Pelo menos três escolas registraram manifestações de apoio aos diretores afastados por Nunes
A comunidade da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Espaço de Bitita, que também oferece Educação de Jovens e Adultos (EJA), no bairro Canindé, na zona norte de São Paulo, realizou uma manifestação na manhã desta segunda-feira (26), contra o afastamento do diretor da unidade, Cláudio Marques da Silva Neto.
Ele é um dos 25 diretores da rede municipal que foram convocados para um curso de formação . Na prática, a convocação representa um afastamento dos servidores sem o devido processo legal, já que o curso é de nove horas diárias até o final do ano, o que inviabiliza a direção nas escolas.
Sem o impedimento legal, o diretor afirma que não deixará a escola. “Eu posso até comparecer ao curso, porque regimentalmente eu sou obrigado a acatar as convocações, mas eu não estou afastado da escola, porque eu não estou com impedimento legal. Eu não vou acatar nenhuma orientação verbal de não vir para escola e vou proibir que o interventor assine qualquer documento legal da escola, porque eu não estou impedido legalmente”, disse em entrevista ao Brasil de Fato.
A convocação foi feita por meio de um ofício contratado pelo secretário municipal de Educação, Fernando Padula Novaes, publicado no Diário Oficial na sexta-feira passada (23), para que os servidores retornassem para as suas unidades e promovessem um trabalho pedagógico que resultasse em melhorias. “Faz-se necessário garantir a formação dos gestores para que atuem de forma propositiva referente ao alcance das metas de aprendizagem de cada unidade”, diz um trecho do ofício.
Cláudio Marques é mestre e doutor em Educação, tem pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e é diretor do local desde 2011. Em 2023, após uma demanda do diretor, a escola deixou de se chamar Infante Dom Henrique, que participou da expansão marítima portuguesa, para o Espaço de Bitita, o apelido da escritora Carolina Maria de Jesus , que viveu por anos na favela do Canindé, bairro da escola.
Apoios
As deputadas federais Sâmia Bomfim e Luciene Cavalcante, ambas do Psol de São Paulo, e os vereadores Eliseu Gabriel (PSB) e Hélio Rodrigues (PT) tiveram na manifestação em apoio ao diretor Cláudio Marques .
Sâmia Bomfim disse que “o Ricardo Nunes está a utilizar o método da ditadura, que é de intervenção nos espaços escolares”. “O [Jair] Bolsonaro fez isso também com os institutos federais, incluindo os diretores escolhidos pela comunidade para botar gente dele. E não é um coincidência que seja nas escolas que estiveram na greve de servidores. Então ele está fazendo uma intervenção política com objetivo de retaliar, mas também de privatizar, o que vai contra o princípio da gestão democrática e vai contra os interesses públicos”, disse a deputada.
Luciene Cavalcante, por sua vez, ressaltou que a gestão municipal está usando uma convocação para afastar os diretores. “É muito violento e criminoso o que o Ricardo Nunes está fazendo com a educação pública aqui da cidade de São Paulo e o Espaço de Bitita. Não tem legalidade para se colocar o interventor aqui dentro. Ele [Ricardo Nunes] só pode fugir depois de um processo administrativo com amplo direito de defesa”, defendeu a deputada.
Em nota, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – Campus São Paulo, que fica ao lado do Espaço Bitita, também repudiou o afastamento. “A atuação da escola, profundamente enraizada no território de Canindé/Pari, é referência por seu compromisso pedagógico e pelo papel social que exerce na defesa da comunidade, na promoção de uma educação antirracista, inclusiva, equitativa e emancipadora por meio da defesa e promoção dos direitos humanos ”, diz a nota assinada pelo diretor-geral Wellington Pereira, que também esteve no ato.
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)
Em nota enviada ao Brasil de Fato , a Secretaria Municipal de Educação informou que a seleção dos diretores foi feita a partir do desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e no Índice de Desenvolvimento da Educação Paulistana (Idep) 2023. Os índices são sempre obtidos nos anos ímpares e divulgados nos anos pares.
“Esses profissionais atuam há, pelo menos, 4 anos em unidades prioritárias, selecionados devido ao desempenho no Ideb e Idep de 2023. A capacitação, inédita, inclui vivência em outras unidades educacionais e tem como objetivo o aprimoramento da gestão pedagógica para melhorar a todos de todos os estudantes. As unidades contarão com o reforço de mais um profissional na equipe gestora. Um investimento dos diretores será mantido”, informou a pasta.
Alguns dos diretores convocados e o Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo (Sinesp), no entanto, afirmam que a justificativa para o afastamento “não se sustenta”, uma vez que as escolas escolhidas têm projetos pedagógicos com resultados positivos e que os índices escolhidos não refletem o avanço das unidades no médio e longo prazo.
“Essas avaliações não compartilham o índice de desenvolvimento urbano, o desenvolvimento econômico regional e a realidade das escolas. O território e as condições socioeconômicas, ambientais e familiares em que os alunos estão inseridos são ignoradas. As dificuldades recebidas das políticas governamentais, ou a da ausência delas, que impõem falta de profissionais, materiais inadequados e insuficientes, manutenção predial precária, entre outros problemas, são tratadas como se não existissem”, afirma Letícia Grisólio, dirigente do sindicato.
“Muitas destas unidades possuem um projeto político pedagógico diferenciado, que dialoga com a realidade e necessidade do território. São unidades que possuem dificuldades, porém têm realizado, dentro das possibilidades, um trabalho pedagógico diferenciado e com resultado positivo dentro das comunidades”, detalha a dirigente.
A Escola Espaço de Bitita tem em seu currículo os prêmios Heitor Villa-Lobos, Territórios Tomie Ohtake, Paulo Freire e Criativos da Escola. A instituição também faz parte do Programa das Escolas Associadas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Cláudio Marques também defende que o Ideb “não explica tudo”. “É uma escala estatística que apresenta um problema, mas como qualquer escala estatística não explica esse problema. Isso só faz com olhar microssociológico, com estudo da realidade de cada escola”, afirma o diretor.
Ele afirma que, após a pandemia, as escolas que atendem às populações mais vulneráveis registraram um aumento da defasagem de aprendizagem, que, nesse momento, se agravou entre os alunos mais pobres. “A gente já tinha essa informação. Quando veio o Ideb de 2023, que foi de 4.8, não foi novidade porque só foi uma constatação. Em 2017, a gente já tinha alcançado a meta do Ideb, que era 6.0, e obteve resultados até 2019”, diz.
O índice varia de zero a 10 e é medido a partir do fluxo escolar e das médias de desempenho nas avaliações, com dados do Censo Escolar e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). “O Ideb não é uma coisa que deve ser vista isoladamente, porque não explica os problemas que as escolas têm. A escola vem trabalhando essa defasagem desde 2022. Só que isso é um processo, isso não faz num toque de mágica. Para você ter uma ideia, temos três professores só do primeiro ao quinto ano nós designados somente para trabalhar com grupos pequenos para ajudar no processo de alfabetização e desenvolvimento de proficiência de leitura escrita”, afirma Cláudio Marques.
“O Ideb é medido no ano ímpar e divulgado no ano par. Ele vai ser feito de novo esse ano. A mudança de diretores será agora, porque a prefeitura sabe que as escolas trabalharam e que o Ideb de 2025 muito provavelmente vai ser melhor do que 2023. Então muda agora, põe uma intervenção e quando sair o resultado do Ideb, no ano que vem, vai dizer que o mérito é dos interventores. Isso não é justo”, conclui o diretor.
Ideb de 4.8
Além dos efeitos educacionais causados pela pandemia , o diretor lista outros dois fatores que destacam o baixo índice: a alta rotatividade dos alunos e o português como segunda língua para boa parte dos estudantes.
O primeiro é explicado pela presença de alunos na escola que moram provisoriamente em unidades de Vila Reencontro, que oferecem serviço de moradia transitória para pessoas e famílias em situação de rua. Nas proximidades do Espaço de Bitita estão três vilas: Pari, Cruzeiro do Sul e Canindé. “Essas pessoas ficam nessas vagas provisoriamente, o que agrava as consequências da alta rotatividade dos estudantes. Aí entra a taxa de evasão”, diz o diretor.
Além disso, as provas do Ideb não podem ser traduzidas. Isso se tornou um problema para a escola, que tem 40% de alunos imigrantes. “Como é que uma criança que acabou de chegar ao Afeganistão vai fazer, com proficiência, uma de matemática em português, sendo que eles não permitem a tradução da prova? O Ideb na verdade é um mecanismo muito perigoso. Tem que pensar como é que o mecanismo vai dar conta dessas especificidades”, declara.
Cláudio Marques afirma ainda que a prefeitura de São Paulo nunca entendeu os motivos que levaram o Ideb da escola a cair. “Depois da pandemia, nessa gestão, ninguém veio, nem diretor regional veio sentar com as pessoas. Eles sabem que a Diretoria Regional de Educação Penha é uma diretoria que mais tem população imigrante e que tem o pior Ideb da rede. Por mais que algumas escolas hoje na cidade de São Paulo já tenham imigrantes, mas não tanto quanto nós temos”, conclui.
Interesse político
Mesmo com o índice baixo, os diretores selecionados não são das escolas com piores índices do Ideb no município de São Paulo. Esse é um dos motivos que leva a comunidade escolar a acreditar que o afastamento dos servidores públicos representa uma “intervenção autoritária” da gestão Ricardo Nunes (MDB) na educação pública.
“Tem escolas que estão com Ideb acima de cinco e outras com Ideb abaixo de cinco. Mas a estratégia é pegar as escolas mais combativas, onde tem proteção inseridas no território, para fazer o primeiro embate da privatização. Se não houver resistência de ninguém, deixe passar a boiada. Essa é a minha leitura e de outras pessoas da comunidade escolar”, analisa Cláudio Marques.
A leitura é a mesma de outras pessoas que participaram da manifestação nesta segunda-feira (26). Além do protesto em frente ao Espaço de Bitita, mobilizações em apoio aos profissionais foram registrados ao menos em outras duas escolas: na Emef Vinícius de Moraes, no Jardim Tietê, zona leste da capital, e na Emef Ibrahim Nobre , no Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.
Outras manifestações
Nesta segunda, a Congregação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) divulgou um movimento de repúdio contra o afastamento dos diretores. O documento liga a ação da gestão Nunes ao plano já divulgado pelo prefeito de privatizar a gestão de escolas com notas baixas no Ideb. “Tal programa, instituído pela Instrução Normativa de 25/04/2025, em meio à greve docente, regulamentando o sentido de controle da avaliação, valendo-se do IDEB, e formalizando os meios para executar o que, desde o final de 2024, foi expresso como uma ameaça: entregar à gestão privada as escolas que não obtiveram o mínimo determinado nesta avaliação”, diz o documento.
O colegiado considera, ainda, que o afastamento dos diretores atuais e a nomeação de interventores se vale de métodos da ditadura militar. “É, assim, longa e destrutiva a exposição feita nessas escolas, de seu corpo profissional e de seus dirigentes em todo esse período, constituindo sem dúvida uma forma de assédio moral, que aproxima o procedimento utilizado das formas de tortura psicológica, utilizadas por empresas multinacionais na ditadura civil-militar.” Leia a nota completa aqui .
O Conselho de Representantes dos Conselhos de Escola do Butantã (Crece-Butantã), colegiado que reúne representantes dos conselhos escolares de todas as unidades municipais de ensino da Diretoria de Ensino do Butantã, classificou a medida como um ataque aos princípios da gestão democrática, previstos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
“Por que os Conselhos de Escola não foram consultados? Quais foram os critérios para a seleção das unidades escolares? Quais foram os critérios para a escolha dos interventores?”, questiona o texto. “Ao afastar diretores sem qualquer diálogo, muitos deles com trabalhos premiados, a Secretaria de Educação desrespeita a autonomia das escolas, ignora a participação da comunidade (quem, de fato, mais conhece e vivencia os desafios de cada unidade) e pratica violência institucional”, segue a nota, que pode ser lida aqui .
Os Conselhos de Escola devem ser instituídos, de maneira obrigatória, em todas as unidades públicas de ensino. É composto por membros da gestão da escola, professores e funcionários eleitos por seus pares e também pais e alunos escolhidos em eleições dentro de seu segmento. As decisões sobre investimentos do orçamento da unidade e a aprovação do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola devem passar pela aprovação do conselho.
Editado por: Thalita Pires