‘Movimento cometeu erros, mas greve da PM no Espírito Santo está na conta do governo’, diz especialista em segurança

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Por Camilla Costa, na BBC Brasil – 

“O que se assiste é um abandono, é a lógica do ‘se vire’, porque todos querem tirar algum dividendo político da desgraça.”

É assim que a antropóloga Jacqueline Muniz descreve a situação provocada pela greve da Polícia Militar no Espírito Santo. Segundo ela, os erros cometidos pelos dois lados – governo e policiais – deixam a população refém do medo e da violência, em meio à falta de planos de emergência para lidar com crises de segurança.

Moradores de Cachoeiro do Itapemirim protestam diante de batalhão contra greve de policiais em 7 de fevereiro de 2017
Moradores de Cachoeiro do Itapemirim protestam diante de batalhão contra greve de policiais em 7 de fevereiro de 2017

Na noite de sexta-feira, o governo do Espírito Santo anunciou um acordo com associações de policiais militares para que os PMs voltassem ao trabalho até as 7h de sábado. O documento, no entanto, não incluia os movimentos de mulheres e familiares dos policiais que, na última semana, impediram a saída de viaturas dos Batalhões e Quartéis do Estado. Em nota, esses movimentos afirmaram que não há acordo com o governo e a paralisação foi mantida, apesar do acordo.

Muniz é doutora em Estudos de Polícia, professora do bacharelado em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Ela deu aulas no curso de especialização da PM do Espírito Santo e também já foi diretora da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio. Agora, usa sua experiência em ambos os lados para analisar a crise.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – No início da paralisação no Espírito Santo, você publicou no Facebook um artigo que escreveu sobre a greve dos PMs mineiros em 1997 e disse ter receio de que o Brasil tenha voltado a 20 anos atrás. Por quê?

Jacqueline Muniz – Temos 20 anos em que greves de policiais militares acontecem no país. E ao longo da História brasileira tivemos greves de forças policiais desde o Império. O Exército já se amotinou, várias forças já foram extintas e recriadas por causa de conflitos entre elas e com o governo.

Parece que desaprendemos a lidar com isso – e esse desaprender é intencional. O que eu vejo são cálculos oportunistas. A ideia do “quanto pior, melhor” tem favorecido péssimos governantes.

BBC Brasil – O que há de comum entre as greves de PMs que ocorreram no Brasil nos últimos 20 anos – em Minas, Rio, Bahia, Rio Grande do Sul – e esta?

Muniz – Os contextos delas são diferentes, mas é preciso lembrar que os policiais militares sabem muito bem que eles são impedidos legalmente de fazer uma greve.

No entanto, eles precisam reivindicar e fazer valer os seus direitos, que são legítimos. É legítimo pedir melhorias de condições de trabalho e reajustes salariais – claro que de forma realista.

Todo movimento grevista faz uso da oportunidade: há cenários mais propícios a desencadear greves. Isso é diferente de ser oportunista. É fazer uso de oportunidades para dar visibilidade e chamar a atenção da sociedade para sua causa.

Então é evidente que um momento de crise e de precarização das relações trabalhistas, como o atual, é avaliado como um momento oportuno para conseguir melhorias – que podem não ser um aumento de salário, mas outros benefícios.

Em outros momentos, como na Bahia, a PM ameaçou fazer greve durante a Copa do Mundo, durante a Olimpíada. Por que você vai escolher fazer uma manifestação nesses momentos? Por que o país inteiro vai estar prestando atenção. Você diz que vai fazer para forçar uma negociação. Não há nada de errado nisso. O cálculo politico é feito dos dois lados.

Mas há, é claro, práticas oportunistas que se beneficiam de movimentos reivindicatórios: grupos de extermínio, segurança privada clandestina, acertos de contas dentro do crime e de criminosos com setores corruptos da segurança pública. Eles se beneficiam destes momentos para mostrar seu poderio e fazer seu “marketing do terror”.

Além disso, sempre que há uma crise na segurança, os governantes têm o hábito de desaparecer. Ou saem do país, ou dizem que estão em outro Estado. Nunca são eles próprios que falam, mas sim um porta-voz.

Isso é padrão para os nossos governantes em crises e ondas de violência. Eles terceirizam a responsabilidade dada pelo voto de modo a poupar a sua imagem.

Jacqueline Muniz
Jacqueline Muniz

BBC Brasil – Assim como no Espírito Santo, mulheres e familiares de PMs deram início à paralisação no Rio Grande do Sul em 2015. É comum a presença de familiares “na linha de frente” da greve?

Muniz – Nenhum familiar impede policial nenhum de sair. Se eles não estão saindo é porque estão aquartelados.

Essa é uma manifestação simbólica que busca produzir dois efeitos: o primeiro é buscar a simpatia e a adesão da população, porque mulheres e crianças você não vai retirar à força, já que são civis desarmados.

O segundo é que, como a greve dos PMs é ilegal, esta é uma maneira de contornar a ilegalidade disso e colocar os familiares e poder dizer para a Justiça: “olha, eu estou querendo ir trabalhar, mas estou sendo impedido. E não posso bater na minha própria mulher, espancar meu filho”.

Elas vão para a linha de frente para mostrar que o movimento é pacífico, que os policiais não vão sair armados na rua dando tiro, destruindo viatura e produzindo caos.

Isso seria motim, e já aconteceu no Rio de Janeiro e em outros Estados. Policiais usando armas do Estado para assustar a população. Por isso as mulheres na frente: elas são as porta-vozes, as despachantes do movimento. Mostram que o movimento está aberto à negociação.

Esta estratégia existe por causa da lógica draconiana e anticidadã do estatuto militar e do regulamento disciplinar, que reduzem o direito dos policiais. Já vimos em outros movimentos reivindicatórios em que os policiais se revezavam – parte ia para a rua e parte ficava no quartel – que eles foram punidos, expulsos.

Quanto mais rígido, caduco e opressivo é um regulamento, mais ele induz a que seja burlado. Ele não gera disciplina e hierarquia. Gera revolta, ressentimento. As pessoas não discutem isso, mas é importante.

Capixabas lotam supermercado em Vitória; medo de sair às ruas têm provocado alta nos preços e falta de produtos em estoques
Capixabas lotam supermercado em Vitória; medo de sair às ruas têm provocado alta nos preços e falta de produtos em estoques

BBC Brasil – Como você avalia a atuação do governo do Espírito Santo nessa situação?

Muniz – O governo não pode se colocar como refém, como vítima da polícia. É preciso lembrar que o comandante em chefe das polícias estaduais, de acordo com a Constituição brasileira, é o governador do Estado, não é o comandante-geral da PM e nem o chefe da Polícia Civil.

Então primeira pergunta a se fazer é: cadê o plano de contingência?

Mesmo que o governador Paulo Hartung estivesse operado, há um governador em exercício!

Faz-se plano de contingência quando o papa vem visitar, quando Roberto Carlos vai cantar em Cachoeiro de Itapemirim e uma greve te pega de surpresa? Uma secretaria de segurança não sabe planejar uma emergência? Então o que é mesmo que ela faz?

Essas coisas não acontecem de um dia para o outro. Se o governador está sabendo que servidores de segurança pública ameaçam entrar em greve, a primeira coisa a fazer – até para viabilizar uma negociação justa sem tornar a população refém – é um plano de emergência que articule os poderes do Estado, mobilizando os recursos locais e os da União.

Desde o primeiro momento, o governo deveria ter solicitado a mobilização da Força Nacional e das Forças Armadas junto ao ministro da Justiça e ao ministro da Defesa.

Aliás, uma das missões da Força Nacional é ser um recurso para garantir minimamente a prestação de serviço à população evitando o pânico e as práticas oportunistas que sempre ocorrem quando serviços essenciais são paralisados.

O Corpo de Bombeiros é estadual, poderia ir para as ruas orientar a população e evitar pânico se for necessário. Para estar em portas de escolas e em outros pontos estratégicos para que a vida na cidade não pare. A Polícia Civil também.

É preciso também dialogar com os municípios para mobilizar a Guarda Municipal para os pontos de maior circulação de pessoas. A Guarda é ostensiva e está cuidando dos municipais. Isso é competência dela e ela pode ser mobilizada em emergências.

O governo deve ir para a mídia, as redes sociais, para informar a população sobre a possibilidade de uma paralisação total ou parcial da polícia. Parte do medo é reduzido com uma boa comunicação social.

Era preciso também cobrar do movimento “grevista” o percentual mínimo de prestação de serviços, porque nenhuma categoria de serviços essenciais pode parar completamente.

Isso tem que ser feito para estabelecer uma oportunidade de negociação, e não usar o terror como arma de troca, dizendo: “Olha quantas mortes, vocês perderam a moral com a população”. Deixar mortes e assaltos acontecerem para ganhar na queda de braço não é negociação, é acirramento.

Então a pergunta é: o governo apresentou à sociedade o plano de contingência logo no início ou quis se beneficiar do pânico coletivo?

A impressão que dá é que o governo apostou no “quanto pior, melhor” para ter a população do seu lado. Isso está na conta do governo, sim.

E não estou falando mal desse governo. Seja de esquerda, direita, centro ou lado, é preciso ter um plano de contingência. Isso é capacidade de governar. A gente demonstra que é capaz de governar na emergência.

Familiares de policiais acampam em frente a um batalhão em Vitória no dia 7 de fevereiro de 2016
Familiares de policiais acampam em frente a um batalhão em Vitória no dia 7 de fevereiro de 2016

BBC Brasil – E o que estaria na conta do movimento das famílias dos policiais, que deram início à greve?

Muniz – A polícia e o movimento das famílias também cometeram erros desde o início. Como todo movimento reivindicatório sabe, ele tem uma curva de ascendência e uma curva de descendência.

Nem o próprio trabalhador quer ficar eternamente em greve porque sabe que perde credibilidade, prestígio, reconhecimento e apoio da população. E quanto mais esvazia o apoio da população, menos chances o movimento tem de conseguir implementar sua pauta.

O movimento grevista pensou nesse mínimo necessário, nos 30% do efetivo policial que deveria estar nas ruas?

Eles deveriam ter convocado todos os policiais de férias, de licença, da reserva, para contribuir no policiamento, porque todos vão se beneficiar das melhorias conquistadas.

Precisavam esclarecer a população, fazer informes, mostrar que os serviços essenciais seriam mantidos. Por exemplo, a pronta resposta do 190 não pode parar.

As porta-vozes do movimento erraram também porque precisam de uma pauta clara e factível. Não posso pedir o infinito porque não vou ganhar.

Precisam esclarecer para a população, desde o início, se o que estão pedindo é viável, é possível. Se o aumento seria aceito dividido em 30 parcelas, por exemplo. Não adianta dizer só “Eu quero 40% porque não tenho aumento há três anos”.

Você tem que demonstrar para a população que está disposto a negociar. E negociar é diferente de fazer pirraça. O grevista não pode parecer um pirracento e o governo não pode parecer que faz beicinho e bate o pé, como se fosse um cabo de força.

BBC Brasil – Mas se os PMs convocassem os colegas de férias, de licença ou da reserva para contribuir com o efetivo mínimo, não estariam assumindo uma greve que insistem não ter começado?

Muniz – Eles insistem nisso porque sabem que, quando aparecem, os líderes serão perseguidos.

Ninguém vai demitir 500 ou 10 mil policiais porque não tem como colocar outros no lugar. Vai se distribuir pequenas punições invisíveis para a sociedade: transferências, mudanças de escala.

Mas as lideranças policiais ou serão demitidas de cara, ou se provoca a demissão delas. Os policiais já assistiram a isso no Rio de Janeiro com os Bombeiros, em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, na Bahia.

Mas liberar um efetivo mínimo não quer dizer que as lideranças da PM estariam à frente. Se as mulheres vão como porta-vozes, não são os policiais. E tudo isso deve ser feito mesmo sabendo que a greve é ilegal.

A polícia tinha que continuar atendendo a emergência, você não para a emergência. Numa greve de médicos você não pode parar o pronto-socorro. A vida não espera na saúde pública e nem na segurança pública.

Isso garante credibilidade e adesão social ao seu movimento, não só da sociedade como de mais policiais e outras categorias. No Rio de Janeiro, em 2011, todo mundo apoiou a greve dos bombeiros, porque viram que eles estavam sendo esculachados pelo governo.

Seguranças privados diante de uma loja no centro de Vitória em 7 de fevereiro de 2016
Seguranças privados diante de uma loja no centro de Vitória em 7 de fevereiro de 2016

BBC Brasil – Como a polícia pode garantir seus direitos sem precisar chegar a este ponto?

Muniz – Os canais de comunicação têm que estar permanentemente abertos. Isso é uma dificuldade com organizações militares, cuja tradição é não ter câmaras de discussão com os trabalhadores.

Os policiais não são pensados como trabalhadores, e sim como militares, com menos direitos do que a população comum.

Discutir as questões trabalhistas é vetado. Eles podem discutir na associação de cabos e soldados, mas não dentro da organização porque isso é tudo como indisciplina. Com outros profissionais a gente se reúne e discute, mas se os PMs se reúnem até dentro do quartel para debater condições de saúde e segurança ocupacional, eles podem ser presos.

Além disso, nós temos que desmilitarizar a segurança pública. E eu não estou falando de desmilitarização de polícia como as pessoas falam por aí. Eu estou falando de garantir os direitos básicos de cidadania aos policiais e produzir dispositivos de controle, regulação e transparência do serviço policial.

Se eles forem menos militares e mais cidadãos, eles serão mais respeitados pela sociedade e terão mais autoestima. O policial é um trabalhador. É um de nós, e não um contra nós.

Não estou dizendo que se deve retirar a proibição de fazer greve, até porque em várias polícias do mundo não se pode fazer greve. Em Nova York, se não me engano, nem professor pode fazer greve.

Mas é preciso ter câmaras de negociação trabalhistas permanentemente abertas, para que a greve passe a ser, como deve ser, um último recurso. A greve da polícia no Brasil é ilegal, mas continua ocorrendo.

BBC Brasil – Também há interesses dentro da PM em criar esse caos durante a paralisação?

Muniz – Tem muitos atores implicados. Isso tudo está acontecendo porque há estímulos de vários setores que ganham com isso. Setores da Assembleia Legislativa, do crime, da indústria ilegal da segurança, da polícia… tem muita gente ganhando e que vai fazer carreira política em cima da desgraça.

Estão transformando o movimento grevista em bobos úteis, de uma certa maneira. É preciso que a gente olhe para todos os lados.

As polícias brasileiras não são blindadas da privatização predatória dos seus recursos e do uso político partidário. Isso quer dizer que a carteira de policial é vendida na esquina. Fabrica-se ameaças para vender proteção. Claro que tem muita gente lucrando com isso: de dentro da polícia, de fora da polícia, ao redor da polícia.

E os policiais militares, em especial, tem sido moeda de troca. Os bicos são tolerados para não fazer uma política salarial decente de valorização dos recursos humanos. Mas como o bico é informal e ilegal, todo mundo na polícia deve favor a todo mundo. Quem deve favor não pode revelar o que há de errado ali dentro.

E mais: a polícia é usada como cabo eleitoral, como coletora de votos. As polícias produzem resultado eleitoral para o político, fazem curral eleitoral. Essa polícia tem sido aparelhada e desmontada para atender a propósitos políticos-partidários.

Até hoje o Brasil não fez uma reforma da polícia. Todas as polícias do país funcionam como um cheque em branco.

Soldados da Marinha inspecionam carros em Serra, no Espírito Santo, no dia 9 de fevereiro de 2017
Força Nacional não tem condições de responder a todas as emergências do Brasil, diz Muniz

BBC Brasil – Famílias de PMs do Rio começaram a fazer protestos diante dos batalhões a partir desta semana, da mesma forma que começou a paralisação no Espírito Santo. Outras greves como esta devem acontecer?

Muniz – A possibilidade de que outros eventos dessa natureza venham a ocorrer está posta há muito tempo. Não é só contágio, não é que aconteceu no Espírito Santo e vai esparramar para outros locais. Isso já vem acontecendo em função das insatisfações acumuladas ao longo do tempo e da ausência de uma interlocução clara.

Temos graves problemas de segurança pública que não são de agora. As coisas estão transbordando porque o cenário está propício para isso. É um cenário de disse-me-disse governamentais, de falta de clareza, de precarização de direitos individuais e coletivos. Isso acirra os ânimos.

E mais: a Força Nacional não tem condição de responder a todas as emergências do país. Ela tende a colapsar. Ela tem que atender as crises penitenciárias, greves para lá e para cá. Tem que atender as demandas de todos os Estados de maneira equitativa. E aí?

A Força Nacional é um recurso de emergência, e está virando um recurso de rotina. Com isso, se torna incapaz de poder ajudar os Estados. Quando ela chega, favorece negociações qualificadas, assim como a presença do Exército. É para isso que eles existem também.

O que vemos são esses improvisos, e não se improvisa com a segurança pública.

Mas isso não quer dizer que a gente é refém. É a sociedade que pode expulsar ou extinguir uma polícia, não o inverso.

Foto da capa: Tânia Rêgo / Agência Brasil




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