Mídia monopolista incita permanentemente a violência contra os excluídos, diz Zaffaroni

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Publicado em Sul 21 – 

Eugenio Raúl Zaffaroni analisou a influência da mídia no sistema penal da América Latina. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marco Weissheimer

A questão democrática e a midiatização do processo judicial no Brasil foi o tema central do debate que lotou o salão do Hotel Continental, em Porto Alegre, na noite de quinta-feira (2). O responsável pela lotação do espaço foi o jurista argentino, Eugenio Raúl Zaffaroni, principal conferencista da noite. Ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, Zaffaroni, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de ser vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal. E a situação do Direito Penal na América Latina foi um dos principais temas abordados no evento promovido pelo Instituto Novos Paradigmas (INP), que vem promovendo uma série de encontros no Brasil e no Exterior para debater a crise do estado democrático de direito.




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No atual contexto de avanço do estado de exceção, “o senhor representa o Direito e a Razão”, disse Tarso Genro, presidente do conselho programático do INP, ao apresentar o conferencista da noite. Zaffaroni falou sobre este cenário, destacando o papel da mídia e do sistema penal como um todo na construção de uma cultura punitivista na sociedade que, para ele, representa uma séria ameaça à democracia e à segurança das pessoas. “Todos temos experiências de condenações midiáticas, casos onde a condenação vem antes do devido processo penal. No meu país, os juízes têm medo da mídia. Hoje, na Argentina, há juízes sendo perseguidos pelo conteúdo de suas sentenças. É a primeira vez que vejo isso acontecer desde que retornamos à democracia, em 1983”, relatou.

Salão do Hotel Embaixador ficou lotado para conferência de Zaffaroni. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O estereótipo do criminoso

Para o magistrado argentino, há hoje, em praticamente toda a região da América Latina, um monopólio midiático responsável pela construção de uma visão única da realidade, o que é incompatível com a democracia e com uma sociedade plural. O que vivemos em nossa região, assinalou, são monopólios midiáticos com um discurso único que alimenta uma cultura punitivista que acaba contaminando toda a sociedade. “No México, a mídia faz um discurso racista dizendo que os mexicanos são historicamente violentos. Nos países do Cone Sul, a mídia dá grande ênfase ao noticiário policial. Essa mídia monopolista está permanentemente incitando a vingança e a violência contra uma classe, a dos excluídos. O estereótipo do criminoso entre nós é o adolescente de bairros precários”.

Essa cultura, disse ainda Zaffaroni, aumenta a seletividade do sistema penal como um todo. “Todo sistema penal é seletivo. A pena é um fato político, uma expressão de poder. O direito penal habilita o poder punitivo, mas também limita esse poder. Nós exercemos o controle jurídico do exercício desse poder e precisamos nos esforçar para diminuir esse nível de seletividade”. Falando da realidade argentina, o jurista apontou um fato novo que estaria agravando o nível e a natureza dessa seletividade. “O grande perigo deste momento, ao menos em meu país, além dessa seletividade estrutural do sistema penal, é o surgimento de uma seletividade persecutória, onde o inimigo passa a ser o opositor político, o que representa um sintoma totalitário. Na Argentina isso é muito claro. Fala-se de lawfare, mas talvez seja melhor falar de law far (longe do direito)”. “Está se perdendo todos os limites”, acrescentou. “Pela primeira vez, em 35 anos de democracia, voltamos ter presos políticos”.

“Poder financeiro é uma pulsão de totalitarismo que quer ocupar o lugar da política, enfraquecendo o Estado”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“Poder financeiro quer ocupar lugar da política”

Para Zaffaroni, esse cenário está inserido no marco de um novo poder planetário engendrado pela globalização: o poder do capital financeiro que busca o máximo de rendimento no menor espaço de tempo e alimenta pulsões para tomar o lugar da política e dos políticos. “Esse poder financeiro é uma pulsão de totalitarismo que quer ocupar o lugar da política, enfraquecendo o Estado. O objetivo desse poder é criar uma sociedade com 30% de incorporados e 70% de excluídos. Entre o incluído e o excluído não existe mais nenhuma relação dialética como havia entre o explorador e o explorado. O excluído é absolutamente descartável”. Esse sistema, disse ainda Zaffaroni, precisa da mídia e do sistema penal para reforçar o aparato repressivo.

A pretensão desse poder financeiro global de enfraquecer o Estado e ocupar o lugar da política representa uma ameaça para toda a humanidade, advertiu o magistrado. “A humanidade só tenta impor limites quando sente medo. A Declaração dos Direitos do Homem surgiu porque o mundo ficou apavorado com a Segunda Guerra Mundial e o surgimento da bomba atômica. Estamos vivendo um momento regressivo, mas a criatividade política não surge nos períodos de bonança. Vivemos um período de resistência e é preciso lembrar que o Direito é luta. Ao longo da história, os direitos sempre foram arrancados na luta”, destacou Zaffaroni que vê a América Latina com capacidade de resistir à ofensiva desse poder financeiro global:

“A América Latina não vai ficar calada. Ela tem uma dinâmica própria. É um mosaico formado por todos os excluídos do mundo: povos originários, africanos, imigrantes da Europa subdesenvolvida. Estamos sincretizando culturas. Precisamos virar Hegel de cabeça para baixo. Todas as culturas descartadas por ele estão se sincretizando entre nós. Por isso, nada de depressão. É tempo de resistir”.

A conferência de Zaffaroni foi debatida por Maria Helena Weber, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Wunderlich, Doutor em Direito pela PUCRS, e Domingos Savio Dresh da Silveira, Procurador Regional da República e professor da Faculdade de Direito da UFRGS.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Visibilidade, cegueira e o Direito Penal

Maria Helena Weber utilizou o par “visibilidade e cegueira” para falar do papel desempenhado pela mídia hoje. “A realidade vai sendo enquadrada por diferentes tipos de recorte que envolvem desde os critérios que definem as fontes consultadas até o apagamento de outros tipos de recorte”. Esse enquadramento, acrescentou, apresenta uma realidade dramatizada insidiosa que naturaliza o preconceito, a violência e a indignidade.

Alexandre Wunderlich destacou a premissa básica que embasou a fala de Zaffaroni: o Direito Penal tem a função de limitar o poder punitivo do Estado. “Nunca conseguimos aplicar essa premissa. Passamos a década de 90 promulgando novas leis penais e provocando um inchaço do Direito Penal, criminalizando todas as condutas que os meios de comunicação consolidaram no imaginário social como passíveis de pena. Estamos vivendo a perda da dignidade do Direito Penal. A magistratura tem que colocar o Direito Penal no seu lugar”.

Na mesma linha, Domingos Savio afirmou que estamos vivendo um estado de exceção com um subproduto inesperado: em função da necessidade de resistir a ele, está juntando as pessoas que estavam dispersas e esse auditório aqui hoje é uma prova disso. Lembrando uma reflexão de Pierre Bourdieu, ele comentou o papel desempenhado pela televisão hoje, observando que “é próprio do estado de exceção que as palavras percam seu sentido”. “A TV se tornou um perigo para a democracia. Ao invés de ser um instrumento de comunicação, ela se tornou árbitro da existência social, definindo aquilo que existe e o que não existe. E ninguém chama isso de censura”.

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