Mineração arada: quilombolas barram avanço de empresa inglesa na Chapada Diamantina

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Moradores de duas comunidades cheias de semelhanças com o livro ‘Torto Arado’ relatam como ação da Brazil Iron vem rachando casas, matando roças e acabando com o modo de vida tradicional; mineradora chamou a polícia para equipe da Repórter Brasil

Por Daniel Camargos, de Piatã (BA) l Fotos: Fernando Martinho, compartilhado de Repórter Brasil




A imagem de Iemanjá está ao lado de Cristos crucificados, pôsteres do Vasco da Gama, fotos dos netos e de uma Nossa Senhora segurando uma folha de espada de São Jorge. As paredes de barro da casa de Leonisia Maria Ribeiro estão repletas de crenças, mas nos últimos anos ganharam marcas que até a sua fé duvida. São rachaduras que atravessam os tijolos de adobe e desassossegam a benzedeira. “Essas bombas só faltam matar a gente”, lamenta.

As bombas a que Leonísia se refere são dinamites usadas pela mineradora inglesa Brazil Iron para extrair minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina, em Piatã, na Bahia. A benzedeira é moradora da comunidade quilombola da Bocaina, vizinha do empreendimento, e aponta o impacto das explosões como cicatrizes que racham as paredes de sua casa. 

“Essas bombas do minério estrondam a casa todinha. Tem hora que até as coisas da casa a gente vê sacudindo. Eu estou com medo dela [a casa] cair. Eu tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez”.

Semanas depois de a equipe da Repórter Brasil entrevistar Leonísia, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recurso Hídricos), órgão ambiental do governo baiano, fiscalizou as instalações da mineradora e decidiu interditá-la temporariamente. A interdição vigora desde 26 de abril e foi motivada por pelo menos 15 irregularidades, entre elas não prever recursos para recuperar as casas rachadas da comunidade. 

A reza de Leonísia é forte. Enquanto mostra as rachaduras na parede, ela lembra do passado, quando caminhava quilômetros pelas estradas de terra para participar aos finais de semana de uma celebração religiosa repleta de sincretismo. Aos 76 anos, fechou os olhos, franziu a testa e puxou na memória a música que cantava enquanto benzia as pessoas: “Vem, vem, vem, vem Espírito Santo”. 

A poucos quilômetros dali, Ana Joana Bibiana Silva, de 81 anos, toca matraca e canta as ladainhas da encomendação das almas se preparando para a Semana Santa. A sala de sua casa está toda enfeitada com fitas coloridas que descem do teto e ornam com a parede vermelha, um resquício da última folia de reis, quando recebeu os moradores da comunidade para a festa.

quilombola Bibiana
A quilombola Bibiana, responsável pela cerimônia de encomendação das almas, luta para resistir e sobreviver aos impactos negativos causados em sua comunidade após a chegada da Brazil Iron (Foto: Fernando Martinho)

Leonísia e Bibiana nos transportam imediatamente para Belonisia e Bibiana, as irmãs protagonistas do best-seller ‘Torto Arado’, do escritor baiano Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020. É impossível conhecer as comunidades quilombolas de Bocaina e Mocó, na Chapada Diamantina, e não associar ao que é narrado no livro, cuja trama acontece na mesma região. A ligação fica mais intensa por causa da coincidência de nomes entre as personagens da vida real e as da ficção – encharcada de realidade.  

Enquanto no livro Belonisia e Bibiana têm a vida atravessada por um acidente com uma faca e pela intervenção dos seres encantados manifestos no Jarê (religião de matriz africana típica da Chapada Diamantina), na vida real, Leonísia e Bibiana também têm a trajetória permeada pelo sincretismo religioso e enfrentam juntas os efeitos da mineração.

quilombola Leonisia
Um dos problemas enfrentados pela quilombola Leonisia são as rachaduras em suas paredes, causadas pelas detonações da mineradora: ‘Essas bombas estrondam a casa todinha. Eu tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez’ (Foto: Fernando Martinho)

Projeto bilionário 

As duas comunidades quilombolas comemoraram a interdição temporária da mineradora. Para o coletivo de moradores SOS Bocaina e SOS Mocó, a interdição deveria ter acontecido antes, pois a mineradora estava atuando sem as devidas licenças ambientais.

Além da fé e da luta das duas comunidades, um episódio catalisou a atenção para a mineradora Brazil Iron. Em 28 de março, a equipe da Repórter Brasil foi até a sede da empresa, no centro de Piatã, solicitar uma entrevista com algum representante. Ao invés de respostas, o gerente de logística da Brazil Iron chamou a polícia para os jornalistas. O episódio provocou protestos de diversas entidades, como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e o Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ)

‘Se a sociedade como um todo, incluindo corporações, como as mineradoras, vive de maneira cada vez mais predatória, as comunidades tradicionais têm saberes a compartilhar sobre como viver de uma maneira mais equânime com seu entorno’, afirma Itamar Vieira Júnior, autor de ‘Torto Arado’

Ao ser questionado pela reportagem, em 11 de abril, sobre o histórico de infrações da Brazil Iron, o Inema não respondeu imediatamente. Decidiu enviar uma equipe para fiscalizar a empresa e retornou, semanas depois, dizendo que havia interditado as operações da mineradora. Listou 15 infrações, entre elas ausência de estudos para depositar rejeitos da mineração, deixando nascentes e rios vulneráveis, e falta de previsão orçamentária para reparar 18 casas danificadas pelas explosões (leia nota na íntegra). 

A Brazil Iron estima um prejuízo de R$ 200 mil para cada dia parada. Ao todo, as perdas somam R$ 4,4 milhões. Em nota, a mineradora disse que recebeu “com profunda surpresa e desapontamento” a interdição, negou cometer as infrações e avalia que a medida gerou “medo e insegurança” nas famílias que dependem do emprego na mineradora. (leia a nota na íntegra)

Mais próxima da mineradora, a comunidade de Mocó sofre com o pó de minério, que matou as plantações e que faz os moradores se sentirem em uma vila industrial (Foto: Fernando Martinho)

A mineradora é a subsidiária brasileira da holding inglesa Brazil Iron Trading Limited. Foi fundada após a aquisição de direitos minerários na Chapada Diamantina, em 2011. A empresa tem 25 pedidos de pesquisa mineral protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM). Antes da interdição, tinha autorização para extrair 600 mil toneladas de minério por ano, ainda no estágio de pesquisa e exploração. 

Se conseguir voltar a operar, os planos, contudo, são ambiciosos. A empresa quer construir no local uma planta de pelotização (beneficiamento inicial do ferro) para produzir 10 milhões de toneladas por ano. Além disso, pretende construir uma ferrovia até o litoral baiano para exportar o minério. 

A previsão da empresa é investir cerca de R$ 5 bilhões, o que, segundo a assessoria de imprensa, geraria cerca de 25 mil empregos diretos e indiretos. Atualmente, a Brazil Iron tem 500 empregados e calcula que gera ao todo 2,5 mil empregos indiretos. 

Nascente poluída

Além de procurar respostas sobre as rachaduras nas paredes provocadas pelas explosões, a Repórter Brasil queria escutar da mineradora a explicação para outras queixas dos moradores. Entre elas, a contaminação da nascente do Bebedouro. O local recebeu esse nome por ser uma nascente perene onde, nos períodos de seca, os moradores buscavam água límpida para beber.

“Eles [Brazil Iron] começaram a degradar em cima do morro e foi descendo o rejeito de minério para nascente”, detalha a quilombola Catarina Silva, que acompanhou a reportagem até a nascente para mostrar os efeitos do assoreamento provocado pela mineração. 

Catarina mostra a nascente que antes jorrava água cristalina e que, após a instalação da Brazil Iron, foi sendo assoreada (Foto: Fernando Martinho)

Catarina lembra que a água era cristalina e por mais que chovesse, a mata preservada no alto do morro não deixava a mina d’água ficar suja com a enxurrada. “Para a empresa, o minério é valioso, mas para nós a nascente não tem preço. Aqui é toda nossa vida”, lamenta.

A mineradora também provocou estragos na represa que abastece as duas comunidades. Localizada acima da Cachoeira do Veado, a represa foi contaminada após um caminhão carregado de minério capotar na estrada há dois anos. Mesmo após o tratamento da água, o quilombola Bráulio Silva prefere não arriscar. Quinzenalmente ele vai em um burrinho buscar a água que bebe em outra nascente. “A água da represa ainda está ruim”, lamenta. 

Outro agravante é que a Chapada Diamantina é a caixa d’água da Bahia, explica a geóloga e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, Marjorie Csëko Nolasco. A região central da Chapada, onde está a Brazil Iron, é repleta de nascentes que abastecem três bacias: dos rios Contas, Paraguaçu e Paramirim – um dos braços do São Francisco.

“Todos esses rios cortam regiões áridas e as águas favorecem todo o semiárido da Bahia. Portanto, esse deveria ser um local tombado”, afirma a professora. 

Bráulio Silva
Para evitar beber água contaminada pelo minério, Bráulio Silva vai com seu burrinho até uma outra nascente buscar água limpa (Foto: Fernando Martinho)

Em nota, a Brazil Iron disse que vai contratar uma empresa para analisar a qualidade da água e negou que seja responsável pelas rachaduras. Apesar desse entendimento, afirmou que “no intuito de comprovar sua boa vontade e preocupação com a população local já contratou profissionais para realizar a reforma nessas casas”.

‘É igual Cubatão’

Somadas, as duas comunidades quilombolas têm 150 famílias, sendo que Bocaina é maior, com 100 famílias. Já em Mocó, mais próxima da mineração, o sofrimento com a poeira é intenso. “Os pés de café foram secando e morreram todos”, lamenta Irani Oliveira Costa.

Moradora de Mocó, Irani tem o sentimento dividido ao falar a respeito da mineradora. Por um lado está feliz, pois a empresa empregou um filho e alguns parentes, mas por outro se queixa do excesso de poeira. 

“Isso aqui virou uma área industrial. Não é mais habitável como era antes”, diz Solange Costa, filha de Irani, que estava de férias na comunidade. Ela mora no litoral de São Paulo e compara Mocó com Cubatão (SP), que foi por muitos anos a cidade mais poluída do mundo. 

“As pessoas podem estar felizes pelo emprego, mas para morar é muito difícil”, avalia. Quando criança, Solange brincava entre os pés de café, manga e laranja no terreno da avó. Hoje, as plantações morreram por causa do pó de minério.

Questionada, a Brazil Iron disse, em nota, que contratou o serviço de 6 caminhões-pipa que passam na estrada para tentar reduzir a poeira e que vai implementar outras medidas. Disse também que criou uma comissão de acompanhamento e que nesta quarta (18) haverá uma assembleia com as comunidades para criação da Comissão de Acompanhamento do Empreendimento (CAE). 

Contudo, 14 entidades, entre elas a Comissão Pastoral da Terra e o Movimento SOS Bocaina e Mocó, divulgaram uma nota pública se recusando a participar. Apontam falta de transparência da empresa. Segundo o comunicado, “não há informação, por exemplo, sobre qual empreendimento esta CAE está se referindo”.

Quilombolas e mineração sob o prisma de Itamar Vieira

“Se a sociedade como um todo, incluindo corporações, como as mineradoras, vive de maneira cada vez mais predatória, levando o planeta a um iminente colapso, as comunidades tradicionais têm saberes a compartilhar com todos sobre como viver de uma maneira mais equânime com seu entorno”, afirma o escritor Itamar Vieira Júnior. 

O escritor explica que as comunidades quilombolas detêm saberes ancestrais e uma trajetória ligada à capacidade de resistência. “Marginalizadas e invisibilizadas por séculos, estabeleceram uma relação sustentável com o meio em que vivem”, destaca. 

Para Vieira Júnior, o estado brasileiro não superou a visão desenvolvimentista atrasada, que não se ajusta mais ao mundo de hoje: “Parece fantasia, mas basta sobrepor mapas de comunidades quilombolas e de preservação ambiental para perceber a relação direta entre os dois, o que convencionamos chamar de sustentabilidade”, 

Enquanto a Brazil Iron mobiliza advogados e engenheiros para cumprir as condições impostas pelo órgão ambiental baiano para voltar a minerar, os moradores se apegam à fé e se mobilizam para preservarem seus modos de vida. 

O horário das explosões que afetam as casas dos quilombolas é colocado em uma placa diariamente em uma das portarias da mineradora (Foto: Fernando Martinho)

Além da poeira, da contaminação da água e das explosões, Davi Antônio de Souza, líder comunitário na Bocaina, aponta outro motivo para preservar a região. A infinidade de plantas nativas que servem de cura para várias doenças. Observando Davi explicar a utilidade de cada uma das ervas é impossível não lembrar do livro ‘Torto Arado’ e seu personagem Zeca Chapéu Grande, curandeiro e praticante do Jarê, que usava plantas e rezas para afastar os males, muitos deles provocados pela mineração, conforme conta Bibiana no primeiro capítulo do livro:

“O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos prolongados de trabalho fatigante, quebrando rochas, lavando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte”.

Na obra literária, as moléstias do espírito eram curadas com as ervas; na vida real os estragos feitos pela Brazil Iron nas montanhas da Chapada Diamantina são para sempre.

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