Militarização avança nas escolas públicas da Bahia

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Método de ensino dos Colégios da Polícia Militar (CPMs) já foi implantado em 98 escolas de 85 municípios baianos

Por Meus Sertões, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Alunos formados na Escola Municipal Professora Maria José dos Santos Lima, em Piripiranga, conveniada ao Sistema do Colégio da Polícia Militar: ensino militarizado avança na Bahia (Foto: Prefeitura de Piripiranga / Divulgação 10/05/2019)

(Linda Gomes e Paulo Oliveira*) – No dia 11 de maio de 2018, policiais militares da 54ª Companhia Independente, em Campo Formoso, postaram na página da unidade no Facebook , um vídeo e a seguinte mensagem: “Por volta das 14 horas, o Colégio Maria do Carmo, primeiro na Bahia a adotar o modelo de gestão compartilhada – sistema CPM, recebeu a visita do comandante-geral da PMBA (…)”. As 29 fotos que constam no vídeo mostram o coronel Anselmo Brandão sendo recebido por uma guarda perfilada, apresentando armas (fuzis). Em seguida, as imagens são de vistoria na unidade escolar, conversa e troca de continência com um aluno. O oficial coroava assim o cumprimento da missão de iniciar o processo de militarização das escolas municipais na Bahia.

A implementação do método de ensino dos Colégios da Polícia Militar (CPMs) em unidades escolares do interior do estado foi feita às pressas, por determinação do governador Rui Costa (PT), em ano de eleições majoritárias que resultaram na reeleição do petista em primeiro turno. Desde então, a PM implantou, em parceria com prefeituras e secretarias municipais de educação, 98 escolas em 85 (20,4%) municípios. Outras 18 estão planejadas para atender 13 novas cidades e ampliar o sistema em outras duas.

Antes da pandemia, segundo a coordenação-geral do sistema CPM, cerca de 50 mil alunos , entre 11 e 14 anos, frequentavam os estabelecimentos de gestão compartilhada, onde são obrigados a obedecer 66 normas comportamentais e de apresentação pessoal, previstas pelo regulamento disciplinar e pela cartilha de apresentação pessoal.

Os policiais também criaram a matéria Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE), que inclui instrução militar e conteúdo semelhante ao de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), ministrada por PMs da reserva remunerada que integram a equipe disciplinar de cada escola.

Aprovado por pais e mães que veem no projeto uma forma de proteger os filhos da violência e evitar que eles se envolvam com a criminalidade, os colégios do modelo CPM reúnem um total 466 policiais da reserva remunerada, o equivalente a um batalhão de polícia, com a missão de garantir a disciplina e a ordem entre os estudantes, dentro e fora das escolas. Para isto, cada um recebe valores, além dos vencimentos da aposentadoria , que variam de R$ 2 mil a R$ 4 mil, de acordo com o cargo ocupado – diretor, coordenador ou tutor disciplinar. Em muitas cidades os valores equivalem aos salários de um defensor público ou de coordenador de diferentes secretarias.

No decorrer da apuração também foi possível constatar que há outras formas de tratar da violência nas escolas e em seu entorno e que a PM sozinha não tem condições de solucionar uma questão tão complexa, a ponto de, mesmo com um sistema rígido disciplinar, não impedir a ocorrência de bullying, agressões e denúncias de racismo. Em uma delas, em São Sebastião do Passé, na região metropolitana de Salvador, o disciplinador foi acusado de ter impedido o acesso de uma aluna negra por causa do cabelo dela.

Atualmente, o perfil dos agentes, quase a totalidade formada por homens, inclui um novo componente: o religioso. Pelo menos nas escolas visitadas, a maioria frequenta igrejas evangélicas e passam mensagens com citações bíblicas pelas redes digitais. “Tem um diretor disciplinar muito bom, em Conceição do Jacuípe, que passa essas mensagens para mim também. O nosso regulamento não tem nada sobre isso. Mas, se o responsável pela disciplina passa uma coisa boa, acho ótimo”, diz a major Fabiana Guanaes, coordenadora-geral do sistema CPM.

É importante ressaltar que nem todos os dados sobre a implantação da militarização nas escolas baianas são revelados pelos prefeitos, secretários de educação e oficiais da PM. Dados de evasão, de pedidos de transferência de professores, de custos das obras físicas para adequação ao sistema, por exemplo, são omitidos sob a alegação de que não são elevados e que os resultados compensam.

No entanto, a equipe de Meus Sertões conseguiu obter alguns deles, após consulta de documentos como o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal para acompanhar as condições de aplicação da metodologia dos colégios militares em escolas municipais. A Procuradoria Regional dos Direitos dos Cidadãos (PRDC) recomendou que a implantação do sistema fosse interrompido e deixasse de restringir a liberdade de expressão, de impor padrões estéticos e interferir na vida privada dos alunos. A proposta não foi acatada. A conclusão da investigação está prevista para o dia 12 de setembro de 2022.

O coronel Anselmo Brandão, hoje na reserva remunerada, considera que o método não fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nem a Constituição Federal, conforme apontou o procurador Gabriel Pimenta. Por isso, tocou o projeto em frente. Antes, enviou ofício ao MPF informando que falhas identificadas no início da implantação do sistema de gestão compartilhada foram sanadas. Mais: o oficial, recentemente, anunciou sua candidatura a deputado federal e a intenção de lutar para estender a militarização a outros níveis de ensino.

Alunos de escola municipal de Caravelas, no Sul da Bahia, que usa o Sistema CPM: 66 normas comportamentais e de apresentação pessoal (Foto: Prefeitura de Caravelas)
Alunos de escola municipal de Caravelas, no Sul da Bahia, que usa o Sistema CPM: 66 normas comportamentais e de apresentação pessoal (Foto: Prefeitura de Caravelas)

A caminho do interior

Quando o governador Rui Costa (PT) anunciou que o Estado assinaria o termo de acordo para implantação da metodologia dos Colégios da Polícia Militar (CPMs) nos estabelecimentos municipais de ensino da Bahia, a Escola Professora Maria do Carmo de Araújo Maia, em Campo Formoso, já tinha realizado a aula inaugural quatro dias antes (12/03/2018) sob o novo sistema. Na ocasião, Anália Freire, diretora da escola, divulgou as novas normas, incluindo que não seria mais permitido o uso de qualquer adereço que não fizesse parte do fardamento e o uso obrigatório de coque pelas meninas. Na véspera, segundo o site Campo Formoso Notícias, a Secretaria de Desenvolvimento Social providenciou o corte de cabelo dos garotos.

A Polícia Militar começou a administrar o próprio colégio em 1957. A iniciativa foi do governador Antônio Balbino, seguindo o exemplo do Exército, que acabara de criar uma escola de segundo grau em Salvador. De acordo com a dissertação “Colégio Estadual da Polícia Militar da Bahia – Primeiros Tempos: Formando Brasileiros e Soldados (1957-1972), da historiadora Andrea Reis de Jesus, Balbino assinou decreto com objetivo de propiciar instrução gratuita aos filhos de policiais e, caso as vagas não fossem totalmente preenchidas, seriam destinadas para familiares de servidores públicos civis.

Com o passar do tempo, as duas salas improvisadas no Centro de Instrução da Polícia Militar se transformaram em uma rede estadual de CPMs. Para isto, foi fundamental a decisão do governador Paulo Ganem Souto. Entre 2003 e 2007, Souto (ex-PFL, ex-DEM e hoje no União Brasil) interiorizou os colégios através de um acordo com a secretaria estadual de Educação e a autorização para transformar escolas públicas em estabelecimentos militarizados. Surgiram então as unidades de Itabuna, Feira de Santana, Ilhéus, Vitória da Conquista, Juazeiro, Alagoinhas, Jequié, Candeias e Teixeira de Freitas. À época, também foi criado o CPM do bairro da Ribeira, o terceiro da capital, ao lado do “colégio mãe” Dendezeiros e o do Lobato.

O número de CPMs pôde ser ampliado, depois que a lei de organização básica da corporação foi alterada no último ano de gestão de Jaques Wagner. O limite passou para 17 escolas militarizadas. No decorrer dos governos petistas, Wagner e Rui Costa instalaram dois CPMs em bairros da capital – Boa Viagem (2007) e Fazenda Grande II (2017) – e um em Barreiras (2018), cidade cuja principal atividade econômica é o agronegócio. Este ano foi anunciada a implantação de mais uma unidade em Bom Jesus da Lapa. Falta definir a última. No entanto, oficiais da área de ensino da Polícia Militar dizem nada impedir que futuros governadores aumentem a quantidade de colégios.

Uma importante documentação sobre o controle de unidades de ensino por policiais militares é a dissertação “Militarização das escolas públicas no Brasil: expansão, significados e tendências”. Nela, o professor Eduardo Junio Ferreira Santos revela que o processo começou no Mato Grosso, em 1990, e se alastrou para pelo menos 12 estados e o Distrito Federal. Ao final de 2019, Santos contabilizou 240 escolas militarizadas. A Bahia, com 79 – 13 estaduais e 66 municipais -, liderava o ranking. Goiás, que serviu de modelo para o fenômeno, caiu para segundo lugar. Entre os anos de 2000 e 2021, o Paraná assumiu a dianteira desta iniciativa. Em oito meses, o governador Ratinho Júnior implantou 206 “escolas cívico-militares”, equivalente a 10% de toda a rede estadual.

Narrativa oficial

O motivo de a Polícia Militar baiana ter decidido ampliar a área de atuação para o Ensino Fundamental II, segundo o comando da corporação, foi para atender ao pedido de prefeitos preocupados com os índices de criminalidade nas escolas e o baixo desempenho dos alunos. Na prática, o governo estadual tinha interesses eleitorais, pois a implantação da militarização ocorreu seis meses antes das eleições majoritárias de 2018.

Na narrativa oficial, pouco tempo após ter assumido a prefeitura de Anguera, em 2017, Fernando Bispo Ramos viajou 154 quilômetros até Salvador para uma audiência com o coronel Anselmo Alves Brandão, comandante da Polícia Militar (PM). Ramos, à época filiado ao PT, propôs a instalação de um colégio da corporação na cidade. O político levava em conta a alteração na lei de organização básica da PM ocorrida três anos antes, permitindo a ampliação do ensino militar em escolas estaduais.

A iniciativa do político, hoje no PSD, foi malsucedida. O coronel lhe explicou que o colégio precisaria de um contingente de oficiais e soldados da ativa, acarretando despesas e a retirada do policiamento das ruas, o que não seria aceito pelo governador. Com 11 mil habitantes, Anguera também não atendia a estratégia de priorizar municípios de maior porte.

De acordo com Anselmo Brandão, Fernando Ramos sugeriu então a assinatura de um convênio e isto abriu a possibilidade de ser criado um projeto em que as prefeituras arcassem com todas as despesas de instalação. Incluía a reforma das escolas, a compra de uniformes para os alunos e a contratação de policiais da reserva responsáveis pela parte disciplinar.

O relato do ex-prefeito, cujo objetivo era passar uma escola municipal para o controle e administração da polícia a fim de resolver “os problemas com drogas no município” e a indisciplina dos alunos, difere ligeiramente. Ramos não queria ter nenhuma despesa com a transferência. “Nós achávamos que a Polícia Militar poderia assumir e custear os gastos com a manutenção da escola, com os professores e os PMs. Os demais funcionários ficariam por conta da prefeitura”, admite o ex-prefeito.

Mesmo desapontado, Ramos improvisou. “Contratei dois policiais da reserva para ministrarem aulas de música no Centro Educacional Professor Áureo de Oliveira Filho e comprei instrumentos novos. Os alunos seguiam o estilo militar no corte de cabelo, no barbear, na continência e na doutrina”, conta.

Fernando Ramos revela que os planos de custear uma escola militarizada ficaram para o mandato seguinte, pois pensava em reeleição. A intenção fracassou quando ele e o vice-prefeito Moisés Oliveira foram cassados, em 2018, pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) por subfaturamento em serviços contratados durante a campanha e por gastos com bebidas e churrasco para os eleitores.

Escolas com instrução militar

No âmbito da PM, porém, a proposta foi colocada em marcha. O coronel Anselmo Brandão convocou o assessor especial para a área de educação e atual diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa (IEP), coronel Jorge Ricardo Albuquerque Pereira, e lhe deu a missão de elaborar o projeto de implantação da metodologia do CPM nas escolas municipais.

“Algumas coisas foram criadas; outras, aperfeiçoadas. O regimento do Colégio da Polícia Militar foi adaptado. Mantivemos o regulamento, com algumas mudanças em relação à parte comportamental, mas a parte pedagógica ficou a cargo das prefeituras”, diz Albuquerque.

Tudo foi feito por determinação do governador. No relato do ex-comandante, a decisão de Rui Costa resultou em muitas críticas e os dois tiveram nova conversa. “Eu perguntei: ‘Governador, vamos tocar o projeto?’. Ele disse: ‘Eu estou tendo resistência de algumas categorias, principalmente do pessoal do meu partido. Considere que o pai tem o direito de escolher a escola dos seus filhos. Se o prefeito quiser participar, está na conta dele’, conta o oficial.

Para legitimar politicamente a implantação do sistema de ensino CPM nas escolas municipais foi assinado um termo de cooperação técnica entre a Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Militar e a União dos Municípios da Bahia (UPB), em 10 de maio de 2018. O documento foi publicado no Boletim Geral Ostensivo (BGO) 101, no dia 28 do mesmo mês.

Pelo acordo, ficou estabelecido que a unidade conveniada desenvolveria o “projeto pedagógico específico, observando as instruções do Instituto de Ensino e Pesquisa da PMBA, bem como as diretrizes educacionais emanadas de órgãos federais e estaduais”.

Apesar do que estabelece o parágrafo único da cláusula um, o comando da corporação insiste que não há interferência na área pedagógica. No entanto, além de rigorosa disciplina e hierarquia, já estava em prática na Escola Professora Maria do Carmo Araújo, em Campo Formoso, uma matéria criada para ser ministrada pelos tutores disciplinares, chamada Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE) para omitir o nome original: instrução militar.

O convênio estabeleceu ainda a criação de duas diretorias para cada colégio – a escolar e a militar -, sendo que a segunda é responsável pela disciplina. No termo, ficou estabelecido que caberia à PM capacitar os diretores, os coordenadores e os tutores disciplinares, “podendo ser estendido aos professores e funcionários da UEMC (Unidade de Ensino Municipal Conveniada)”; acompanhar o processo de implantação; vistoriar o sistema de ensino implantado; e indicar policiais militares da reserva remunerada ou reformado para as funções de diretor militar, diretor disciplinar e tutores.

À UPB foram reservadas as seguintes responsabilidades: divulgar entre os prefeitos a possibilidade de adoção do sistema e acompanhar o processo de implantação e as vistorias da PM através de representante designado. A instituição não cumpriu todas as atribuições, conforme admite o ex-comandante Anselmo Brandão. “O convênio é mais com o município, os responsáveis maiores pelo acordo. O ato com a UPB foi mais simbólico. Ela não criou uma coordenação para as escolas e não tem responsabilidade se acontecer qualquer coisa na gestão, na aplicação de recursos”, explica.

Questionada sobre seu papel no processo de implantação das escolas com a metodologia do CPM, a assessoria da imprensa da União dos Municípios informou que a entidade apoiou o projeto e “cumpriu sua função institucional de aproximar o diálogo dos municípios com os Colégios Militares da Bahia (…), sem interferir nos aspectos técnicos e pedagógicos (…) tratados entre cada secretaria municipal e educação e a PM”.

O prazo determinado inicialmente nos contratos era de dois anos, renováveis por sucessivos períodos de 24 meses. Havia a ressalva de que as prefeituras poderiam rescindir o acordo a qualquer tempo, desde que houvesse comunicação com 30 dias de antecedência. Nos convênios mais recentes, os períodos foram ampliados para cinco anos.

*Linda Gomes, jornalista brasileira, é integrante de la 5ta generación de la RedLATAM de Jóvenes Periodistas de Distintas Latitudes, doutoranda em estudos de gênero e políticas de igualdade, mestra em produção, edição e novas tecnologias jornalísticas; Paulo Oliveira é jornalista, editor, professor e consultor; suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

**Reportagem financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social

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