Por Gil Alessi, publicado em El País –
STF concedeu ‘habeas corpus’ coletivo para presas grávidas ou com filhos em casos de crimes não violentos, mas só 38% das potenciais beneficiadas conseguiu ir para casa
Dos bebês gêmeos Diogo e Breno, de seis meses de idade, restou apenas um mordedor de plástico transparente. Luiza, 36, apertava o brinquedo contra o rosto enquanto chorava, deitada sozinha na cama de cimento dentro de sua cela na Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, bairro da zona norte de São Paulo. Foi lá que ela deu à luz os bebês após ser presa por tráfico de drogas. Por seis meses mãe e filhos ficaram juntos as 24 horas do dia dentro da unidade. Terminado esse prazo foram separados, e os gêmeos felizmente foram entregues à avó materna: em alguns casos o destino de crianças nesta situação é a adoção.
“Minhas colegas da prisão falavam que eu precisava sair da cama, caminhar… Mas eu só conseguia pensar neles longe de mim, fiquei depressiva”, contou Luiza ao EL PAÍS em sua casa no Itaim Paulista, zona leste da capital. Foi só em agosto deste ano, após semanas de separação, que ela voltou para casa e pôde se reunir com os bebês novamente. Hoje eles estão com dez meses de idade. Ela foi beneficiada por um habeas corpus coletivo concedido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal em fevereiro para gestantes e mães de filhos com até 12 anos presas por crimes não violentos. A medida previa a conversão das penas de prisão em regime fechado para a prisão domiciliar. Mas o caso de Luiza, que após cumprir cinco anos de prisão pôde voltar a criar os filhos em casa, foi uma exceção. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), das 14.750 mulheres que poderiam ser beneficiárias do habeas corpus em todo o país, apenas 5.500 haviam sido liberadas até novembro —cerca de 37%.
Em São Paulo, Estado que abriga a maioria das presas, foram protocolados 3.421 pedidos de soltura, mas apenas 1.334 foram aceitos pelo Judiciário local, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária. Isso porque os juízes de primeira e segunda instância decidiriam adotar seus próprios critérios na concessão ou não do habeas corpus, algo incomum, tendo em vista que este dispositivo deve ser de cumprimento imediato —ainda mais quando concedido pelo STF. O EL PAÍS obteve 12 despachos assinados pelos magistrados paulistas para não autorizar a libertação das mães grávidas ou com filhos pequenos que contrariavam o que determinou o Supremo.
O magistrado Paulo César Ribeiro Meireles, por exemplo, nega um pedido de soltura e ainda alega em seu despacho que caso a determinação do STF seja cumprida ao pé da letra abre-se a porta para que “muitas presas façam questão de engravidar (…) para serem postas em liberdade”. Na decisão, Meireles afirma ainda que durante o processo a ré em questão não “demonstrou a inexistência de condições para os cuidados dos filhos menores sem ela”. Em entrevista ao EL PAÍS o juiz afirmou que a decisão mencionada “deve ter sido tomada antes da nova jurisprudência do STF, quando havia apenas um parecer do relator ministro Ricardo Lewandowski”. O despacho de Meireles, entretanto, é de 9 de março, e a decisão da 2ª Turma do Supremo é de 20 de fevereiro. O magistrado lamenta o precedente do Supremo: “Evidentemente que não é uma decisão benéfica [o habeas corpus] nem para sociedade, nem para a mulher que está nesta situação e nem para criança”, disse. “Assim como o crime organizado recruta menores de idade para cometer crimes cientes de que eles não cumprirão penas longas, o mesmo já está ocorrendo com mães de crianças pequenas”, afirmou, fazendo a ressalva de que “ainda não existem dados oficiais sobre isso”.
“Evidentemente que não é uma decisão benéfica [o Habeas Corpus] nem para sociedade, nem para a mulher que está nesta situação e nem para criança”, diz juiz que negou benefício
Já o juiz Alexandre Levy Perrucci se negou a colocar uma mulher em liberdade com base no horário em que ela havia sido presa: “a acusada foi presa em flagrante em plena sexta-feira, por volta das 8h30 da manhã, pela suposta prática de crime de tráfico de entorpecentes, demonstrando que não se trata de pessoa de caráter exemplar”. Logo, de acordo com ele, “colocá-la em contato com seus filhos implicaria expor as crianças a situação de risco e ao meio criminoso”. Outro, cujo nome não consta no despacho, negou o habeas corpus de uma presa citando como argumentos a prostituição e o Bolsa-Família: “Pessoas ouvidas afirmaram que a acusada não trabalha, usando o dinheiro que recebe do Bolsa-Família para se sustentar”. Mais à frente ele se contradiz, e afirma que ela “fazia programas sexuais e aceitou armazenar drogas”. Conclui dizendo que “sob os parcos cuidados da mãe, [a criança] estava exposta aos perigos inerentes ao convívio bem próximo com a criminalidade, de modo que considero que a figura materna é dispensável ao seu bem-estar”.
Por fim, o juiz André Gustavo Cividanes Furlan elabora uma teoria de contágio da criminalidade, ao negar “a prisão domiciliar à acusada (…) para manutenção da ordem pública e para evitar que outras mulheres se envolvam na mercância ilícita”. A reportagem entrou em contato com o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre estas decisões, mas a assessoria informou que e a Lei Orgânica da Magistratura proíbe que juízes comentem seus pareceres ou de outros colegas.
“O habeas corpus deveria ser cumprido sem questionamentos”, afirma Ivar Hartman, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do projeto Supremo em Números. No entanto, “o que juízes fazem quando discordam do precedente e da jurisprudência do STF é pegar um caso particular e tentar descrever como se tivesse aspectos que o tornam diferentes o suficiente para que não fosse enquadrado pela decisão do Supremo”. Para Hartman, esse tipo de expediente “é problemático: não queremos um Judiciário onde o juiz de primeira instância não tenha autonomia alguma, mas eles também não podem agir como quiserem”. Por fim, o professor destaca que isso sobrecarrega o tribunal, “que acaba tendo que deliberar novamente sobre assuntos já decididos”.
“Mas o que ocorre é o contrario: os juízes são mais parte do problema do que da solução”
A separação entre mãe e filhos no cárcere deixa marcas profundas nos envolvidos. “Esse foi um dos maiores sofrimentos que passei desde que ganhei minha liberdade: quando cheguei em casa o Diogo e o Breno não se lembravam mais de mim e não queriam ir no meu colo”, conta com a voz embargada Luiza, que ficou grávida durante uma das saídas permitidas pela Justiça para manter laços com a família. “Eu os pegava do colo da minha mãe e eles choravam. Eu chorava junto”, relembra. Passaram-se semanas até que a relação se normalizasse. Além do distanciamento provocado pela separação entre mãe e filhos, os bebês levaram para casa outro trauma decorrente do período vivido atrás das grades. “Na prisão não tem barulho. O único barulho é cadeado fechando. Então quando eles saíram para morar com minha mãe se assustavam com tudo, barulho de carro, cachorro… O mundão do lado de fora era todo novo. Até hoje o Diogo chora quando ouve barulho alto”, diz.
Para Eloisa Machado, uma das advogadas do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, entidade responsável pelo pedido de habeas corpus coletivo acatado pelo STF, a resistência dos juízes já era esperada. “Ricardo Lewandowski [relator do habeas corpus na Corte] e a 2ª Turma acreditaram que seria possível ter esses juízes como aliados. Mas o que ocorre é o contrário: eles são mais parte do problema do que da solução”, afirma. Machado também explica que, apesar da lentidão para libertar as mulheres, existe um outro benefício da decisão que precisa ser levado em conta. “Segundo o STF esses parâmetros [de conceder domiciliar ou aberto para gestantes e mães] devem ser adotados na audiência de custódia [que ocorre logo após a prisão]”, diz. Como consequência, um número ainda desconhecido de mulheres que não cometeram crimes violentos deixou de entrar no sistema penitenciário, desafogando os presídios e preservando os laços familiares.
Com o objetivo de driblar a resistência dos juízes, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos defende que as secretarias de administração penitenciária de todos os Estados libertem as presas que se enquadram no habeas corpus sem necessidade de análise por parte de outros magistrados. “Nada mais ordinário do que a ordem de habeas corpus, já proferida pela egrégia turma do Supremo Tribunal Federal, tenha aplicabilidade imediata pelos órgãos da administração penitenciária”, escreveram em uma nova petição protocolada em setembro. Lewandowski ainda não se posicionou sobre o assunto.
Durante a entrevista de Luiza ao EL PAÍS, Breno pega no sono colo da mãe. Ela pede licença e vai colocá-lo no berço. Com o bebê já deitado, enquanto é fotografada, ela lamenta: “Uma coisa que me causava muita revolta é que não tenho foto nenhuma deles recém-nascidos, porque não era permitido. Que recordação vou ter deles quando o tempo passar? Que pai e mãe não têm foto dos recém nascidos?”.
Os nomes da reportagem foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.