Mortos do Charlie podem virar mártires de uma causa inimiga

Compartilhe:

Por Luís Fernando Veríssimo, reproduzido no Diário do Centro do Mundo – 

Alguém já disse que cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar um jornal. Outro disse que cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar o “Pravda”. Para mim, cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar o “Charlie Hebdo” ou similar, o que exclui todas as outras cidades do mundo, salvo Paris.

O “Charlie Hebdo”e outros, como o “Canard Enchainé”, pertencem a uma tradição de imprensa malcriada que vem desde antes da Revolução Francesa. É uma imprensa que não reconhece limites nem de alvos para o seu humor corrosivo nem de coisas vagas como “bom gosto”. Lembro uma capa que ficou famosa, já não sei mais se do “Charlie” ou do “Canard”, que era a seguinte: fotos dos órgãos genitais de várias pessoas, com legendas embaixo especulando de quem seriam. Entravam na lista políticos, astros e estrelas e até o Papa.




O “Charlie Hebdo” é um jornal nitidamente de esquerda, mas que nunca livrou a esquerda das suas gozações. Seu alvo preferencial é a direita religiosa francesa, mas, de uns anos para cá, ele vem incluindo o fundamentalismo islâmico nas suas críticas — mesmo com o risco de atentados como o que acabou acontecendo na quarta-feira, que foi o mais trágico mas não foi o primeiro.

Jornais como o “Charlie”, impensáveis em qualquer outro lugar, se beneficiam de outra tradição francesa, a da tolerância com a contestação política e respeito à liberdade de expressão. Por ironia, o atentado de quarta-feira deve fortalecer a direita xenófoba e anti-Islã da França, justamente a que o “Charlie” mais combatia. O cartunista Wolinski e os outros morreram pelo direito de serem livres, totalmente livres, mas seus assassinos não tinham nenhuma tradição parecida com a da França para conter o dedo no gatilho. No fim, os mortos do “Charlie” podem virar mártires de uma causa inimiga. Uma ironia que todos eles dispensariam, se pudessem.

Quando a turma do “Pasquim” foi presa pela ditadura, houve uma mobilização para mantê-lo nas bancas. Muita gente, arregimentada, entre outros, pela Baby Oppenheimer, então casada com o Tarso de Castro, colaborou. Até meu pai participou do mutirão solidário. Está acontecendo a mesma coisa com o “Charlie”. A próxima edição do semanário será histórica.

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Categorias