Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César fala de duas mães maravilhosas, a própria e a mãe de sua companheira Layla, de seus costumes líquidos: Malzbier e água tônica.
Dona Dionner tem oitenta e dois anos. Desde quando me entendo como gente, ela passa longos períodos do ano em Maceió, capital do seu estado natal. Ela deve ter mais milhas de avião do que muita gente nessa ponte aérea Rio-Maceió-Rio.
Ela nasceu em Penedo, uma cidade muito bonita às margens do Rio São Francisco. Tem um casario incrível, poderia ser muito bem comparada com Olinda ou com Paraty.
Quando visitei a cidade, ainda era possível atravessar de balsa para o estado de Sergipe. Se não me engano, a travessia é curta, não leva mais que vinte minutos, mas é coisa de se averiguar.
Vi mulheres de Sergipe lavar a roupa nas pedras do rio, como se fazia antigamente. Quando as coisas são abandonadas à própria sorte, tudo parece ficar no antigamente, só que sem glamour.
Pessoa que passou por poucas e boas na vida, foi difícil segurar a mãe em casa em Maceió ao longo da pandemia.
Em um gesto de coragem e zelo, meu irmão, deixou seus afazeres, e pegou um avião para Maceió para ficar com ela. É claro que ela entendia a gravidade da situação, não poupou críticas aos responsáveis por tamanho desmazelo.
Fala em Bolsonaro perto dela, fala. Eis uma boa oportunidade para quem quiser aprender uns palavrões espanhóis.
Mas segurá-la em casa são outros quinhentos. Meu irmão cortou um dobrado, fez o que pode, utilizou todas as suas técnicas refinadas de persuasão. Perdeu algumas batalhas, é certo, mas ao fim conseguiu fazer com que ela se protegesse, evitasse saídas sem motivo.
Bem, se céu houver, meu irmão já garantiu a sua unidade, suficiente para fazer um puxadinho. Mas lhes garanto que fez porque era o que ele achava que deveria ser feito.
Foi um período difícil. Perdemos para a velhice dois tios queridos, o tio Antônio (irmão de meu pai) e o tio Josué (irmão de minha mãe). Perdemos um primo para a Covid, o Marquinhos. E para completar, o coração de tio Paulo (irmão de minha mãe) atravessou o samba e ele foi parar no hospital.
Dona Dionner não é de beber, mas não dispensa em suas saídas a restaurantes uma caneca de vinho doce. Tem que ser doce, se for seco, ela mete umas duas colheres de açúcar no seu São Roque e bebe o conteúdo da canequinha como se fosse groselha. Mamãe não é de fazer cerimônia.
Sei que Dia das Mães é data para aquecer as vendas do comércio. Todo santo dia é dia das mães, portanto, para quem as têm, para quem nunca às teve, para quem não as têm mais. Contudo, o problema maior para a gente é que ela leva a data a sério.
Há muita expectativa até que chegue às suas mãos o presentinho e ela possa dizer com sua voz embalada de sotaque: “Não precisava, meu filho!”.
Para não sermos retirados da herança ou das orações, saímos à caça de presentinhos. Pode ser uma roupa, um vestido, badulaques, essas coisas. Geralmente é a Layla, minha mulher com seu olho de lince para essas coisas, que toma para si tais incumbências.
E eu, o que faço? Cabe a mim a procura, cada vez mais difícil, da Malzbier da Brahma, a verdadeira, a autêntica, a melhor. Se eu levar de outra marca, ela dá uns golinhos, põe o copo de lado e diz: “Não precisava, meu filho!”.
E lá se vai a cerveja preta adocicada pelo ralo da pia da cozinha.
Por isso, quem souber de um supermercado que estiver vendendo a única cervejinha de que a dona Dionner gosta, favor não fazer cerimônia: trate logo de me avisar, que o tempo urge. É questão de mãe.
MEU REINO POR UMA ÁGUA TÔNICA
Sempre ouvi dizer que a convivência com sogra pode ser uma coisa difícil. É coisa de caso a caso, não é mesmo? De minha parte, digo-lhes que nunca tive problemas com a minha. Que ela foi uma grande mãe para os filhos dela e uma grande sogra para mim é líquido e certo.
Sua ausência é um estar em mim, como diz um dos versos do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Eu gostava de ouvir a voz dela ao telefone, uma voz suave, com todas as palavras em seu lugar. Pode parecer loucura, mas não posso deixar de dizer que eu gostava da voz da minha sogra.
Do outro lado da linha, eu ouvia chegar doçura, boas maneiras, pouca afetação. Minha sogra tinha elegância para tomar café em xícara sem asa, que é típica das famílias árabes. Ali o mindinho não deve ficar em riste. Nunca.
Ela se chamava dona Nawal, mas a gente costumava chamá-la de “Nauê”. Havia também o apelido, dona “Naval”, corruptela do nome próprio. Veio de navio do Líbano para cá, a mais velha de seis irmãos, estudou, se formou em professora, se casou, criou cinco filhos e ajudou a criar os nossos enquanto pôde, cantava enquanto lavava louça. Fazia um quibe cru de rejuvenescer as crianças e os adultos.
Dona Nawal era do tempo em que se recomendava às gestantes tomar Malzbier! Era para encher as mamas das mamães de leite, os médicos murmuravam. Não sei se a sugestão procedia, mas a dona Nauê, se as recomendações médicas foram seguidas à risca, deve ter tomado uns dois caminhões de cerveja de Malzbier. Hic, hic! Cinco filhos não é para essa nossa geração, não.
Lembranças, não lembrancinhas!
Domingo sim, domingo não, íamos para a casa da mãe da dona Nauê, a Tayta Júlia. Gente para caramba, minha nossa senhora. A primarada mais os agregados. Dona Nauê ia imbuída de um sentimento quase religioso, de uma missão.
É o tal do sacrifício radical! Doar o seu bem mais precioso, a sua vida, para que toda a comunidade possa se beneficiar de seu gesto.
É mais fácil, mais prático, de repente até mais em conta, ir a um restaurante. Mas esta não é a questão. Laços de sociabilidade não se fazem apenas com dinheiro.
Quando a conheci, a bebida dela não era a tal da cerveja preta adocicada, mas água tônica. Havia sempre pelo menos uma latinha na geladeira de casa. Se não houvesse, a gente ia comprar na rua.
Também gostava de passear. De sorvete de amora, “É uma delícia, meu filho”, ela costumava dizer. Se fossemos para a Barra, ela mostrava a escola onde ela trabalhou. A gente ria, sabia que ela ia fazê-lo.
Para finalizar, a vida dessas pessoas reluz em nós como as estrelas. Ou como a minha mãe costuma dizer: “Você nunca vai entender o que é ser mãe!”. Isto, é claro, se eu não lhe levar o presentinho. E ai de mim se não levar a danada da Malzbier.
Sobre o Autor:
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.