Memórias e anatomia das (in)justiças climáticas

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Lembro-me até hoje da ocasião na qual eu cogitei me tornar uma jornalista. Um dia após o Natal, em dezembro de 2004, os noticiários explodiram manchetes de um violento tsunami que havia atingido 14 países, em sua maioria localizados na Ásia. A mesma terra que tremeu as águas do Oceano Índico, soterrou milhares de pessoas, famílias e sonhos afogados em um dos maiores desastres ambientais e climáticos da história. Como eu estava em recesso escolar, me vi compulsiva em acompanhar dia e noite notícias, números e pronunciamentos diante daquela catástrofe. Comparava o conteúdo das informações de acordo com as emissoras na TV, e sentia falta de saber mais sobre as vítimas além das estatísticas de morte. Sim, eu estava extremamente afetada e impotente, mesmo sem muito conhecimento sobre a dinâmica dos desastres ambientais e suas cicatrizes sociais, raciais e culturais. A disputa de narrativas me encontrou ali, em meio àquela onda de destruição, perdas e danos irreparáveis.

Por Andréia Coutinho Louback, compartilhado de Projeto Colabora




Corta para agosto de 2005. Eu tinha 14 anos e cursava o primeiro ano do Ensino Médio quando, novamente, imagens e manchetes sobre o furacão Katrina, nos Estados Unidos, pipocaram os noticiários de absolutamente todas as mídias. Naquela época, eu já começava meu dia sintonizada na rádio enquanto eu me arrumava para a escola. A grande questão foi que eu simplesmente não conseguia dormir, e pulava de jornal em jornal procurando por mais atualizações sobre aquela tempestade tropical que havia atingido a categoria 5 no litoral sul. Enquanto o meu então professor de geografia tentava nos explicar a complexidade do que estava acontecendo, o professor de física também se esforçava para contextualizar o factual com abalo sísmico e suas escalas na física. O que era possível fazer? Como agilizar as buscas e o socorro? Como as populações sobreviventes iriam se recuperar – física e emocionalmente – de tantos traumas e cenas de horror?

Talvez eu nem precise descrever que, em janeiro de 2011, o mesmo caos de um desastre climático voltou a me aterrorizar também durante as férias, mas desta vez muito mais perto – geograficamente – de mim. A Região Serrana do Rio de Janeiro, estado no qual eu nasci, estava desabando em meio às horas de chuvas torrenciais. Meus amigos, vizinhos e conhecidos foram para Friburgo procurar seus familiares desaparecidos, alguns como voluntários das equipes de buscas e outros como curiosos e desacreditados da proporção da tragédia socioambiental. Naquele mesmo ano, ingressei na faculdade de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Porém, todas essas memórias de desastres só se tornaram parte da minha prática profissional muito tempo depois.

Meu exercício de recapitulação de quando a justiça climática me encontrou é intencional em um mês de tanta desesperança. Subitamente, chegamos à metade de 2022 em intenso luto e um silêncio ensurdecedor em memória ao Bruno Pereira e Dom Phillips, defensores ambientais brutalmente assassinados, esquartejados e incinerados no Vale do Javari, no estado do Amazonas. Assistimos as injustiças da justiça na audiência do caso da menina de 11 anos, estuprada e impedida de fazer um aborto pela juíza Joana Ribeiro, em Santa Catarina. Jornalistas ambiciosos por furos de reportagem e audiência ao vazar, de forma não autorizada, a gravidez da atriz Klara Castanho, de 21 anos, que decidiu dar a criança, fruto de um estupro, para adoção. São tempos árduos para mulheres, para ambientalistas e para quem acredita que podemos reconstruir o Brasil, como eu ainda acredito.

A justiça climática caminha ao lado da justiça racial, dá as mãos à justiça de gênero e abraça a justiça intergeracional. Entre as múltiplas crises – climática, sanitária, política e econômica – que estamos vivendo, vale resgatar a anatomia das nossas memórias que dão sentido à nossa luta pelo amanhã das presentes e futuras gerações. Quem sabe essas memórias que nomeiam os problemas serão as mesmas que vão nos ensinar o caminho das soluções estruturais para tantas violações de direitos que nos atravessam.

Justiça climática e racial são dois dos macrotemas da minha vida. Eu falo, escrevo, respiro e brigo por eles. Sou monotemática sem constrangimento algum. Sinto-me muito honrada pelo privilégio de estrear como colunista do Projeto Colabora, onde pretendo expor minhas reflexões sobre onde estamos em tempos de crise climática e onde podemos chegar em um ano tão decisivo para história política e socioambiental do Brasil.

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