iorquina de jazz. Consistia apenas em um reduto de blueseiros. Vez por outra, também tocava rock argentino: Charly Garcia, Pappo Napolitano, Luis Alberto Spinetta, Aquelarre e outras papas finas.

No Be Bop, a música era outra. Às terças, quartas e quintas, as potentes caixas acústicas soavam o ainda mais poderoso rock’n’roll. Sempre em fita. O repertório não mudava muito. Todas as noites rolava “Johnny B. Goode”, com Chuck Berry; “Jailhouse Rock”, com Elvis; “Back in the U.S.R.R.”, com os Beatles; “Rock’n’roll” e “Black Dog”, com o Led Zeppelin; “Can’t Get Enough”, com o Bad Company; “All Right Now”, com o Free e “Street Fighting Man”, com os Stones. Além, claro, de “Be Bop a Lula”, com Gene Vincent. Também se ouviam rocks brasileiros. Dos que relembro, “Mamãe Natureza”, com Rita Lee; “Jack, o Estripador”, com o Made in Brazil, “Back in Bahia”, com Gilberto Gil; “Como Vovó Já Dizia”, com Raul Seixas e “Hey, Boy”, com os Mutantes. Ou seja, o disc-jockey — ainda não se usava a sigla DJ — conhecia o ofício e a história do rock.

Se de terça a quinta-feira o som se restringia às fitas, às sextas e sábados tinha também show ao vivo, com duas entradas. E que shows. Pintava de tudo. Vi Alceu Valença sendo xingado pela plateia que, enfurecida, gritava “Rock! Rock!”. Ele reagiu com outros palavrões, antes de brandir o microfone e detonar uma apresentação eletrizante, incluindo “Vou Danado Pra Catende” e outras pérolas do disco “Vivo!”.

Gente de todo o Brasil tocava no Be Bop. Da Bahia veio o som progressivo do Mar Revolto. Do Paraná, A Chave (que depois se tornaria o Blindagem), com letras do poeta Paulo Leminski. Do Rio Grande do Sul, o Liverpool Sound, rebatizado de Bixo da Seda, tendo à frente Mimi Lessa — o guitarrista mais próximo de Keith Richards no rock nacional. Apareceu banda até da Argentina, provavelmente a convite de Dona Sabine, a vilã de telenovela chicana. Lembro-me do Burmah e seu hard rock progressivo. Muito bom, por sinal.

Como não poderia deixar de ser, a maioria dos grupos nascera na própria Pauliceia. O Made in Brazil era presença constante, com o crítico musical Ezequiel Neves fazendo backing vocals — de preferência, fora do microfone. Outras bandas assíduas: Sindicato (com Ricardo Petraglia e Eduzão Alfa), Humauaca (do argentino – mais um! — Willy Verdaguer, com John Flavin Almeida Prado na guitarra) e Som Nosso de Cada Dia (com Pedrinho, Pedrão e Manito). De qualquer maneira, as melhores apresentações foram dos Novos Baianos, então passeando a mil na garoa paulistana.

Na ocasião, Moraes Moreira já havia deixado o grupo, o que proporcionou a Pepeu Gomes levar a banda em uma direção muito mais roqueira. Não dá para esquecer dos Novos Baianos mandando ver em “Jorge Maravilha” (do Chico Buarque) e, sobretudo, em “Barra Lúcifer”, ambas cantadas por Paulinho Boca de Cantor, um intérprete de primeiríssima. Era um som pesadíssimo, mas cheio de manha e molejo.

Tocando ou não, os Novos Baianos estavam sempre no Be Bop. Nem tanto Pepeu, Baby e Paulinho Boca de Cantor, ressalve-se. Mas sempre Galvão e aqueles agregados que foram entrando na banda mais por amizade do que, digamos, em virtude de um inegável talento artístico. Os caras se ajeitavam tocando percussão no grupo, casos de Gato Félix (o mais assíduo no Be Bop), Charles, Baixinho e Bolacha (uma mistura de Buddy Holly com hippie da praça da República, único de óculos na foto abaixo). Dizem que a partilha da receita financeira dos Novos Baianos era sempre equânime e democrática. Pensando bem, dá para entender porque Moraes Moreira pedira o boné.

A presença constante desses Novos Baianos, que nem eram tão novos e muito menos tão baianos assim (Baixinho nascera em São Paulo), se explicava por um motivo antes de tudo geográfico: o grupo, ainda vivendo em comunidade, morava todo junto em um casarão da rua Casa do Ator, uma travessa da avenida Santo Amaro relativamente perto. Estive por lá umas duas ou três vezes, levado pelo amigo Márcio Gaspar, que se tornara chapa dos caras e do Dinho, empresário deles.

Acho que o dia fatídico do Be Bop a Lula ocorreu no ano de 1976, embora não tenha certeza. Curioso isso: lembro até das músicas que tocavam, mas não do ano em que aconteceu a noite mais inesquecível da casa noturna. Talvez um psicanalista explique. A coisa foi tão inusitada que esqueci até que banda tocou naquela noite.

Era uma época de incertezas. Ao mesmo tempo em que o general Geisel acenava com “abertura” e “diálogo”, o pau comia. Não tinha alívio. No ano anterior, os ditos porões da ditadura mataram o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Falava-se, à boca pequena, que esses assassinatos eram um golpe da linha dura, à revelia do próprio governo, contra os ares menos asfixiantes propostos pelo general Geisel e outro general, o Golbery. Ou seja, os milicos estavam se desentendendo entre si.

Seja como for, o governo não parecia tão propenso assim ao “diálogo” e à “abertura”. Prova disso foi o “pacote de abril”, já em 1977, que cerceava as tímidas vitórias da oposição e impunha a bizarrice – ainda não se usava esta expressão a torto e direito – dos senadores “biônicos”. E o pau continuava comendo.

Esse clima decerto estimulou os truculentos delegados paulistanos na perseguição aos roqueiros. Um deles havia acabado, recentemente, com um show na Tenda do Calvário, quase uma edícula da Igreja do Calvário, defronte a praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros. Botou todos os cabeludos para correr. Se a estupidez não respeitou nem mesmo a proximidade da igreja, o que dizer do Be Bop a Lula? A igreja mais próxima, a de São Gabriel, na avenida do mesmo nome, ficava a quase 1 quilômetro.

A vizinhança do Be Bop, na realidade, era de um paganismo convicto. Do outro lado da rua, cintilava um pequeno pé-sujo, mais conhecido por Bar do Bigode, embora não fosse o nome oficial. Era administrado pelo próprio, com seu moustache semelhante ao de Frank Zappa, sua barba sempre for fazer (ainda não era moda) e sua voz de baixo profundo. Ali, bebericava-se a baixo custo. Parte dos frequentadores do Be Bop, aliás, saía da boate para biritar no Bar do Bigode e voltava, várias vezes por noite, contando com a aquiescência herbívora de Buddy Guy e Junior Wells.

Foi então que alguém a minha frente deu o alarme: “Sujou!”. O aviso era concomitante ao gesto de passar os três maiores dedos da mão direita três vezes no alto da camisa, nas proximidades do ombro, inequívoco sinal codificado da desconfortável presença de um policial xereta. Houve um alarido ressonante. O “Sujou!” alastrou-se em progressão geométrica. Sustos. Gritos gerais — agora sem a sutileza dos três dedos riscando o tecido.

O ingresso do grupo de policiais no esfumaçado recinto não teve a força de um putsch. Revelou-se algo desordenado. Ainda assim, ficou claro que deveríamos ir saindo da boate, um a um, com as mãos ao alto, num faroeste caboclo. Ao passar pela portaria, vi Buddy Guy e Junior Wells sendo humilhados pelos gambés. Decerto, foram os que mais sofreram naquela noite.

Prova manifesta de que a “operação” tinha sido bem planejada, havia dois ônibus estacionados bem à porta do Be Bop. Fomos sendo empurrados para dentro deles. Mandado de busca? Nem pensar. Para que autorização do juiz? Na ditadura não tinha disso, não. Habeas corpus? Não adiantava gastar o latim. Estávamos todos em cana, “para averiguação”, segundo informou, emburrado, um dos gambés. O jeito era se ajeitar e aguardar pelo desenlace.

E assim fomos convidados a esticar a noite espremidos nos bancos de uma delegacia. Não me lembro em que distrito policial. Só recordo das recorrentes galhofas dos gambés, que se divertiam muito com tudo aquilo. Buddy Guy e Junior Wells, negros e durangos, em especial, continuavam sendo espicaçados. Horas se passaram até que, um a um, acabamos levados para a sala do delegado. Eu tinha 18 anos e nenhuma passagem pela polícia. Mesmo assim, ouvi uma descompostura do delegado, que me fez telefonar, diante dele, para o meu pai, de quem requisitou a presença. Meu pai mandou um advogado.

Não sei dos outros. Ou melhor, não me recordo, dado o compreensível desconforto da situação. Mas não cheguei a entrar na cela. Fui liberado quando já amanhecia.

Dei um tempo antes de retornar ao Be Bop. Deixei passar umas duas semanas. Na volta, fiquei sabendo de outros detalhes. Diziam que Bolacha, aquele agregado dos Novos Baianos (tocava bongô no grupo), conseguira escapar da blitz sem maiores agruras. Por um motivo prosaico: por acaso, estava numa das cabines do banheiro e, assim, sua presença passou batida. Comentou-se que, apesar do susto, no seu caso, em particular, o desagradável episódio havia sido, de certo modo, até lucrativo.

Bolacha tivera o bom senso e a paciência de aguardar, no cubículo, que a calmaria se restabelecesse. Só então, recomposto, saiu do toalete. Aproveitou o caminho até a rua para ir recolhendo, passo a passo, com nuanças de garimpeiro, os excedentes que a turma, por prudência, dispensara ao chão no calor do infortúnio.

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