Mentecaptos na história e na literatura brasileiras

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Marina Lemle, jornalista, Blog de HCS-Manguinhos – 

José Roberto Franco Reis
José Roberto Franco Reis

O artigo “O mentecapto de Itaguaí, história, loucura e saber psiquiátrico: diálogos historiográficos em torno de “O alienista” de Machado de Assis” interpreta a obra como um testemunho histórico e crítico dos momentos iniciais de implantação da medicina mental no Brasil e dos hospícios. O Blog de HCS-Manguinhos entrevistou o autor José Roberto Franco Reis, que é professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-FIOCRUZ), integrante do programa de pós-graduação em Educação Profissional em Saúde da EPSJV e professor adjunto da Universidade Veiga de Almeida com experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: comportamento político, cultura de direitos, políticas sociais, história da cidadania, história da saúde e da psiquiatria.

Na entrevista o autor fala de como os seus estudos de Foucault influenciaram suas leituras da obra de Machado de Assis e revela: ‘toda vez que me debruço sobre O Alienista descubro coisas novas e saio encantado com a prosa crítica e a pena ferina e cáustica, embora sutil da obra machadiana’.

 

1. No conto “O alienista”, de 1882, Machado de Assis discute as relações entre saber e poder na psiquiatria, antecipando um debate que só ganharia fôlego quase um século depois, com a História da loucura, de Michel Foucault. O que a historiografia nos diz sobre isso?

Diz muita coisa. Sabemos que hoje existe uma produção historiográfica sobre o tema da loucura, do saber psiquiátrico — não só produzida por historiadores — muito rica e pujante, com uma notável qualidade teórica e sólidas pesquisas empíricas.  Há muito que se fazer ainda diante da dificuldade sobretudo de acessar fontes, que estão por aí se perdendo e muito desorganizadas.  

Agora mesmo na Casa de Oswaldo Cruz (COC) um importante projeto de pesquisa que está em andamento se debruça sobre um rico e volumoso material  localizado na antiga Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro (hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira – IMASJM) — projeto que envolve várias instituições sob a coordenação da COC — e a primeira tarefa é meter a mão na massa documental literalmente, isto é, higienizá-la e organizá-la.  Do contrário a pesquisa fica comprometida.  

Em relação ao conteúdo mais específico da pergunta, a compreensão de que a novela do Machado antecipa — eu diria pressagia, prenuncia — um debate de quase um século depois, se deve à compreensão de que a História da Loucura do Foucault de 1961 — traduzida no Brasil em 1978 — é um marco na reflexão sobre o tema e propicia uma inflexão altamente provocadora sobre a questão na medida em que instaura uma história descontínua que desnaturaliza a loucura e mostra as relações incômodas entre saber e poder. Afeta, com suas reflexões, não só os estudos de caráter histórico, porém mais amplamente o conjunto de sujeitos que militavam profissionalmente no campo psiquiátrico.

O Alienista, de 1882, guardadas as imensas diferenças de tempo e lugar histórico, me parece sugerir um olhar igualmente provocador — obviamente em um registro textual bastante diferente, certamente não militante e/ou acadêmico — quando  empreende uma poderosa e aguda crítica às ambições do nascente alienismo brasileiro, os excessos e descaminhos do seu  projeto de poder, sua teorização claudicante e sua capacidade de se meter pelo avesso,  ainda que  motivações variadas  estejam   envolvidas no surgimento e consolidação do alienismo, como a pujante historiografia mais recente tem  demonstrado. No entanto, creio que uma coisa não invalida necessariamente a outra, e foi o que tentei mostrar um pouco no artigo, quando estabeleci um diálogo, a partir da novela do Machado, com parte dessa literatura mais atual. 

Especificamente sobre as análises históricas aqui no Brasil, como não citar, por exemplo, o impacto que a circulação de uma obra como Danação da Norma de 1978, de notável inspiração foucaultiana, exerceu junto aos estudiosos? 

No caso do meu artigo, a ideia de que O Alienista antecipa um debate é antiga, me veio simplesmente das minhas leituras sobre o tema ainda no meu mestrado no começo dos anos 1990, já que essa questão saltava aos olhos em um tempo marcado pela emergência de muitos estudos críticos com forte inspiração foucaultiana — embora nesse momento raramente por parte de historiadores de ofício — e de discussões  efervescentes e militantes  em torno  da reforma psiquiátrica.

Na realização do mestrado, tive contato com os trabalhos da historiadora Maria Clementina Cunha — minha inesquecível orientadora na Unicamp, notadamente seu Juquery, a história de um asilo e o pequeno e saboroso livro Cidadelas da Ordem — e um pouco mais a frente, já no doutorado, com o artigo do professor Roberto Gomes;  ambos sugerem essa ideia da antecipação que peguei simplesmente como estratégia argumentativa pra estabelecer, desde  uma perspectiva analítica que concebe a literatura como testemunho histórico, um diálogo entre a novela, os estudos iniciais de inspiração foucaultiana e a historiografia mais recente, que tem matizado o olhar que observa a nascente psiquiatria brasileira sobretudo pelo prisma do controle social,  da sua função de agente da ordem e do poder dirigido à “limpeza higiênica” do espaço urbano.

Por fim, diria que tive a oportunidade de ler O Alienista inúmeras vezes e toda vez que me debruço sobre esse texto descubro coisas novas e saio encantado com a prosa crítica e a pena ferina e cáustica, embora sutil, da obra machadiana.

 

2. A crítica machadiana às ambições de poder da psiquiatria e à fragilidade de seus pressupostos científicos refletia os momentos iniciais de instalação da medicina mental no Brasil e seu correlato institucional, o hospício, que seria a Casa Verde da novela. No fim da trama, louco é o médico, e a instituição, dispensável. Quem é o “louco” na história, de Machado de Assis à reforma psiquiátrica?

Difícil responder, mas eu diria, como historiador que  sempre busca estabelecer significados em termos contextuais, que o louco é um personagem que pelo menos desde o momento de inauguração do hospício como espaço institucional reservado  ao seu recolhimento —  e isso vale sobretudo para o período da sua pergunta — é, de forma  bem ampla e genérica, um ser à margem, silenciado, sem rosto, desprovido de reconhecimento, um não sujeito, um “cadáver de anfiteatro de anatomia”, como expressa Lima Barreto. Ou como salienta o psicólogo e escritor Isaías Pessoti, no seu livro O Século dos Manicômios: “no teatro do manicômio, o louco não foi o herói, nem o vilão, nem um protagonista: foi, talvez, um figurante”. Assim, ainda que não se possam conceber os espaços de internamento lugares desde sempre — e exclusivamente — dedicados ao saneamento e à regulação social, sem nenhuma intenção de tratamento e compreensão da loucura — o que implicaria numa simplificação e generalização problemática – fica difícil diante de tantos horrores e violações não considerar em boa medida assim.  

Talvez a melhor forma de responder a essa questão seja acompanhar, como lembra Maria Clementina Cunha, a pergunta formulada pelo cronista Melo Morais Filho sobre o destino de um personagem muito popular nas ruas do Rio de Janeiro nos anos finais do Império, o alferes Cândido Galvão da Fonseca — patente obtida por sua participação destacada na Guerra do Paraguai — que se dizia o Príncipe Obá II da África. Motivo de chacota, mas também de respeito e admiração, considerava as ruas do Rio de Janeiro “vastos salões de seus palácios” tendo por “vassalos os negros minas e as quitandeiras do largo da Sé” como registra o cronista (citado por Engel). Admirador do Imperador, era inclusive recebido por este no Paço Imperial nos dias de audiência pública. Com o estabelecimento da República perde sua pensão vitalícia e acaba morrendo na miséria. Melo Morais Filho pergunta se não teria sido preferível recolhê-lo a um asilo do que deixá-lo à míngua com sua vesânia à solta nas ruas.

Como Obá, muitos outros personagens circulavam nesse período pelas ruas do Rio de Janeiro, nas “fronteiras entre a loucura, a embriaguez, a mendicância e a vadiagem”, como lembra Magali Engel, tendo, até então, certo direito às ruas. Assim, sem aderir à ideia simplista de um  saber psiquiátrico maquiavélico exclusivamente a serviço do controle  social e da opressão da loucura em conluio com o poder, e muito menos ao discurso triunfalista  dos próprios psiquiatras desse período, seus propósitos grandiosos e sempre nobres, vendo a si mesmos como dotados, de acordo com  Franco da Rocha, de uma “orientação completamente científica e basta”, é possível considerar que o príncipe Obá, ex-escravo cioso da sua condição de liberdade, obtida  com sua ida  à Guerra do Paraguai,  não se entusiasmasse muito com a ideia de ser enclausurado em algum tipo de Casa Verde. Como aponta Cunha, no “hospício Obá já não seria príncipe”.

E se levarmos em conta o depoimento de muitos outros internos, como Lima Barreto, que via o hospício como uma “sombria cidade de lunáticos”, “cemitérios de vivos”, onde “pela primeira vez, fundamentalmente” sentiu “a desgraça dos desgraçados”; ou o interno do Juquery de 1915, que dizia “cagar no tratamento por não ser humano”, bem como a interna de um período próximo que considerava o hospício “uma casa infernal”, relatados por Cunha, essa resposta me parece bastante plausível. Sendo assim, é possível considerar que pelo menos, desde meados do século XIX até hoje, o louco é alguém que sofre e ao longo da história tem vivido, de modos variados para não incorrer em generalizações reducionistas, penosos e sutis processos de exclusão e violência, ainda que não se possa desconsiderar a invenção de “modos de subjetividade” por parte dos “silenciados” e oprimidos habitantes das Casas Verdes da vida, como salientam importantes trabalhos recentes de historiadores.

Atualmente, no âmbito da reforma psiquiátrica, o que se quer é o seu reconhecimento como sujeito, ou seja, concebê-lo como um indivíduo com modos de expressão cultural e social por vezes muito diferentes e “para quem a vida é mais difícil, o sofrimento mais penoso e a necessidade de ajuda mais constante”, conforme aponta Benilton Bezerra, restituindo a tais indivíduos importantes potencialidades cidadãs, o que, me parece, tem sido o corajoso desafio da luta antimanicomial.

 

3. Além da história e da psiquiatria, o seu artigo também contempla o campo da literatura. Como fluiu este processo de interdisciplinaridade? Que impactos pode ter este ramo de pesquisa?

O diálogo entre história e literatura é antigo e sempre muito rico. No meu caso, a perspectiva que me seduziu foi definitivamente a proposta do historiador Sidney Chalhoub. Seus trabalhos são realmente provocadores, como o livro Machado de Assis Historiador. Ele e o historiador Leonardo Pereira – que também tem diversos trabalhos muito interessantes de história social com base em análise de obras literárias – organizaram em 1998 um livro chamado “A história Contada” — capítulos de história social da literatura no Brasil. Na apresentação desse livro eles descortinam sua proposta de — à luz da perspectiva materialista de análise histórica — enfatizar obra, autor e contexto, se apropriando da literatura “com a maior sem-cerimônia”, como dizem. Ou seja, pretendem historicizar a obra literária, inserindo-a no movimento da sociedade e considerando sua capacidade de interlocução social, sem canonizá-la. Literatura, como “evidência histórica objetivamente determinada”, situada no processo histórico, sem maiores delongas. 

Outras possibilidades de apropriação e análise da vida social por intermédio da literatura são obviamente possíveis e têm sido realizadas à farta. Seria enfadonho enumerar isso aqui. Mas, como historiador, me identifico com essa proposta analítica, que busca não só estabelecer a historicidade dos textos literários, mas observar estes últimos como testemunhos de uma “experiência histórica particular”, o que exige que se desvende a “lógica social do texto”, as “características específicas das fontes literárias” tal como se faz com qualquer outro material documental. Quando resolvi me debruçar sobre O Alienista, depois de um certo afastamento da temática — apenas de uns anos para cá é que voltei a me aproximar — essa foi claramente a referência que incorporei. Se a contemplei adequadamente é uma outra história. 

É preciso mencionar o interessante trabalho da Katia Muricy — tese de doutorado que virou livro em 1988 —, que se vale da obra literária do Machado para capturar os movimentos do saber psiquiátrico e do enquadramento/normatização da loucura nos primórdios do alienismo brasileiro. Importante salientar esse livro sobretudo porque ele se inscreve na linhagem, digamos assim, de trabalhos pioneiros sobre a história da loucura e do saber psiquiátrico que se inspiraram numa matriz foucaltiana, sendo aliás uma das autoras do já citado livro Danação da Norma, que no Brasil teve uma importância muito grande. Como se vê, além de um campo fecundo, a relação entre história e literatura no que diz respeito ao tratamento histórico da temática da loucura e da psiquiatria, é antiga.

Para ler os artigos, acesse

REIS, J. R. F. O mentecapto de Itaguaí, história, loucura e saber psiquiátrico: diálogos historiográficos em torno de “O alienista” de Machado de Assis. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. In press.  [viewed 21th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702016005000003. Available from http://ref.scielo.org/32888x

REIS, J. R. F. “De pequenino é que se torce o pepino”: a infância nos programas eugênicos da Liga Brasileira de Higiene Mental. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2000, vol.7, n.1, pp.135-157. [viewed 2th October 2016]. ISSN 0104-5970. DOI: 10.1590/S0104-59702000000200007. Available from: http://ref.scielo.org/75yfgn

Link externo

História, Ciências, Saúde – Manguinhos – HCSM: www.scielo/hcsm

Sobre Marina Lemle

Marina Lemle
Marina Lemle

Marina Lemle é jornalista e mestranda em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Tem experiência como editora, repórter e redatora nas áreas de saúde, meio ambiente, segurança pública, segurança no trânsito, ciências sociais e humanas e tecnologia e inovação. Trabalha com jornalismo, gestão de conteúdo online e redes sociais. e-mail: marinalemle@gmail.com

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

LEMLE, M. Mentecaptos na história e na literatura brasileiras. SciELO em Perspectiva: Humanas. [viewed 04 November 2016]. Available from: http://humanas.blog.scielo.org/blog/2016/10/28/mentecaptos-na-historia-e-na-literatura-brasileiras/

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