Meus heróis civilizadores

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Por Luiz Antônio Simas, via Facebook, publicado no Jornal GGN – 

Acabei de assistir a aberração do quadro de um personagem “africano”, atração de um programa humorístico da TV aberta. É um horror que não reproduzirei aqui. Vou apenas circular novamente um texto meu de 2011 que diz tudo o que acho sobre isso.

MEUS HERÓIS CIVILIZADORES

Não existe redenção para as grandes tragédias, mas a vingança sublime e a única forma de transcendência dos homens ao desmazelo da vida é transformar a má fortuna e a dor em beleza, civilização e arte. Os meus heróis civilizadores não frequentaram bibliotecas, não discutiram a alta filosofia nas academias e universidades, não escreveram tratados iluministas, não pintaram os quadros do Renascimento, não escreveram romances, não compuseram sinfonias, não conduziram exércitos em grandes guerras, não redigiram leis, não fundaram empresas, não elaboraram tratados e constituições e não planejaram monumentos, edifícios e pontes.




Os homens que me civilizaram chegaram às praias do meu país nos porões infectos dos tumbeiros e foram vendidos e marcados feito gado no mercado.

Eu fui civilizado pelo rufar dos tambores misteriosos, pelo toque de São Bento Grande no berimbau de cabaça, pela dança desafiadora do Obá dos Obás, pelo bailado da dona do afefé – sagrado vento – e pelo xaxará do senhor da varíola, a quem reverencio e peço a calma para não estranhar o mundo: Atotô!

Aprendi a olhar com admiração os homens ao conhecer os dribles de Mané, a ginga de Pastinha, a sabedoria de Menininha, a força de Candeia, os versos de Silas, o miudinho de Argemiro, as esculturas de Mestre Didi, as toalhas rendadas de Tia Prisciliana, o cachimbo de Dona Eulália, o canto de Anescar, o tempero da Iyá Bassê, o lamento dos vissungos, o machado do jongo, as folhas de Ossain e os cantos de evocação de Oxupá, dindinha lua.

Quem me criou não tinha educação formal e não me deu o Dom Quixote, o Crime e Castigo, o Dom Casmurro, o Grande Sertão e outros tantos grandes livros que, como esses, eu li um dia e passei a amar. Quem me criou, porém, me contou das artimanhas de Exu, da flecha certeira de Oxóssi, dos amores de Ogum, das mulheres de Xangô, do tronco forte de Tempo e do pano branco de Lemba – e eu passei a gostar de ouvir e inventar histórias, no alargamento da vida.

Quem me criou não me levou aos teatros, não me apresentou a grandes óperas e não me presenteou com discos de sublimes sinfonias – que dessas coisas quem me criou não sabia. Mas quem me conduziu cantou, para confortar as minhas noites, sambas, toadas, jongos, afoxés, cirandas, maracatus, alujás, calangos, xibas e xotes – e eu fui apaziguando a alma com os sons do meu povo.

E é por isso, por essas áfricas que me fizeram como sou, que gosto da rua, do mercado, dos amigos, da gente miúda feito eu, do porre, da bola, do beijo, da troça, da raça, do sol, da cachaça, da carne, da alegria, da subversão, da insubmissão, da guerrilha, do vento, da aldeia, do mistério, da mistura, do dendê, das pernas tortas, do português torto, da língua do Congo e do pranto do banzo.

Mojubá, agô, que essas ideias todas são mais fortes em agosto, mês do aniversário de Candeia e do encantamento de Caymmi. E eu me pego todo dia a orar a Zâmbi por um Brasil mais tolerante com o seu povo. Há que se lamentar o martírio dos tumbeiros, fazer do tronco do castigo o totem da humanidade e louvar a todos os quilombolas, de ontem e de hoje, que me ensinaram a amar a terra e celebrar a vitória da vida sobre a morte – lição maior de Licutam, Luísa Mahin, Zomadônu e Zacimba Gaba. O Brasil haverá de saber quem eles são.

É só assim que a gente afaga o tempo, serpenteia a dor e apascenta, entre um tombo e outro, o olhar sobre a belezura do que pode ser o mundo

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