Mentiras em anúncios com jeitão de notícias dão lucro a jornais

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Tente não ficar de estômago embrulhado quando se deparar com a mistura de informação, velhofobia, machismo e remédios para varizes e próstata desses anúncios.

Por Fabiana Moraes, compartilhado de The Intercept





Ilustração: Intercept Brasil

VOCÊ CERTAMENTE JÁ SE DEPAROU com centenas de anúncios simulando conteúdo noticioso que pipocam nos veículos jornalísticos. Eles correspondem ao perfil da usuária ou do usuário que está acessando os portais. Mas não importa muito se você é uma jovem adolescente, um homem de meia-idade ou uma professora e jornalista preta nordestina: a soma do material disponibilizado é invariavelmente um show de horror. 

Vendem SUVs e iPhones supostamente à preço de banana, remédios para varizes, fungos e perebas das mais diversas, sugerem a falência financeira de celebridades (da política ao sertanejo), trazem o “antes” e “depois” de atrizes, etc. Pior: tudo com títulos iguais ou bem parecidos com os dos jornais e misturados a notícias de verdade, o que adiciona credibilidade aos informes e confunde leitoras e leitores.

“Letícia Sabatella faz 51 anos – Tente não ofegar quando você a vir agora”. “Lídia Brondi, 83 anos, enlouquece seus fãs com um físico antiquado”. “Deltan Dallagnol vive em uma casa dos sonhos com seu parceiro”. “Patrícia Poeta é casada com essa beleza”…

Mas há mais nas entranhas desse singular conteúdo. Enquanto apelam para baixarias e mentiras das mais variadas (por sinal, a excelente ex-atriz e hoje psicóloga Lídia Brondi tem 62 anos), esses anúncios também ensejam toda sorte de preconceitos, em especial aqueles voltados às mulheres. A velhofobia bomba; a obsessão para se livrar de gorduras, idem; as milhares de táticas, cremes e métodos para manter-se jovem e portanto desejável, também. Isso sem falar nas diversas “matérias” sugerindo que pessoas famosas são homossexuais, com fotografias nas quais elas estariam com supostos pares românticos do mesmo gênero.

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Empresas como BrainSharper, MisterStory, Prisma, Outbrain, Taboola e Game of Glam são algumas que seguem essas táticas – e todas estampam os sites de veículos como Metrópoles, Correio Braziliense, Folha de S.Paulo, O Globo, Revista Fórum, etc. Assim, não é difícil ler, por exemplo, uma matéria sobre diversidade e inclusão de mulheres nos postos de poder enquanto mais abaixo, no mesmo jornal, você encontra anúncios com chamadas do tipo: “Ela era linda, hoje é irreconhecível”. 

Esse abalroamento de sentidos é cada vez mais comum no cenário de uma imprensa comercial que tem dificuldades de manter qualidade e produção, com perdas de anunciantes e receitas. “Quanto mais as empresas estão de joelhos, menos critério há na escolha de anunciantes”, disse o jornalista e pesquisador Marcelo Soares, da Lagom Data. 

Há pouco mais de 10 anos, em 2012, ele acompanhou as primeiras tratativas de negócios entre a Outbrain, empresa de tecnologia e conteúdo, e a Folha de S.Paulo, onde era editor de audiência. Os primeiros contatos visavam uma ferramenta que testava a efetividade de versões diferentes de títulos, mas o produto comercial da empresa era o sistema de recomendações de notícias a partir dos dados de navegação do usuário.

A partir disso, o jornal iniciou uma conversa com a empresa sediada nos EUA e criada em 2006. Segundo Soares, a proposta inicial do sistema de recomendação da Outbrain manifestava preocupação com a qualidade do que seria oferecido. A maior parte dos espaços ofereceria conteúdo da própria publicação, enquanto o restante seriam indicações de conteúdo patrocinado. O site poderia decidir quantas recomendações patrocinadas abriria e quais categorias de anúncios não aceitava.

A empresa garantia que tinha uma cartela poderosa de clientes de alta qualidade – montadoras de automóveis, incorporadoras, imobiliárias, todos anunciantes mais tradicionais. É claro que esse leque interessou à Folha. 

Como os anúncios mascarados de conteúdo publicitário atraíam mais cliques e, portanto, mais engajamento do que as publicidades comuns, com a possibilidade de melhor pagamento por mil visualizações, a corrida para o modelo foi alta, o que manteve aceso parte do negócio do jornalismo no Brasil. Mas, há anos, a os preços da publicidade digital vêm baixando

“As empresas ganham por volume de inventário, um cálculo que leva em conta a quantidade de espaços publicitários em uma matéria, multiplicado por quantidade de textos, multiplicado pelo número de leitores. Se o preço do anúncio cai, as empresas buscam aumentar o número de espaços publicitários, publicar mais textos caça-cliques, ou ambos. Por isso é que muitos sites parecem árvores de natal saltando em nossas telas”, disse Soares. “Às vezes fica até difícil diferenciar uma notícia de ‘site de entretenimento’ do tipo de conteúdo patrocinado que aparece na Outbrain, Taboola e outros”.

É por isso também que você lê, no meio de notícias sobre política, meio-ambiente e cultura, que Lídia Brondi “enlouquece fãs com físico antiquado” ou que há uma nova maneira de ficar rico em apenas seis meses já adotada pela população de Aldeota, no Ceará, Jurunas, no Pará, ou Heliópolis, em São Paulo, de acordo com sua localização.

Tem mais. Apesar de parecerem razoavelmente inocentes, esses conteúdos machistas, gordofóbicos, classistas e etaristas, trazidos por modelos de negócios vendidos como moderninhos, se utilizam fortemente da coleta de dados que deveriam ser privados, como as conversas que tenho com uma amiga a respeito de uma possível viagem, um problema de saúde ou o desejo de engravidar.

O grau de descredibilização que os anúncios/clickbaits podem gerar fez com que veículos importantes, como as revistas Slater e The New Yorker, além dos jornais The New York Times e Guardian (esse último, da Inglaterra) abolissem esse tipo de conteúdo. Os anúncios de empresas de apostas, as famosas bet, também estão na mira: o jornal inglês anunciou em junho que não iria mais exibir publicidades do tipo, uma vez que os jogos estão diretamente ligados a questões como vício, declínio da saúde mental, ruína familiar e financeira, etc.

Mas o cenário da imprensa nacional, como dito, é diferente: recentemente, a diretora executiva do veículo de checagem Aos Fatos, Tai Nalon, escreveu uma newsletter na qual critica a presença de anúncios enganosos (mas, repito, também muitas vezes profundamente preconceituosos) nos maiores jornais do país. Referindo-se à Folha, ela observou: “Na mesma página em que registra seu recorde de assinantes, o jornal veiculou anúncios como ‘Nutricionista: Perder peso depois dos 60 anos depende deste hábito diário’”. A publicidade, ela afirmou, “leva a um site que vende um método de emagrecimento cujos relatos, segundo as letras pequenas do rodapé, ‘podem ser reais ou fictícios’”. 

O anúncio sobre um suposto parceiro de Dallagnol também apareceu, como aconteceu comigo, para a jornalista: ela o encontrou em um editorial de O Globo em 31 de agosto. Assinado pela Sunday Digest, ele parecia, para Nalon, trazer um erro na chamada provocado pelo tradutor automático. Daí o “parceiro” em vez de “parceira” (atualmente, o ex-deputado é casado com Fernanda Dallagnol). No entanto, esse mesmo expediente – sugerir a homossexualidade de nomes midiáticos – é usado com outras celebridades. É o que vimos no caso de Patrícia Poeta, cuja chamada ainda é acompanhada pela imagem da apresentadora e parte do rosto de outra mulher.

Anúncios inferem homossexualidade de pessoas públicas com informações falsas para ganhar cliques.
Anúncios inferem homossexualidade de pessoas públicas com informações falsas para ganhar cliques.

Segundo Nalon me disse em entrevista, os projetos de lei que tentam regular as plataformas digitais (o PL 2370, que trata de direitos autorais, e o PL 2630, conhecido como PL das Fake News), estabelecem diretrizes para as empresas que operam a publicidade digital no Brasil. “Algumas diretrizes estabelecem que essas plataformas tenham bibliotecas de anúncios e que eles fiquem visíveis, por exemplo, nos períodos eleitorais para o caso de quem estiver veiculando publicidade política. Saber quanto dinheiro se investiu em determinados tipos de publicidade, quantas pessoas serão impactadas, etc.”.

Hoje, disse ela, Meta (empresa dona de Facebook, Instagram, WhatsApp) e o Google têm algumas bibliotecas de anúncios que ficam mais em evidência nas eleições: nesse caso, você consegue ver quanto a publicidade foi impulsionada dentro da plataforma. “Mas nos anúncios que ficam embutidos nos sites, o assunto é mais complexo, é um universo maior. Não conseguimos ter a dimensão e a escala desses anúncios, não existe transparência nenhuma. A Outbrain, por exemplo, diz que tem política de combate à desinformação. A busca por clique é uma fórmula que ainda funciona e gera engajamento, tráfego, volume. E todo modelo de publicidade é baseado no volume, algo que você também consegue diminuindo a qualidade.”

Na visão de Marcelo Soares, o cenário para as empresas jornalísticas comerciais não é dos mais animadores quando se trata da dependência do sensacionalismo, da desinformação e dos preconceitos das Outbrains e similares. “As redações parecem ter cada vez menos autonomia para dizer não a anúncios. A crise não é exatamente do jornalismo, e sim do modelo financiado por publicidade, que já foi desintermediada; com a tecnologia de anúncios, as marcas hoje dispensam a imprensa tradicional como intermediário, e às vezes até mesmo as agências de publicidade tradicionais”.  

Anúncios evidenciam descompasso editorial

Confesso que o crash entre a credibilidade jornalística e a defesa da democracia que muitos veículos propõem e o que os anúncios em suas páginas efetivamente demonstram ainda me causa enorme espanto. Esses dias, levei um susto quando lia uma reportagem no site da revista piauí e me deparei com anúncios de camisetas com estampas pró-armas e frases de sabor red pill como “pai de um guerreiro e de uma princesa”. Printei, mas não encontrei a imagem. Apurando esse texto, voltei lá para checar novamente e não fui mais surpreendida pelo estilo de vida incel: no site, apenas anúncios de jogos do tipo bet, tênis e pickups.

Esses descompassos com o que oferece a linha editorial dos veículos foi tema do artigo “Quem é que vai pagar por isso? Um olhar sobre os modelos de negócio no Jornalismo em mídias digitais“, de Vinícius Souza, da Universidade Federal de Uberlândia. 

Analisando meios como Fórum, Folha de S.Paulo e GGN, ele menciona a Taboola e a Outbrain na pesquisa: “A Fórum recebe verbas pela divulgação de ‘conteúdos’ de outros produtores por meio da empresa Outbrain (também utilizado pelo site da Folha de S.Paulo). Sistemas semelhantes, como o Taboola, usado entre outros pelo Jornal GGN, iniciativa digital do veterano jornalista de economia Luís Nassif […] também ‘impulsionam conteúdos’ que muitas vezes são frontalmente contrários à linha editorial do site, de esquerda. No caso do GGN, por exemplo, além das indefectíveis pílulas de emagrecimento milagroso, há links para ‘artigos’ da consultoria Empiricus (que por sua vez também anuncia no Outbrain), de extrema direita, que vem faturando alto desde 2014 afirmando que só a retirada de Dilma Rousseff da Presidência poderia melhorar a economia no Brasil e agora alerta para o ‘perigo’ de uma eventual eleição de Lula e já coloca como contraponto a imagem do prefeito de São Paulo João Doria Jr. nos banners”, escreveu em 2017.

É bom lembrar que as próprias leitoras desses meios também podem abandonar o barco quando os veículos que seguem dão um cavalo de pau em suas propostas editoriais, como mostra o artigo “Imprensa sensacionalista: análise da cobertura do acidente da Chapecoense pelo Site Catraca Livre“, de Jaynne Patrícia de Lima e Silva e Kátia Regina Azevedo Patrocínio, da Universidade de Fortaleza. O uso de imagens dos jogadores da Chapecoense antes da queda do avião que matou todo o time, o plágio descarado de uma homenagem e uma matéria sobre medo de avião foram o estopim para que mais de um milhão de pessoas deixassem de seguir o site nas redes sociais, um prejuízo enorme para a marca.

Resta saber se vale realmente a pena continuar a privilegiar os anúncios clickbaits ou manter o acordo de informar, e não de ludibriar, quem confia no já chamuscado jornalismo.

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