Bolsonarismo se apressa em impulsionar narrativa de economia “bombando”, mas alta dos preços dos alimentos no atual governo é de 43,7%, quase o dobro da inflação geral
Por Mariana Costa, compartilhado de O Joio do Trigo
Em meio à irracionalidade que tem marcado o debate na mais dramática eleição dos últimos tempos no Brasil, a crença de que o governo de Jair Bolsonaro tem tido sucesso em controlar a inflação e promover uma melhora nos indicadores econômicos é um exemplo de que, sob tortura, os números podem dizer qualquer coisa.
Como esperado, o bolsonarismo se apressou nesta terça-feira (11) em reverberar o recuo da inflação pelo terceiro mês seguido. O IPCA, indicador oficial da inflação no Brasil, caiu 0,29%, acumulando a terceira queda consecutiva. O recuo é resultado de uma controversa redução nos combustíveis promovida por Jair Bolsonaro às vésperas das eleições.
No ano, a inflação acumulada até setembro é de 4,09% e, nos últimos 12 meses, de 7,17%, segundo dados divulgados pelo IBGE nesta terça-feira. Foi a primeira vez que os alimentos tiveram recuo, após uma trajetória consistente de alta da maioria dos itens e subitens que compõem o IPCA. Mesmo com a deflação pelo terceiro mês seguido, seis a cada dez alimentos subiram de preço em setembro.
“Os que mais contribuíram para a queda foram itens que acumulam alta muito elevada nos últimos 3 anos, como é o caso de leite, feijão e óleo de soja. O tomate e o alface tiveram queda, mas por uma questão sazonal, apenas”, explica Valter Palmieri Jr, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. Dos 173 itens da alimentação que compõem o IPCA, 102 tiveram aumento de preço no mês de setembro e 71 tiveram queda, ou seja, cerca de 60% da comida continuou subindo de preço em setembro.
Ao longo do governo Bolsonaro, alimentos e bebidas ficaram 43,71% mais caros – contra uma inflação geral de 24,97% entre janeiro de 2019 e setembro de 2022. A alimentação no domicílio, ou seja, a comida que se faz e se come em casa, subiu 53,4% no mesmo período, mais que o dobro do que a média geral dos demais preços.
Em junho, o governo zerou impostos federais e conseguiu aprovar um teto para as cobranças de ICMS nos combustíveis, provocando uma queda forçada na arrecadação de estados e municípios e uma judicialização do tema entre estados que buscaram o Supremo Tribunal Federal para compensar perdas.
Apesar dos esforços do governo Bolsonaro em criar uma imagem positiva sobre o desempenho desastroso de sua política econômica, a redução nos impostos dos combustíveis pouco afetou o preço da comida, que continua cara e sobe num ritmo muito superior aos demais preços.
Principal combustível nos fretes rodoviários e nas máquinas agrícolas, o diesel já tinha alíquotas mais baixas que a gasolina. A medida, portanto, atingiu com mais força o eleitorado que anda de carro, deixando de fora, por exemplo, os que usam transporte público.
“A redução mais intensa ocorreu com a gasolina. Isso não aconteceu com a mesma intensidade em relação ao diesel, que já tinha uma alíquota de ICMS bem mais baixa. Para os alimentos importa muito mais o diesel, o transporte de carga rodoviária é movido a diesel. A energia elétrica também teve uma desoneração e isso pode ter algum peso, mas também não tão intenso assim”, explica Julia Braga, economista e professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Em setembro, o Índice de Preços de Alimentos e Bebidas (IPAB) recuou 0,51%. Um dos nove grupos que compõem o IPCA, é o segundo indicador que tem o maior peso sobre a inflação geral, atrás apenas do grupo transportes – que inclui os combustíveis. No ano, o índice acumula 9,54% de alta, mais do que o dobro da inflação geral (+ 4,09%).
Usando o resultado mensal descolado da série histórica, a campanha de Bolsonaro e seus apoiadores tentam sugerir que o Brasil tem feito um controle eficaz dos preços em meio à onda inflacionária mundial deflagrada pela pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia. Estratégia semelhante vem sendo usada para maquiar outros resultados econômicos.
No entanto, basta uma ida a qualquer supermercado ou feira no Brasil, ou um passeio pelas capitais do país, para constatar que está cada vez mais difícil encher o carrinho, enquanto as ruas estão cada dia mais cheias de pessoas famintas, com 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave e mais da metade da população com algum nível de incerteza sobre se haverá comida.
Como o Joio tem mostrado sistematicamente, o governo Bolsonaro promoveu uma desregulação da produção de alimentos voltados para o mercado interno a partir da combinação de uma série de fatores, usando principalmente a manutenção do real desvalorizado frente ao dólar e o uso de diferentes incentivos para a produção de grãos, carnes e outras commodities para o mercado externo.
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O comportamento dos preços de alimentos voltados ao mercado interno é agravado pela perda do poder de compra do consumidor, desemprego e endividamento, por um lado, e a extinção de mecanismos regulatórios por outro, com o fim dos estoques públicos de alimentos e o desmonte de uma série de políticas voltadas à segurança alimentar e nutricional da população.
As turbulências que ocorrem no mercado externo, como o que tem acontecido com o petróleo em meio ao conflito Rússia-Ucrânia, impactam os preços por aqui mas não dão conta de explicar características próprias da inflação brasileira. Como mostramos em maio deste ano no Joio, responsabilizar a guerra e a pandemia pela alta no preço da comida é uma narrativa de meias-verdades. A dinâmica de formação dos preços dos alimentos em nosso país está relacionada, em grande medida, a fatores internos.
São esses fatores que explicam o aumento dos alimentos in natura ou minimamente processados, enquanto os produtos ultraprocessados vão se tornando proporcionalmente mais acessíveis, fazendo com que a população com menor renda faça escolhas piores do ponto de vista nutricional, como também já mostramos no Joio.
Inflação maior agrava desigualdade
A inflação não é um fenômeno neutro da economia. É um mecanismo de promoção ou agravamento de desigualdades. No caso da alimentação, esse quadro torna-se ainda mais alarmante e com consequências que vão além da segurança alimentar, como explica o economista Valter Palmieri Jr.
“Das famílias que recebem até 5 salários mínimos, 25,71% dos gastos são com Alimentos e Bebidas, é o grupo com maior peso nos gastos. Por ser um item básico, quando o preço da comida se eleva acima dos salários, as famílias mais pobres têm menor capacidade de gastos em outras coisas, como moradia, vestuário, saúde e cuidados pessoais, e educação. A inflação de alimentos traz prejuízos que vão muito além da insegurança alimentar, além de prejudicar setores econômicos, diminuindo a demanda de muitos desses produtos.”
Enquanto alguns poucos ganham com inflação alta e real baixo, a imensa maioria dos brasileiros perde. A bonança favorece o agro exportador, setor que vem acumulando recordes de faturamento e produção ao longo do governo Bolsonaro. O resultado desse processo aparece na projeção feita pela Conab para a próxima safra de grãos: a soja ganhará mais 1,5 milhão de hectares, o equivalente a dez cidades de São Paulo.
Enquanto isso, a produção de alimentos básicos, como o arroz e o feijão, vem sendo reduzida ano a ano. Um dos fatores-chave para desestimular a produção voltada ao mercado interno é o aumento dos custos ao produtor, o que leva o agricultor, em especial o pequeno e o médio, a reduzir cultivos voltados para o mercado brasileiro. O Brasil vem assistindo a três anos seguidos de alta acima de 20%, como observa a professora Julia Braga.
“Como é que o produtor interno vai assimilar esse choque? Alguns vão conseguir repassar esse choque pra frente e isso acaba pressionando os preços. Outros vão tentar segurar um pouco para não perder clientes. E aí vem também um pouco a pressão do custo salarial, uma vez que os empregados também estão sentindo esse choque no bolso”, explica.
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Em outra frente menos favorável à narrativa bolsonarista, o rendimento médio do trabalhador chegou ao menor nível desde 2012. “O mercado de trabalho ainda tem um quadro de desemprego alto. Temos um mercado precarizado em que os postos de trabalho são de baixo salário, o salário não cresce na mesma proporção. Quem entra no mercado de trabalho entra com salário menor do que aquele que saiu”, acrescenta Julia.