Milton e Lula no trem da vida: pela volta do camarada que ao chão se deu

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Mais uma escalada da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta, César sobe o Morro Velho trilhado por Milton nascimento. O nosso colunista vai buscar uma música que arrepia este editor (Washington) desde adolescente. E continua arrepiando, pois o brilho cego de paixão e fé continua em alta. E ele, César, como bom artista que é, faz um lindo paralelo e sintonia de Milton com Lula.

Suba no trem com César:




“BEIJA-FLOR, 27 de outubro de 2022.

Prezado Washington, li hoje no FB uma postagem do professor R. Bozzetti sobre a canção “Morro Velho”, de Milton Nascimento. Além de comentar a canção e seu autor, contextualizando-os, Bozzetti deixou um link para quem quisesse a ouvir. Espero que o público que o acompanha tenha ido conferir a canção que julgo ser uma das mais bonitas de Milton Nascimento.


Parodiando Carlos Drummond de Andrade ao falar de Pelé, eu lhe digo, meu caro amigo: fazer canções não é algo difícil. Eu mesmo já fiz um punhado delas, algumas até muito boas. O problema é fazer uma canção como Milton Nascimento. Aí o caldo engrossa. Aí soam os tambores de Minas. Aí é o voo das palavras. Aí é lindeza.


Sem querer, em apenas um parágrafo, falei de três mineiros geniais de nossos tempos: Drummond, Pelé e Milton. Dois deles fazendo aniversário na última semana deste mês de outubro, mês que encerra nossos grandes sonhos e expectativas de mudança de ritmos e rumos para o país, com a vitória de LULA no dia 30.


Foram três coisas que me moveram esta semana: no topo, a eleição presidencial; Pelé; Milton. Um torvelinho de acontecimentos, um jogo sujo, dos mais sujos, de dar nojo. Os gols de Pelé e a voz de Milton me redimiram.
Lula é um político absolutamente extraordinário. Que fortaleza. Por muito menos, eu teria trocado uns sopapos com o padreco. Chamá-lo de padreco de festa junina é esculhambar a festa junina, não ele.

Quando R. Bozzeti me fez lembrar de “Morro Velho”, eu já estava inclinado a falar de Milton esta semana, é verdade. Só que até então eu imaginava escrever alguma coisa sobre o álbum “Clube da Esquina”, sobre o impacto que o álbum me causou. Eu não era novo, já tinha mais de vinte anos certamente. Contudo, era como se tudo que eu tivesse ouvido até ali tivesse que ser redimensionado depois da audição.


Não sei se isso ocorre com todo mundo, mas acho que não foram muitos os livros que reli. O mesmo pode ser dito a respeito de filmes. É certo que de vez em quando eu revejo um filme ou outro ou releio um livro e outro. Geralmente o faço por deveres do ofício.


Entretanto, há discos que ouço sempre que posso ouvir música. Não é porque eles sejam meu porto seguro, porque eles me trazem à baila tempos mais felizes ou mesmo a minha juventude.

Não é isso. É porque do ponto de vista estético, alguns me parecem inesgotáveis. Há sempre chance de ouvir um detalhe que tinha passado despercebido.


Enfim, não terei tempo hábil de fazer uma lista, mínima que seja, mas lhe adianto que “Clube da Esquina” é um dos que estará nesta minha lista que, para todos os efeitos, ainda nem existe.

Lembrei-me de Sergio de Oliveira Faria, acho que esse é o nome dele mesmo. Amigo dos bons da época do meu Segundo Grau técnico em Edificações. O Sergio tocava violão na igreja Católica Apostólica Romana dele, era um dos poucos do pessoal que sabiam tocar violão razoavelmente.


Eu me lembro de quando o Sergio cantava canções do Milton: de branco ele ia ficando negro de Minas, encorpava a voz, um boné de luz lhe cobria a cabeça, uma coisa absurdamente maluca ocorria: transfigurava-se.


Talvez ele nem tocasse tão bem assim, mas para mim, visto o ocorrido em perspectiva, soar e ser como Milton era um pouco a intenção dele. Eis o que ele gostaria de imprimir à sua performance ao violão.


Sergio frequentava a minha casa e eu, a dele. A rua era a mesma: a rua Araújo Leitão, o velho Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio. Eu morava no Edifício Via Veneto, 513; o Sergio, em uma casa no morro do Barro Vermelho. A mãe do Sergio, me lembro, saía na ala das baianas pela Unidos do Cabuçu, a escola de samba do bairro. Sergio tinha dois irmãos: um rapaz e uma moça, de cujos nomes não me recordo, que me sumiram na poeira da memória.

Se não me engano, o rapaz passou no concurso de sargento da Aeronáutica em tempos idos. Não é pouco. Já naquela época (1990s, 2000s) se sonhava com um emprego estável para uma vida, senão próspera, pelo menos não muito acidentada.


Sergio se formou em Edificações e seguiu carreira, tocando as obras que apareciam. Pela foto de perfil de uma de suas redes sociais, vejo que ele tem uma família numerosa e feliz.

Quando meu pai comprou um som novo para gente, daqueles nos quais se podia ouvir CDs, o mais velho foi para o Sérgio. Parece brincadeira, mas me lembro do nome do aparelho: era um Dennisson. Lembro-me porque é o nome do meu irmão, Dênis. Como poderia me esquecer do nome do meu irmão?
É bem capaz do Dennisson ainda funcionar, vá saber.


Não frequentei a igreja em que o Sergio tocava o seu violão religiosamente nas missas de domingo. Mas passei uma temporada tentando jogar bola na quadra da igreja, ao convite do Sergio. E ainda levava outro camarada meu, o Giovanni, alcunha de Ricardo de Sousa Lopes. Era legal vê-lo, sempre uma alegria. Violão não havia, é certo, mas havia futebol, que é também uma espécie de laço afetivo do qual dificilmente se desprende.


Eu cheguei a ir algumas vezes à missa do dia 24 de dezembro no intuito de ver o Sergio e de lhe desejar um feliz Natal e um próspero Ano Novo. Eu ficava meio ressabiado lá no fundo da igreja, torcendo para que a missa acabasse, tanto ou mais que torcedor de time pequeno quando está vencendo uma partida contra time grande. Aquela aflição de quem sabe que um minuto de acréscimo a mais e escapa pelas mãos a vitória.

Creio que o Sergio tenha entrado para a Carismática. Engraçado, o discurso muda, mesmo se vendo a mesma pessoa. Onde foi parar o Milton que o coabitava? A mera inflexão da voz deixa transparecer uma convicção que me acende muitos sinais de alerta – e eu, em dias bons, sou um sujeito muito ligado na escuta das coisas. Pelo menos, sei o quão importante é ouvir as coisas bem.


Enfim, eu nunca me deixei levar por discurso ou credo de igreja nenhuma. Para o bem e para o mal, eu sou tão desconfiado quanto um bom mineiro que se preze.


Ainda assim, apesar da distância física e emocional que ora nos separa, eu amo o Sergio como a um irmão. Eu ainda vejo nos olhos do coração sua caligrafia de letras grandes em um cartão de Natal que dele recebi e que deve estar guardado na casa de minha mãe e meu irmão, que ainda hoje moram no Via Veneto, 513.


“Morro Velho” é uma canção que fala de amizade e das classes sociais que irão fatalmente se separar. Fala da infância e da realidade da vida adulta: o menino sinhozinho vai pra cidade estudar. Querendo ou não, ele vai porque pode. Quando volta, volta mais sinhozinho ainda: volta doutor.

No sertão da minha terra, é dificultosa a travessia: “Meu caminho é de pedras. Como posso sonhar?” A inflexão deste trecho da canção parece dizer que não há espaço para sonhos em tal caminhada, que o caminho é de resignação (a ideia de muitos obstáculos, como sugere a imagem das pedras). Vida dura, dura caminhada.


“Morro Velho”, bela e triste, expressa um Brasil profundo que vem sendo desafiado, em especial com os governos de Lula. Por que não dizer que, apesar de sabermos que o caminho é de pedras, que nunca foi um mar de rosas, é possível sonhar, sim? Afinal, com Lula e Milton fazendo aniversário nesta mesma semana, não posso deixar de renovar as esperanças.


Nova aurora a cada dia, como a canção diz.
Quem sabe o Sergio não ponha seu boné de Milton de volta na cabeça?
Fé nas urnas. LULA 13.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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