Meritocracia e resiliência: despolitizando a luta de classes

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Via de regra, os que pregam a meritocracia são aqueles que atingem os melhores postos de trabalho ou de poder porque tiveram mais e melhores oportunidades socioeconômicas, culturais e principalmente educacionais em detrimento da maioria.

Por Lucia Capanema, compartilhado de Criativos




Sim, a soma do jogo costuma ser zero; ou seja, no mundo de recursos finitos que disputamos, desde a água tratada e o ramal de metrô até a vaga para a universidade pública, se alguém ganha, alguém perde, principalmente no terceiro mundo, onde a eterna colonização nos torna pobres de tudo o que é valorizado materialmente: A sociedade capitalista não disponibiliza investimentos para tudo e todos em lugar nenhum, muito menos nos ‘tristes trópicos’. E aí, como diria Chico Science, “o de cima sobe e o de baixo desce” numa eterna retroalimentação do sistema que praticamente impossibilita quem nasceu abaixo de subir.

Surpreendentes e admiráveis as e os que, pelas mãos de uma mãe faxineira da escola, de um tio motorista do deputado, ou mesmo do livro certo na hora certa, venceram a maratona com barreiras, certo? E nenhuma surpresa quando a filha do cirurgião plástico cursa medicina ou arquitetura na universidade federal. Mas uma das engrenagens do pensamento neoliberal é incutir nas pessoas a noção de que tudo depende delas, do seu esforço, do seu bom-mocismo, da sua obediência às regras por ele ditadas, já que o mercado não tem preferências, é guiado por uma mão invisível que coloca tudo em seus devidos lugares. Já o modus operandi do nazi-fascismo trata de fomentar o ódio, e não a admiração, aos menos favorecidos que logram chegar a posições de mais poder (ou promessa dele), malgrado as piores condições de acesso que tiveram em suas vidas.

Assim é quando a mulher tem salário maior que o homem (pior ainda quando se torna a “provedora” do lar): o marido não vê o valor da esposa, o mérito não se aplica a ela… Fica desgostoso, se sente menor e frustrado; afinal, na lei do mercado ele, homem, historicamente esteve sempre melhor que ela. A frustração fermentada pela dureza da vida e aquele convívio diário com a mulher vencedora – sem o mesmo mérito que ele! – geram uma raiva, uma inveja… um ódio interno e abstrato por aquela situação e por quem possa tê-la causado, desde as políticas públicas progressistas até os movimentos feministas.

Assim é quando o filho do porteiro imigrante vai à universidade pública e o rapaz de classe média não consegue uma vaga: a família abastada não vê o valor do empobrecido, o mérito não se aplica a ele… Se sente aviltada e frustrada. A frustração fermentada pela dureza da vida e aquele convívio diário com os ‘vencedores’ geram uma raiva, uma inveja… um ódio interno e abstrato por qualquer preto ou nordestino sem mérito e por quem possa ter causado tal reversão, desde as políticas públicas progressistas até os movimentos antirracistas.

A vitória pessoal e intransferível tão grande quanto rara daquela mulher e/ou daquele estudante passa a significar um punhal no peito do frustrado: “isso não é justo comigo!!!”, pensa internamente; cidadão de bem, cumpridor dos deveres, patriota que pensa garantir sua meritocracia de mão única quando se posiciona ao lado dos dominadores, da extrema-direita; para ele, a meritocracia só pode servir a si e aos seus. Mal sabe que a proposta que ele tanto apoia é excludente e concentradora de renda e vantagens que não foram desenhadas para ele por princípio. Ele não percebe que “raspas e restos lhe interessam”.

Vamos à resiliência, termo cunhado inicialmente na física para dizer dos materiais com grande capacidade de voltar à forma anterior depois de submetidas a estresse compressivo, mais tarde adaptado às plantas que têm alta capacidade regenerativa, ou seja, que podem ser maltratadas por fatores naturais ou antrópicos e que eventualmente retornam à condição anterior por conta própria, e finalmente utilizado na zoobiologia e para descrever ecossistemas.

Espantosa foi a sua incabível extrapolação para grupos de seres humanos, que se deu a propósito do furacão Catrina. Àquela época (ano de 2005) o então governo Bush Junior teve informações de seus quadros técnicos acerca da gravidade do que estava por ocorrer e decidiu não tomar providências, pois aquela região seria ‘resiliente’ (conforme têm afirmado o renomado professor Edward Blakely e tantos outros). Passada a inundação as terras da Louisiana voltariam a ser ocupadas, agora por novos residentes, quem sabe até mais brancos, mais ricos, mais dados a condomínios-resorts depois de investimentos bilionários e certeiros. Os clubes de jazz de Nuólins (é assim que os locais pronunciam New Orleans) voltariam também a agradar, agora gerenciados por novos proprietários e músicos mais ao gosto neoliberal.

Os pretos e pobres foram todos removidos para outros estados, onde chegaram a se alojar em estádios de futebol por até 5 anos, quando se “resilienciaram” e foram morar de favor, nas ruas dos centros, ou espremidos em algum bairro onde sua pobreza e sua cor fossem aceitas. A resiliência humana passou a significar um “se-virol” em qualquer condição, sem qualquer apoio do Estado que os mais pobres sempre sustentaram em proporções maiores que os ricos. Segundo a resiliência, o ser humano é um João-Bobo, aquele boneco de plástico que você bate e ele volta a ficar de pé. Sem nenhum acolhimento institucional, sem nenhuma responsabilidade estatal, sem nenhuma culpa social.

SQN. Resiliência é uma espécie de anti-Midas que toca no pobre e o faz ainda mais pobre, tornando motivo de orgulho um fenômeno que o badalado geógrafo David Harvey chamou de ‘acumulação por despossessão’ e o menos conhecido mas tão bom quanto Oren Yiftachel, vem chamando de “displacement”, uma espécie de desterritorialização (conforme discutem os brasileiros). Para o primeiro, a acumulação se dá quando se expulsa da terra aqueles que a têm como seu único bem, para o lucro duplo de exploração daquela terra e da inserção dos antigos proprietários em mercados de consumo dos quais não participavam. Aliás, como nos lembra o Professor Porto Gonçalves, quando os despossuídos passam a consumir produtos da extinta agricultura familiar no supermercado, o PIB aumenta. Para Yiftachel o mal é ainda maior, pois os ‘desterritorializados’ são também expulsos de suas culturas, de suas memórias, de seus saberes, de suas identidades. Viram ninguém.

Devidamente instrumentada, a frustração, a inveja e o ódio interno causados pela ideia da meritocracia desaguam quase necessariamente num ódio aberto às esquerdas em geral. Mais particularmente, o frustrado, desde sempre presa fácil do sistema que nunca foi justo com a maioria subrepresentada, é capturado pelo ódio cego: com a propaganda falaciosa da mesma extrema-direita que finge reconhece-lo como sujeito de méritos mas nunca irá reconhece-lo como sujeito de direitos, vê como solução o extermínio (biopolítico ou feito individualmente, às vezes pelas próprias mãos) do pobre, do preto, do nordestino, da mulher, do gay – para garantir o que é ‘mérito só seu’, que sempre foi ‘só seu’, por todos os séculos, amém.

Devidamente utilizada, a resiliência coloca no lombo de quem já muito apanhou a tarefa de se refazer, de se superar solitariamente. Voltando ao jogo de soma zero, é obvio que não é tarefa realizável para todos os que foram despossuídos, desterritorializados ou prejudicados de outras formas pelas políticas neoliberais. Quer dizer que resiliência é para quem é meritocrático!!! Aos não resilientes pobres, pretos, nordestinos, mulheres e gays todo o ódio dedicado aos “loosers” (jargão neoliberal para ‘perdedores’), aos preguiçosos, aos descontentes e aos movimentos sociais que os agregam e representam! E ódio aos governantes que dão guarida a todos eles e às esquerdas em geral.

P.S.1: Há mulheres e pobres que agem dentro da lógica da meritocracia e da resiliência também? Com certeza! Nos diria Paulo Freire: são os capitães-do-mato, oprimidos que se identificam com o opressor. Sempre existiram, ou os opressores seriam minoria derrotada.

P.S.2: Como apontou o querido e perspicaz amigo Paulo N., surpreende e entristece que a peça “Marielle Presente” em cartaz no Rio de Janeiro, apesar da qualidade de atores, e de direção musical e cênica, ponha em foco as resiliências e meritocracias da nossa inesquecível política em detrimento de sua história tão bem situada na luta de classes.

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