Bertrand Blier, cineasta de filmes cultuados e provocativos como “Corações Loucos” (Les Valseuses, 1974) e “Meu marido de batom” (Tenue de soirée, 1986), morreu na segunda-feira (20) aos 85 anos em sua casa, em Paris. O diretor marcou época ao dirigir grandes nomes do cinema francês, como Gérard Depardieu, Michel Blanc e Miou-Miou. Criador de diálogos icônicos, Blier virou polêmica na França, devido à sua ambiguidade contestadora, que, segundo alguns críticos, escorregava para um certo “sexismo”.
na foto: O diretor francês Bertrand Blier em 2013
Segundo seu filho Léonard Blier, o cineasta morreu “pacificamente em sua casa, em Paris, cercado por sua esposa e filhos”. Os filmes deste roteirista brilhante, adepto de um humor sarcástico e cru, marcaram profundamente o cinema das décadas de 1970 e 1980 na França. Anticonformista e irreverente para uns, provocador e símbolo de uma época ultrapassada para outros, Bertrand Blier será lembrado principalmente por sua colaboração com Gérard Depardieu, cuja carreira ele alavancou em 1974 com “Corações Loucos” (Les Valseuses), ao lado de Patrick Dewaere e Miou-Miou. Filme subversivo que se tornou cult, a produção também é lembrada por seu humor grosseiro, que chocou o público francês da época.
A obra de Blier tem sido alvo de críticas nos últimos anos por sua misoginia e pela forma como retrata a dominação masculina. Algumas atrizes, como Miou-Miou e Brigitte Fossey, relataram que, durante as filmagens, o humor ácido do diretor muitas vezes foi percebido como humilhação ou agressão.
Com uma filmografia de cerca de 30 títulos, Blier será lembrado como um cineasta popular, capaz de atrair nada menos que seis milhões de espectadores na década de 1970 com “Corações Loucos”, e ainda três milhões nos anos 1980 com “Meu marido de batom”, também estrelado por Depardieu e Miou-Miou, além de Michel Blanc.
“No contexto de sua época”
A morte de Blier marca o fim de uma era no cinema francês. Muitos de seus parceiros de cena partiram antes dele, como Patrick Dewaere, que cometeu suicídio em 1982, e Michel Blanc, morto em outubro passado. Já Gérard Depardieu, acusado de estupro, tornou-se uma figura controversa no mundo do cinema.
A icônica atriz francesa Josiane Balasko, dirigida por Blier em 1989 em “Muito Bela para Você” (Trop belle pour toi), homenageou o cineasta no Instagram: “Boa viagem, meu amigo. E tome um drink com Blanc pelo caminho.”
Jean Dujardin, que interpretou um escritor alcoólatra em “O Barulho do Gelo” (Le Bruit des glaçons), também expressou sua admiração: “Que privilégio ter trabalhado com você. Você era um mestre. Um amigo. Um inventor no cinema. Sua poesia, sua audácia, seu verbo, seu riso, seus silêncios. Você amava tanto os atores.”
Este filme de 2010, estrelado também por Albert Dupontel, foi um dos últimos sucessos de Bertrand Blier, cuja carreira nos anos 2000 foi menos prolífica. Várias personalidades destacaram sua importância, reconhecendo que suas obras estão profundamente ligadas a uma época que “já passou”.
“Em filmes que refletiam seu tempo, ele ofereceu papéis icônicos aos maiores artistas. (…) Bertrand Blier foi um cineasta grandioso e anticonformista, um apaixonado pela liberdade de criar”, afirmou a ministra francesa da Cultura, Rachida Dati.
“Tanto escritor quanto cineasta, cínico quanto provocador, moralista quanto desiludido, Bertrand Blier amava as mulheres, mas as fazia sofrer pelas mãos de seus homens”, declarou Gilles Jacob, ex-presidente do Festival de Cannes, em mensagem à agência AFP. “Seus filmes trazem descobertas surpreendentes, uma exposição ousada de costumes revoltantes, cenas hilárias que flertam com o absurdo e, ao mesmo tempo, muita emoção”, acrescentou Jacob.
Pierre Lescure, também ex-presidente do Festival de Cannes, escreveu: “Eu admirava esse homem, sua maneira de explorar situações, desconfortos e risadas, e quando ele falava de Bernard [pai do diretor]. Eles levavam os personagens ao extremo. Eu gostava de sua voz, seu olhar e seus livros.”
Relevância no Brasil
Filmes de Bertrand Blier como “Corações Loucos” e “Muito Bela para Você” foram exibidos em diversos festivais e cineclubes no Brasil. Esse reconhecimento contribuiu para a formação de gerações de cinéfilos e cineastas brasileiros, interessados em narrativas e estéticas alternativas ao cinema de Hollywood.
A relevância de Blier para o Brasil reside principalmente na sua contribuição ao cinema de autor e no impacto de sua obra no público e nos cineastas brasileiros que buscam inspiração em narrativas ousadas e críticas. Ele representa um exemplo do vigor criativo do cinema francês, que tem um público fiel no Brasil, sendo uma figura recorrente em mostras de cinema europeu realizadas no país.
Sua obra frequentemente aparece em retrospectivas e eventos que exploram a cinematografia francesa, permitindo que novos públicos conheçam sua filmografia no Brasil. Entre outros eventos, em junho de 2017, o Cine Caixa Belas Artes, em São Paulo, sediou a mostra “Bertrand Blier e a Comédia como Provocação”, apresentando uma retrospectiva de 15 de seus filmes, incluindo “Corações Loucos” e “Preparem seus Lenços” (Préparez vos mouchoirs, 1978).
Provocação misógina ou celebração alucinada da liberdade sexual?
Lançado em 1974 com grande sucesso de público, “Corações Loucos” continua a dividir opiniões 50 anos depois, especialmente em tempos de #MeToo e do intenso debate sobre a representação das mulheres no cinema. Desde o título – Les Valseuses, uma gíria francesa para testículos –, o filme mais emblemático de Blier já deixa claro o tom provocativo e polêmico. A trama é um road movie que acompanha um trio formado por dois marginais lascivos [interpretados por Gérard Depardieu e Patrick Dewaere), e uma jovem aparentemente frígida [vivida por Miou-Miou].
Quando estreou, em plena ascensão do movimento feminista e da liberação dos costumes, o filme, baseado em um livro de Blier publicado dois anos antes, chocou a crítica, mas conquistou o público francês. Hoje, no entanto, algumas falas – como “Tem sempre um rabo esperando por nós em algum lugar” – e cenas polêmicas, como a de Dewaere forçando Brigitte Fossey a amamentá-lo em um trem, são apontadas por muitos como exemplos do sexismo desinibido que predominava no cinema da época.
Para Geneviève Sellier, professora universitária especializada em questões de gênero, o filme é uma “apologia ao masculinismo em sua forma mais vulgar e provocadora”.
“Corações Loucos”: Sexismo ou liberdade?
“Blier conseguiu ir contra o movimento feminista com a personagem de Miou-Miou, que é retratada como um objeto sexual passivo, e mascarar agressões sexuais com um tom burlesco e o status social dos dois protagonistas masculinos”, afirmou Sellier.
Em março de 2024, durante uma entrevista ao canal France 2, Brigitte Fossey se recusou a rever a polêmica cena do trem, classificando-a como “horrível, horrível, horrível”.
Por outro lado, o cineasta Cédric Klapisch, em uma declaração ao site Cinétek em 2020, rejeitou reduzir “Corações Loucos” apenas ao seu machismo, embora reconheça sua presença no filme. “Há algo que aborda o prazer feminino de uma forma que não vemos em muitos filmes”, argumentou. Klapisch também destacou a “liberdade de tom perturbadora, mas interessante” da obra, afirmando que ela “leva a ideia de liberdade ao extremo”.
Vencedor do Oscar
Em 1979, Bertrand Blier conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por “Preparem seus Lenços” (Préparez vos mouchoirs), mais uma vez estrelado por Gérard Depardieu e Patrick Dewaere. Na trama, os dois homens fracassam em satisfazer uma mulher, interpretada por Carole Laure.
No ano seguinte, Blier recebeu o César de Melhor Roteiro por “Buffet Frio” (Buffet froid). Nesse filme, marcado por um humor glacial que mistura o absurdo e o surrealismo, seu pai, Bernard Blier, fez sua última aparição sob a direção do filho, ao lado de Depardieu e Jean Carmet.
Misantropo, irreverente e desconcertante, mas também ocasionalmente terno, o cinema do iconoclasta Bertrand Blier não se parece com nenhum outro. Muitas vezes comparado a Luis Buñuel ou Jean-Pierre Mocky, Blier criou um estilo único, repleto de personagens marginais: bandidos, policiais desiludidos e prostitutas. Com sua expressão carrancuda, a cabeça calva e o inseparável cachimbo no canto da boca, Blier se destacou ao explorar o lado mais sombrio e excêntrico da sociedade francesa, sempre com uma dose de provocação.
“Violência única”
O que fazer com uma obra como essa nos dias de hoje? A questão ecoa debates recentes, como o de “O Último Tango em Paris” (Bernardo Bertolucci, 1972), cuja exibição pela Cinemateca de Paris enfrentou críticas por não incluir um aviso sobre a cena de estupro cometida pelo personagem de Marlon Brando, sem o consentimento da atriz Maria Schneider.
Manuel Alduy, diretor de cinema do grupo France Télévisions, defende que “Corações Loucos” continue a ser exibido, “apesar de sua violência” e da classificação indicativa para maiores de 16 anos, que restringe sua transmissão em canais abertos na França entre 22h30 e 6h. Ele ressalta, no entanto, a necessidade de contextualizar o filme, explicando de forma clara por que ele pode chocar o público atual. Recentemente, o longa foi exibido no canal France 5 em segunda sessão, acompanhado de um documentário sobre Patrick Dewaere.
Em entrevista à rádio Europe 1, em fevereiro de 2024, Miou-Miou relembrou as filmagens de “Corações Loucos”, marcadas por “brigas” e métodos que ela descreveu novamente como “muito humilhantes” por parte de Blier. Apesar disso, a atriz foi categórica: “Claro que o filme deve ser exibido.”
Já em 2022, durante uma entrevista ao portal francês Konbini, Bertrand Blier não renegou a “violência única” presente no filme, que ele comparou à de “Laranja Mecânica”, de Kubrick. Segundo ele, essa abordagem extrema chegou a lhe render, na época, o rótulo de “nazista”.
Blier descrevia sua obra como um reflexo do “estado de estupidez em que os homens se encontram em qualquer época”. Ele acrescentou: “É um filme que foi amado ou odiado, porque se joga sem rede de proteção no problema e avança como um fora da lei durante uma hora e meia.”
(Com AFP e agências)