Meu defeito de cor

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Por Fernando Molica, em Seu blog –

bandeira capa.jpgEngraçado que agora, tanto tempo depois de lançado, meu ‘Bandeira negra, amor’ gere discussões em torno de algo que eu jamais imaginara, a minha legitimidade/capacidade de escrever um romance que tem, entre os protagonistas, um negro (Frederico, advogado, militante de direitos humanos que cultiva um romance clandestino com uma oficial da PM, branca). O problema, segundo alguns, estaria na cor da minha pele – para os padrões brasileiros, eu sou branco.




O primeiro questionamento, mais suave, ocorreu no Rio, há uns dois meses, num evento da Flupp, quando houve uma pergunta sobre eventuais críticas de setores de movimentos negros ao fato de eu ter escrito o livro. Não, não soube de nenhuma reação negativa, pelo contrário. Há alguns dias, em Berlim, no lançamento da edição alemã impressa do livro, a conversa foi um pouco mais séria e partiu de duas brasileiras negras que estavam na plateia do evento que fiz n’A Livraria – livraria especializada em autores de língua portuguesa.

Não houve por parte delas qualquer hostilidade, o tema foi levantado com firmeza, ainda de maneira muito cordial. Mas a pergunta era incisiva: até que ponto um homem branco poderia entender o que se passa na cabeça de um negro? Uma das mulheres chegou a citar, como exemplos positivos, romances do querido Nei Lopes – por ser negro, ele teria uma perspectiva mais real do universo de outros negros. Sim, jamais contestaria esta afirmação, mas afirmei que qualquer crítica ao meu livro teria que ser feita depois de sua leitura.

Fã de carteirinha do Nei (que, com o Luiz Antônio Simas, acaba de vencer o Jabuti com o ‘Dicionário da história social do samba’), ainda comentei que eu dera o livro para ele, quando ainda não nos conhecíamos (fui meio de penetra num aniversário dele).
O engraçado é que ninguém questionou minha capacidade/legitimidade conceber personagens femininos ou policiais (Beatriz, a PM namorada de Frederico, é também protagonista do livro). Em meus cinco romances tive, como protagonistas, jornalistas brancos, integrantes de organização armada de esquerda, compositor de óperas e sinfonias, traficantes. Nenhum representante dessas, digamos, categorias reclamou comigo.

Na conversa lá em Berlim ressaltei que não escrevi sobre a situação genérica dos negros brasileiros, tratei de um personagem, não tinha qualquer pretensão de transformá-lo numa espécie de síntese dos problemas enfrentados por pessoas da mesma etnia. Até porque a tentativa reducionista seria um fracasso, pessoas e personagens – independentemente de cor, origem, situação social, orientação sexual – são diferentes entre si. Lembrei que nós três envolvidos na discussão éramos brasileiros, mas a coincidência não nos fazia iguais.

Frisei também que a criação de uma relação direta entre características do autor e de seus personagens seria uma limitação absurda e praticamente inviabilizaria um dos pontos fundamentais da literatura e das outras artes, a possibilidade de entendimento do outro, do diferente. O que se busca é a diversidade, não uma confluência de visões de mundo; quanto mais vozes, melhor.

Além do mais, o fato de não ser considerado negro no Brasil não me impede de ter sido vítima de algum preconceito por alguma outra razão, por ser nascido e criado em subúrbio, por ser brasileiro – tive que dar muitas explicações sobre o que iria fazer na Alemanha ao guarda da imigração para poder entrar no país. Para o policial alemão, eu não era escritor ou jornalista, mas apenas um terceiro-mundista talvez interessado em virar imigrante clandestino. Preconceitos costumam ser dinâmicos, têm a ver com referenciais de quem vê.

Uma redução dessa tentativa de compreensão e entendimento do outro poderia transformar a ficção num quase espelho de redes sociais, onde o diálogo muitas vezes se dá entre os que pensam da mesma forma. Além disso, seria absurdo negar a possibilidade de qualquer ser humano, ficcionista ou não, de ver o mundo com seu próprio olhar e de ser capaz de entender a perspectiva do outro, de ser solidário com suas dores. Apelei: pelo critério da exclusividade, Chico Buarque não teria feito suas tantas e belas canções com perspectiva feminina. Ressaltei que o ‘Bandeira negra’ é uma história de amor que, pelas características dos personagens, esbarra em questões como o racismo. Não o racismo-crime, o do xingamento ou da proibição de acesso, mas aquele que se manifesta em pequenos gestos, em olhares.

Há anos que insisto numa questão que considero fundamental: um livro deve ser lido pelo que tem entre suas capas, tem que valer o que está escrito. O que importa é o que está no texto, onde poderão ser apontados erros e/ou acertos. O julgamento baseado em características do ficcionista levaria a um determinismo absurdo, incompatível com a liberdade e com a sensibilidade de autores e leitores.

O curioso é que, já no fim do debate, mediado pelo caríssimo Rafael Cardoso, surgiu a informação de que militantes de extrema direita estavam fazendo uma manifestação contra imigrantes ali perto da livraria. Aproveitei para comentar que aqueles sujeitos não teriam a menor dúvida em me ver como estrangeiro, resultado de tantas misturas. Sou branco só no Brasil.

E, já que Nei Lopes foi citado, vale dizer que ele fez questão de mandar um e-mail para a editora, a Objetiva, com muitos elogios ao livro, por ele classificado de “magnífico”. Disse que terminara sua leitura “maravilhado”. Fiquei, claro, muito feliz. O Nei é compositor, romancista e pesquisador fundamental de tradições culturais e religiosas de matrizes africanas. Um cara que leu o livro sem se importar com a cor da pele de seu autor.

Em tempo: a ausência de autores e personagens negros na literatura brasileira contemporânea é o tema de do ensaio ‘Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea’, da a professora Regina Dalcastagnè, publicado em 2008 na Gragoatá, revista dos Programas de Pós-graduação Instituto de Letras da UFF.

No texto, em que ela cita o ‘Bandeira negra’, ela frisa que o protagonista “(…) é apenas um sujeito honesto, que trabalha o dia inteiro e ama uma mulher chamada Beatriz. Mas ele é negro. E, sendo negro no Brasil de hoje, sua história começa pela dificuldade de assumir a própria cor”.

Cita um estudo em que Antonio Cândido trata da poetização, por Castro Alves, da vida afetiva do negro. Construção que assim dava aos negros o direito à humanização, à dor e ao amor. Segundo ela, “colocar em cena personagens negras envoltas em sua subjetividade, amando e sofrendo, talvez não devesse mais ser novidade em nossa literatura, mas pouco se evoluiu desde então”.

 

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