Monumentos de horror e glória

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Por Luiz Antonio Simas, compartilhado de Projeto Colabora – 

Entre derrubar estátuas de personagens nefastos (como fizeram os ingleses) ou preservá-las, para denunciar a história de quem protagonizou tempos de barbárie

Duque de Caxias, com a Central do Brasil ao fundo: militar que esmagou revoltas populares. Reprodução

Ao refletir sobre as relações entre História e Memória, o historiador francês Jacques Le Goff (1994) alerta que as memórias do passado são permanentemente construídas, mantidas, alimentadas ou refutadas, a partir da percepção que se tem dessas memórias no presente. Para lançar o debate no campo teórico, é importante ressaltar que memória não é sinônimo de lembrança. Em linhas gerais, a lembrança está ligada a uma experiência individual sobre algum evento. A memória é uma construção que busca compartilhar determinada visão sobre o passado e fazer sentido para as comunidades; ela pode ser passada por gerações, alimentada por algumas e refutada por outras, e opera no campo da elaboração de identidades e tradições.




Nesse sentido, monumentos, estátuas, nomes de ruas, praças, estádios de futebol, etc., fazem parte desse campo de elaboração de memórias. O que está em jogo, naquilo que se afirma e naquilo que é silenciado, é a própria ideia de passado que um determinado grupo tenta construir como pertencimento coletivo.

Já que citei Le Goff, busco agora a referência de Exu. Um oriki iorubá famoso diz que Exu acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. Não é essa, afinal, a função da história? Pensar o passado a partir da incessante construção de memórias, sentidos, disputas, contradições, silêncios e permanências que, em larga medida, angustiam as mulheres e os homens no tempo presente?

Todas essas indagações permeiam o debate sobre a estátua de bronze de Edward Colston, traficante de escravizados, arrancada domingo (7) do pedestal por grupo de manifestantes que, em Bristol, na Inglaterra, protestava contra a morte de George Floyd nos Estados Unidos.

Há os que apoiam a derrubada de estátuas, ato que traz o simbolismo da disputa pela memória e pela narrativa da História. Há os que preferem manter os monumentos, mas ressignificados como testemunhas da barbárie, do horror, de um tempo que não deve se repetir ou, no mínimo, deve ser repensado.

A cidade do Rio de Janeiro é pródiga em estátuas e monumentos que elaboram narrativas sobre o que se quer revelar e o que ser quer esconder. Certo discurso sobre a Guerra do Paraguai, especialmente, está presente em estátuas (como a do General Osório), em nome de bairros (Humaitá e Riachuelo, por exemplo), ruas  e praças (Praça Onze de Junho – homenagem ao dia da vitória brasileira na Batalha Naval do Riachuelo; Rua Voluntários da Pátria, Rua Paysandu, etc).

As estátuas equestres do Duque de Caxias, na Central do Brasil, e de Dom Pedro I, na Praça Tiradentes, tentam afirmar a glória de dois personagens de certa História oficial que podem ser facilmente contestados: Caxias foi o implacável militar que esmagou as revoltas populares do período da Regência e Dom Pedro I ordenou o fuzilamento de Frei Caneca, por exemplo.

A estátua de Floriano Peixoto, na Cinelândia, homenageia o militar que consolidou a República nos anos turbulentos da Revolta da Armada. Ao mesmo tempo, glorifica um personagem que ordenou prisões e fuzilamentos de opositores. A estátua de Getúlio Vargas, na Glória, homenageia o líder trabalhista, coisa que certamente causaria asco às vítimas da ditadura do Estado Novo.

Por outro lado, alguns monumentos buscam contestar determinada versão da História, em geral hétero-normativa, patriarcal e branca, em nome de um mergulho nas lutas populares. O monumento a Zumbi dos Palmares, na Praça Onze, foi inaugurado em 1986, após intensa mobilização do movimento negro e do apoio de Darcy Ribeiro, à época vice-governador do estado. Enquanto a estátua da Princesa Isabel, em Copacabana, glorifica certa visão da abolição como uma atitude da princesa branca, o monumento a Zumbi afirma a abolição como uma conquista, uma luta dos negros brasileiros, desde as matas de Palmares.

A estátua do marinheiro negro João Candido Felisberto, na Praça Quinze, foi inaugurada em 2008, com o objetivo de fortalecer a memória coletiva sobre a luta dos marujos contra a infame chibata, no levante de 1910. Relativamente perto dali, no Flamengo, fica o monumento ao Almirante Tamandaré, construída pela Marinha para glorificá-lo. A mesma Marinha que considerou durante décadas João Candido como um amotinado que não representa a arma.

O Visconde de Niterói, Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato, foi um político conservador do Império brasileiro, que chegou a ocupar os cargos de ministro da Justiça, deputado geral e senador. Nas terras que o Visconde recebeu do Imperador, hoje ergue-se a quadra da Estação Primeira de Mangueira. No Museu do Samba, bem perto da quadra, desponta a estátua de Cartola. A rua da quadra e do museu é a Visconde de Niterói, em gritante oposição à estátua de Cartola e a toda a aventura civilizatória do samba na cidade do Rio de Janeiro. Na disputa pela memória, por que não Rua Dona Neuma?

Em Inhoaiba, na Zona Oeste carioca, existe o monumento ao Paizinho Quincas, Joaquim Manuel da Silva, ex-escravizado de grande popularidade na região, construído em 1958. Perto dele, em 1969, foi inaugurada a estátua da Tia Maria, representando o culto aos pretos velhos, antepassados e ancestrais de Aruanda. Até hoje, umbandistas realizam festas para os Pretos Velhos ali. Em virtude disso, as reverência ao Paizinho Quincas e à Tia Maria já foram depredadas, incendiadas, pichadas, tiveram roupas roubadas, e precisaram ser cercadas para conter os ataques de neopentecostais que enxergam a homenagem aos pretos velhos como exaltações ao diabo.

Tudo isso que mencionei mostra que a memória é um campo de disputas, aspirações coletivas, tentativas de apagamento. Walter Benjamin, filósofo alemão, disse que todo monumento da civilização é, ao mesmo tempo, testemunho da barbárie. O Monumento às Bandeiras, em São Paulo, pode ser visto como uma obra-prima de uma artista do porte de Victor Brecheret em homenagem aos desbravadores do território. Ao mesmo tempo, glorifica apresadores de indígenas e destruidores de quilombos, fato denunciado em impactante alegoria da Estação Primeira de Mangueira no desfile de 2019. O carnavalesco Leandro Vieira não titubeou e apresentou o monumento manchado de sangue e com a palavra cortante: Assassinos!

Devemos derrubar estátuas? Devemos ressignificar os monumentos e tomá-los como documentos históricos que testemunham grandezas em alguns casos e horrores em outros? Vale derrubar a estátua de um genocida, ou é melhor mantê-la como testemunho da barbárie, escrevendo na placa de identificação do monumento que ali se homenageou um genocida? Ou devemos transferi-la para algum museu que debata a memória do horror na história do Brasil? Como pode uma cidade do porte de Niterói ter uma rua em homenagem ao Coronel Moreira Cesar, que ordenou fuzilamentos e degolas ao combater revoltas na Primeira República?

Walter Benjamin, citado acima, escreveu sobre a necessidade de se escovar a história a contrapelo. O ponto do caboclo da Laje fala sobre as pedrinhas miudinhas de Aruanda, aquelas que iluminam, enquanto as pedras grandes não conseguem mais ter luz. O imenso Aldir Blanc, que nos deixou recentemente, saudou João Candido, em parceria com João Bosco, como o “Almirante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. Outros tantos, as pedras grandes, têm por monumento pesadas estátuas de bronze que, construídas para ressaltar as glórias oficiais, são hoje lidas no contrapelo como testemunhas pesadas e ativas do horror de suas trajetórias, enquanto a pedra do tempo de Exu gargalha e voa.

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