Morre Francisco, o papa que defendeu uma Igreja que chegasse até as ‘periferias espirituais’

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Durante 12 anos de pontificado, ele buscou voltar a instituição aos pobres e necessitados

Por Gabriel Vera Lopes, compartilhado de BdF




O papa Francisco morreu nesta segunda-feira (21) aos 88 anos de idade. O argentino Jorge Bergolio estava hospitalizado desde o dia 14 de fevereiro e vinha tratando uma pneumonia bilateral. O jesuíta argentino, líder da Igreja Católica desde 2013, passou 38 dias hospitalizado com pneumonia grave e, após receber alta em 23 de março, parecia debilitado, embora tenha participado das celebrações da Páscoa no domingo.

“Nesta manhã, às 7h35 (5h35 GMT, 2h35 em Brasília), o bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai”, anunciou o cardeal Kevin Farrell em um comunicado publicado pelo Vaticano em seu canal do Telegram.

O Vaticano, agora, deve decretar o cargo em vacância e o conclave que escolherá o próximo líder da Igreja Católica só deve ocorrer após o funeral de Francisco.

Uma Igreja que vá às “periferias espirituais”

No dia 11 de fevereiro de 2013, quando Bento 16 anunciou sua renúncia, pegou o mundo de surpresa. Sua decisão foi talvez uma das demonstrações mais claras da crise que a Igreja Católica estava enfrentando. Nenhum dos cardeais estava preparado para, em apenas 30 dias, ter que escolher o novo papa.

Foi a primeira renúncia de um sumo pontífice em 598 anos. A divulgação de uma série de escândalos de pedofilia, conhecidos como Vatileaks, a crescente perda de fieis em todo o mundo e uma notável dificuldade para se adaptar a muitas das transformações da sociedade moderna haviam colocado a Santa Sé diante de uma situação manifestamente complicada.

Em meio àquela onda de perplexidade e desânimo, não apenas se consolidou a ideia de que não bastava administrar a cúria romana e guiar a Igreja, mas também foi ganhando força a convicção de que era indispensável empreender uma profunda reforma espiritual.

Vários nomes foram considerados na época entre os cardeais eleitores, mas no entanto, nenhum conseguia convencer o conclave. Dos 115 cardeais eleitores, 68 haviam participado do conclave de 2005, após a morte de João Paulo 2º. Já naquela ocasião, Bergoglio havia sido um dos candidatos mais fortes para sucedê-lo.

Foram muitos os motivos que favoreceram a escolha de Bergoglio entre os candidatos, apesar de ele não ter sido a “primeira” opção entre os presentes, entre os quais figuravam nomes como o do canadense Ouellet e o do brasileiro Scherer.

Seu estilo de vida humilde e austero, sua proximidade com os pobres e sua atividade como missionário, famoso por visitar frequentemente as vilas de Buenos Aires, contrastavam fortemente com a estrutura eclesiástica tradicional. Isso, para muitos, representava alguns dos sinais de uma necessária renovação.

Por outro lado, naquele momento, Bergoglio já era um dos líderes religiosos mais influentes da Igreja na América Latina e no Caribe. Ele havia presidido a Conferência Episcopal Argentina por dois mandatos consecutivos, de 2005 a 2011, e havia sido nomeado por Bento 16 como membro da Pontifícia Comissão para a América Latina (CAL).

Além disso, sua origem latino-americana desempenhou um papel muito importante. Quase metade dos católicos do mundo é de língua espanhola, e a grande maioria vem da América Latina, um continente onde o catolicismo vinha perdendo terreno para o avanço do pentecostalismo.

Finalmente, contra muitas expectativas, no dia 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio foi eleito o 266º papa da Igreja Católica, assumindo o nome de Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, símbolo da pobreza e da humildade. Foi a eleição do primeiro papa latino-americano e do primeiro jesuíta.

Seu pontificado foi marcado pela busca de fazer com que a Igreja conseguisse “sair de si mesma em direção às periferias existenciais”.

Em várias ocasiões, ao se referir aos desafios internos enfrentados por Bento 16, o Papa Francisco descreveu a cúria como “narcisista”, destacando a necessidade de a Igreja adotar posturas menos “autorreferenciais” e assumir posições que buscassem restabelecer diálogos e proximidades com as comunidades fora da instituição.

‘Como eu gostaria de ter uma Igreja que fosse pobre e para os pobres’

Desde o início de seu pontificado, o papa Francisco apelou por uma Igreja que fosse pobre e para os pobres. Com esse objetivo, ele enfatizou a necessidade de a Igreja abandonar o luxo e a ostentação para alcançar os mais necessitados. 

Ele promoveu uma série de reformas na Igreja Católica, buscando modernizar suas estruturas e torná-la mais transparente e próxima do povo. O papa realizou reformas nas finanças do Vaticano, com o objetivo de combater a corrupção e garantir uma gestão mais eficiente e ética dos recursos.

Da mesma forma, como havia feito como bispo, Francisco optou por manter um estilo mais humilde e menos formal do que seus antecessores. Para isso, ele se mudou para a casa de hóspedes do Vaticano em vez de se mudar para o luxuoso Palácio Apostólico. Além disso, ele realizou missas matinais com funcionários do Vaticano. 

Além disso, ele promoveu a sinodalidade, um modelo de governança da igreja que incentiva a participação de todos os membros da igreja, inclusive os leigos. Ele convocou sínodos sobre questões cruciais, como a família, a juventude e a Amazônia, buscando ouvir as vozes das periferias e tomar decisões de forma colegiada.

Em sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium (2013), Francisco criticou a “economia da exclusão” e o “culto ao dinheiro”, instando a Igreja a ser uma voz profética em defesa dos marginalizados. 

A ideia de misericórdia também está no centro de sua mensagem. Em 2015, ele declarou um Ano Jubilar da Misericórdia, enfatizando que a Igreja deve ser um “hospital de campanha” que acolhe a todos, especialmente aqueles feridos pela vida. Sua encíclica “Misericordiae Vultus” (O Rosto da Misericórdia) destacou que a misericórdia está no centro do Evangelho e que a Igreja deve ser um instrumento de perdão e reconciliação.

Dessa forma, Francisco promoveu um cuidado pastoral inclusivo, abrindo as portas da Igreja para pessoas divorciadas e até mesmo para membros da comunidade LGBTQ+.  Em sua encíclica Laudato Si (2015), há um chamado urgente para cuidar da “casa comum” e abordar a crise ecológica a partir de uma perspectiva holística que combina justiça social e sustentabilidade ambiental. 

Em Fratelli Tutti (2020), sua encíclica sobre a fraternidade universal, Francisco clamou por um novo modelo econômico baseado na solidariedade e no bem comum. Ele pediu aos governos e às empresas que priorizem o bem-estar das pessoas em detrimento do lucro e que construam um mundo mais justo e equitativo.


Terra, moradia e trabalho


“Vocês são para mim, como lhes disse em nossos encontros, verdadeiros poetas sociais, que das periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais urgentes dos excluídos”, escreveu o Papa Francisco em uma carta aos movimentos sociais no domingo de Páscoa de 2020. 

O Papa Francisco manteve relacionamento próximo e de apoio com vários movimentos populares, especialmente os que defendem os direitos dos pobres, dos migrantes, do meio ambiente e da justiça social.  Com esse objetivo, ele organizou, no Vaticano, uma série de reuniões com diferentes movimentos de todo o mundo. Organizações que organizam comunidades marginalizadas, trabalhadores informais, camponeses sem terra, catadores de lixo urbanos e indígenas, entre outros.

A primeira reunião foi realizada em 2014 no Vaticano. Participaram representantes de mais de 30 países. Durante seu discurso, o Papa Francisco disse: “Solidariedade é uma palavra que nem sempre é bem aceita… mas é uma palavra que expressa muito mais do que atos esporádicos de generosidade. É pensar e agir em termos de comunidade, de dar prioridade à vida de todos em detrimento da apropriação de bens por parte de alguns.”

A segunda reunião foi realizada em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em 2015. Mais de 1.500 líderes de movimentos sociais da América Latina e de outros continentes, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil.

Nesse discurso histórico, Francisco falou sobre os “três T”: Terra, Moradia e Trabalho, como direitos fundamentais para uma vida digna. “Esse sistema não é mais suportável, os camponeses não aguentam mais, os trabalhadores não aguentam mais, as comunidades não aguentam mais, a terra não aguenta mais”. Esse discurso foi amplamente celebrado pelos movimentos sociais por seu tom profético e seu chamado à ação.

A terceira reunião foi realizada novamente no Vaticano em 2016. Lá, Francisco reiterou seu apoio aos movimentos sociais e os incentivou a continuar lutando por justiça, dizendo: “Vocês são poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de moradias, produtores de alimentos, especialmente para aqueles descartados pelo mercado global”.

Durante o quarto Encontro, em 2021, realizado em formato virtual devido à pandemia, Francisco enfatizou a importância da solidariedade global em face da pandemia e da crise climática. Ele disse: “Não há mudança sem luta, não há luta sem esperança, não há esperança sem fé”. 

Quem te ensinou a rezar?


Jorge Mario Bergoglio nasceu em 17 de dezembro de 1936 no bairro de Flores, em Buenos Aires, em uma família católica de origem italiana. Filho mais velho de cinco irmãos. Seu pai, Mario José Bergoglio (1908-1959), tinha emigrado da Itália fugindo do fascismo, enquanto sua mãe, Regina María Sívori (1911-1981), também vinha de uma família com raízes italianas.

Segundo o próprio Bergoglio, a figura que mais influenciou sua infância e juventude, especialmente sua fé católica, foi sua avó paterna, Margerita Rosa Vassallo, que lhe contava histórias de santos. Seu impacto foi tão grande que o papa Francisco mantinha em seu breviário uma oração que ela lhe deu e que ele lê todos os dias. Foi sua avó Rosa que o ensinou a rezar.

Em 1957, aos 21 anos de idade, ele decidiu se tornar sacerdote. Entrou para o seminário e depois para o noviciado da Companhia de Jesus (jesuítas). Completou seus estudos no juvenato jesuíta em Santiago (Chile), que na época estava sob a direção do padre Carlos Aldunate Lyon, que mais tarde se tornaria um dos principais promotores da Renovação Carismática no Chile.

Esses anos de juventude foram marcados por uma profunda turbulência social e política na Argentina. Em 1955, um golpe de Estado havia derrubado o governo popular liderado por Juan Domingo Perón, proibindo até mesmo a menção de seu nome. Em 1966, junto com vários jesuítas, Bergoglio trabalhou na Universidad del Salvador, onde entrou em contato com vários jovens que, após a brutal repressão da ditadura às universidades – conhecida como a Noite dos Bastões Longos -, juntaram-se à Resistência Peronista, principalmente ao grupo de jovens Guardia de Hierro.

Embora o papa Francisco nunca tenha se definido como um peronista, ele declarou repetidamente que se sente semelhante à “doutrina social da igreja” que o peronismo assumiu como parte de sua filosofia. 

A partir de seu relacionamento com esses jovens, Bergoglio conheceu talvez a segunda mulher mais influente de sua vida: a filósofa Amelia Podetti Lezcano (1928-1979), uma das principais promotoras das “Cátedras Nacionales”, uma série de cátedras que entre 1968 e 1972 buscavam estudar os problemas sociais argentinos e latino-americanos, reunindo tendências peronistas, marxistas e cristãs, que formaram  um movimento de resistência à ditadura civil-militar vigente.

“Dela eu peguei a intuição das ‘periferias’. Ela trabalhou muito com isso”, disse o papa Francisco em uma entrevista conduzida por Massimo Borghesi para sua biografia intelectual de Bergoglio. Tal foi a influência de Amelia Podetti Lezcano que, em 2006, Bergoglio escreveu o prefácio para a edição do livro de Podetti Comentário à Introdução à Fenomenologia do Espírito.

Em uma entrevista em maio de 2020, à pergunta “O que um papa traz quase do fim do mundo?”, Francisco respondeu: “Lembro-me de algo que a filósofa argentina Amelia Podetti escreveu: a realidade é melhor vista dos extremos do que do centro. À distância, a universalidade é compreendida. É um princípio social, filosófico e político”.

Editado por: Rodrigo Durão Coelho

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