Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César fala de seu tio, singela pessoa que sofria de deficiência mental.
César me enviou o texto antes da decisão absurda (mais uma) do inquilino do Palácio do Planalto em vetar a homenagem à psiquiatra Nise da Silveira, impedindo com isso a inscrição do nome dela no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
E, nesta mesma semana de absurdos (mais uma), agentes da Polícia Rodoviária Federal de Sergipe foram responsáveis pela morte por asfixia de Genivaldo de Jesus Santos. A vítima, que sofria de esquizofrenia, foi trancafiada no porta malas de uma viatura repleto de gás.
Temos o hábito de usar a palavra “locura” para várias situações. No entanto, precisamos parar para pensar sobre pessoas que sofrem de doenças mentais e são tão discriminadas. Aquele que se senta na cadeira presidencial, policias fora da lei e milicianos nada têm de loucos, são criminosos.
Vamos ao texto de Cícero César:
“Prezado Washington, ele se chamava Josué. A gente o chamava de tio Joia. Era um apelido feliz como poucos. Minhas lembranças dele se confundem com as de minhas estadias em Maceió. Era a época em nos hospedávamos na casa do tio Paulo, à Rua dos Timbiras.
De sua condição mental só vim a saber mais tarde, quando eu já era adolescente. Eu achava a coisa toda muito esquisita, mas assuntos de tal natureza não eram naquele tempo assuntos de criança.
Ele dormia de manhã e ficava acordado à noite, em “plenária”, como a gente dizia. Ele falava muito, mas havia pouco de inteligível em seu discurso.
Interagia com a gente, sabia que éramos os seus sobrinhos. E fumava fumo de rolo, agachado à maneira dos caipiras. Eu o via picar o fumo com uma faca afiada para depois fazer um cigarro com o papel marrom das bolsas de supermercado. Era um fumo de cheiro forte capaz de causar náuseas.
Não sei se tio Joia recebeu tratamento adequado. Muito provavelmente, não. Talvez na primeira crise ele tenha sido internado em manicômio. Depois dessa vez, recebeu tratamento domiciliar, com a qual se criou uma situação muito comum: era como se ele não existisse da casa para fora, a família, para o proteger, o escondia, o encerrava entre as cercanias de casa.
Para todos os efeitos, ele era um bicho doméstico, um gato, cheio de assuntos indevassáveis.
Invertendo a genial frase de Caetano Veloso, eu posso lhe assegurar: de perto ele era normal tanto quanto qualquer um. Fazia graça até. Pegava o chapéu de um, botava os óculos de outro, e se ria, sinal de que sabia que estava sendo jocoso.
Quando descobriu que eu fumava, se pôs a filar meus cigarros, com e sem a minha permissão. Remexia as malas como um gatuno em busca dos meus Lucky Strikes – marca que eu passei a fumar por causa do disco “Burguesia” do Cazuza.
Tio Joia passou um tempo fumando cigarros normais até que tio Paulo decidiu fazer com que ele abandonasse o vício. Lembro-me de que meu pai disse que fumar era uma das poucas distrações do Joia, em sinal de protesto pela decisão do tio Paulo.
De vez em quando meu irmão e eu levantávamos hipóteses: se tio Joia tivesse recebido tratamento adequado no momento certo, talvez ele tivesse levado uma vida com mais autonomia.
É certo que o estigma era imenso à época, estou falando de um doente mental nascido na década de 1940, talvez 1945, talvez 1946.
Entretanto, no Brasil e alhures, já havia despontado uma luta contra os manicômios que eram cemitérios de vivos (vem à mente o nome da também alagoana Nise da Silveira) e métodos desumanos como eletrochoques e lobotomias.
Quando começou a pandemia de Covid-19, minha mãe estava em Maceió. Meu irmão, arriscando literalmente a própria vida, uma vez que ele faz parte do grupo de risco, deixou para trás todos os seus afazeres no Rio de Janeiro e se mandou para a cidade da curva do sol, a fim de protegê-la.
Com isso, homem feito, acompanhou, ainda que a partir de distância segura, o cotidiano de nossa família. Foi meu irmão quem comprou papel, lápis, borracha, pinceis e tintas para que tio Josué se expressasse livremente. As tintas e os pinceis tio Joia recusou, preferindo desenhar à mão livre mesmo.
Foi nesta página infeliz da nossa história brasileira que minha história de hoje chega a um epílogo: depois de um banho no quintal, tio Joia foi se agachando, devagar, devagar, até que chegou ao chão desarcordado. Morreu praticamente nos braços de minha mãe, sem dar trabalho. Era a hora da siesta.
A ilustração do texto de hoje foi feita por ele, Josué Sotero De Menezes, meu tio. Quando meu irmão perguntou o que era, não houve titubeios: era um cowboy. De fato, o desenho não deixa mentir, ainda que se vejam traços da estilização de figuras do cangaço, é um cowboy, com seu chapéu e com dois revólveres.
Impressionou-me a qualidade do desenho. Achei-o bonito mesmo. Mais que bonito até: é uma demonstração da vida interior de uma pessoa. Ele viveu, ele gostava de fita de faroeste, talvez. Ele desenhava. Ele era meu tio.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.