Por Marcelo Auler em seu Blog –
“Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos“.
A advertência acima partiu da cúpula do Ministério Público Federal encarregada de zelar pelos Direitos do Cidadão e ainda da coordenadora da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (Ccr) do MPF, responsável pela área criminal. Mais do que um alerta, a Nota Técnica Conjunta Nº 01/2018, a respeito do Decreto nº 9.2388 que instituiu a intervenção federal no Rio de Janeiro é uma advertência de que as falas das autoridades nos últimos dias levaram o MPF a acender o sinal de alerta. Vigiarão o que for feito no Rio, tal como consta da Nota:
“As autoridades, todas de alto escalão, que assim se manifestam em relação à execução da intervenção colocam sob suspeita os propósitos democráticos do ato e demandam dos órgãos públicos comprometidos com os direitos fundamentais e a defesa da Constituição uma postura de vigilância e controle sobre o desenvolvimento de sua implementação“.
Mas, o mais curioso de tudo é que Deborah Duprat, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, coordenadora da 2ª Ccr, Domingos Sávio Drescher da Silveira e Marlon Alberto Weichert, respectivamente, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Substituto e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, acabaram dando uma aula de Constituição a um governo presidido por um dito “professor de Direito Constitucional”. Ao que parece, na cadeira que passou a ocupar após o Golpe de 2016, Temer esqueceu o que escreveu e o que ensinou na PUC-SP. A começar pelo preceito – desrespeitado pelos golpistas – de que “quem decide sobre os destinos políticos no país fundamentalmente é o povo”.
O recado dos quatro procuradores também é dirigido ao ministro da Defesa Raul Jungmann e ao comandante do Exército, general Ênio Vilas Boas, que defendem direitos especiais para combater o crime.
Aliás, enquanto o governo, em todos os pronunciamentos oficiais, refere-se apenas aos traficantes, os procuradores lembraram da existência também das milícias.
Ao advertir que o combate a criminosos se faz dentro da lei – rechaçando de pronto a ideia de que se trata de inimigos –, a Nota cita os milicianos, esquecidos pelas autoridades:
“organizações criminosas, incluindo milícias, devem ser investigadas com técnicas modernas que atinjam o seu financiamento e o lucro auferido com suas atividades ilegais“.
A Nota Técnica atinge diretamente o presidente da República Michel Temer, sempre apontado como um expert em Constituição – ele é professor da PUC-SP em Direito Constitucional e tem um famoso livro sobre a matéria.
A manifestação dos procuradores aponta os seguintes erros na decisão assinada por Temer e aprovada, sem vacilo, por um Congresso Nacional submisso:
O “decreto ressente-se de vícios que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional e, sobretudo, aos direitos humanos”.
Falta indicar “quais as providências específicas que serão adotadas na execução da intervenção”, como o texto constitucional determina que seja explicitado.
O § 1º do art. 36 da Constituição, que define como deve ser o decreto interventivo, determina que se especifique “a amplitude, o prazo e as condições de execução” (da intervenção). Isto não consta do Decreto nº. 9.2388.
O prazo traçado pelo governo – 21 de dezembro de 2018 – é, no mínimo, atípico:
“A excepcionalidade da intervenção também vai demandar justificativa quanto ao prazo de sua duração. Ou seja, a medida é, em princípio, de curta duração, para fazer face a uma situação que se supõe seja uma disfuncionalidade ocasional e episódica no exercício autônomo dos entes federativos. A previsão de um prazo alargado, que vai até 31 de dezembro de 2018, de forma peremptória e sem considerar eventual evolução da situação, parece atentar contra a exigência constitucional“, dizem os procuradores.
O decreto – e, logo, o presidente – erra ao pretender desconhecer toda a legislação estadual vigente, inclusive a Constituição do Rio de Janeiro, determinando que o interventor ficará “subordinado à Presidência da República e não estará sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”. Os procuradores, a respeito, destacam:
“Não parece razoável supor que o decreto em questão esteja a pretender suspender vigência e eficácia de legislação estadual. Não só pela sua inaptidão formal para tanto, mas porque não há, na Constituição, dispositivo que dê ao decreto interventivo tamanha possibilidade”.
Lembram ainda que a intervenção não permite tudo. Ou seja, em nome dela não se pode suspender direitos individuais:
“A intervenção federal é uma medida extrema, porém menos grave do que o Estado de Defesa (art. 136) e o Estado de Sítio (art. 137). Na intervenção federal não pode haver restrições a direitos fundamentais, diferentemente das duas outras situações, para as quais a Constituição admite a temporária limitação de alguns direitos”.
Lembram ainda que a intervenção não permite tudo. Ou seja, em nome dela não se pode suspender direitos individuais:
“Em realidade, a intervenção federal tem uma aproximação com a finalidade de preservar os direitos fundamentais e a democracia (…) Nesse sentido, não se concebe que uma intervenção federal no Poder Executivo de um Estado da Federação possa ser fonte de desrespeito à autonomia dos poderes Legislativo, Judiciário, ou mesmo às atribuição do Ministério Público. Essa leitura parece bastante evidente, pois, como referido, a restrição de direitos humanos ou fundamentais, assim como o atentado à separação de poderes, são também causas de intervenção e, portanto, jamais podem ser consequência desses atos.estadual”.
De nada adianta o decreto estipular que o papel do interventor é de natureza militar. Não é, no entendimento dos procuradores. O interventor, embora seja um general, exercerá uma atividade civil e como tal responderá, como destaca a Nota:
“Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional. A intervenção federal no Poder Executivo estadual é, por definição constitucional, de natureza civil e não pode um decreto instituir uma intervenção militar, sob pena de responsabilidade do próprio Presidente da República que o emitiu“.
Nesse ponto, a Nota Técnica suscita um debate interessante sobre a Justiça competente para apreciar os atos do general Walter Souza Braga Netto, na função de interventor. Os militares defendem que seus atos estarão sujeitos à Justiça Militar. A Nota, porém, levanta dúvidas sobre este entendimento e considera que sendo a Intervenção em um Estado um ato de natureza civil, a jurisdição não será militar:
“(…) a par da natureza civil da intervenção, os atos do interventor, ainda que um militar, não poderiam atrair a competência da jurisdição militar. A interpretação restritiva à competência da jurisdição militar já foi enfrentada pela Conselho de Direitos Humanos da ONU, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, todos de acordo em que deve vigorar, na matéria, o “princípio da especialidade”, que é aquele que atribui “jurisdição militar aos crimes cometidos em relação com a função militar, o que a limita a crimes militares cometidos por elementos das forças armadas”. Segundo os sistemas internacionais de direitos humanos, essa jurisdição deve ser restrita, excepcional e de competência funcional“.
Mas não fica claro se a apreciação dos seus atos será pela Justiça Estadual ou Federal. Da mesma forma, não esclarece plenamente se o cargo com natureza civil – “o interventor, tal como prevê inclusive o decreto, assume as competências do Governador na área de segurança pública e deve agir de conformidade com a legislação que regula a matéria. O interventor é, portanto, uma autoridade federal, com poderes civis, no que diz respeito à origem de seu poder; porém é uma autoridade estadual no que concerne ao exercício das competências estaduais!” – pode ser acumulado com o cargo de Comandante Militar do Leste. A dúvida surge no seguinte texto:
“O decreto interventivo estipulou no art. 2º, parágrafo único, que o cargo de interventor é de “natureza militar”. Trata-se de preceito que deve ser interpretado no estrito âmbito das relações militares, que definem a existência de “cargos de natureza militar” para fins de agregação (Lei nº 6.880/80 e Decreto nº 9.088/17), ou seja, afastamento (temporário ou permanente, a depender do cargo civil) do militar de sua função ordinária, para plena assunção do cargo de natureza civil“.
Por fim a Nota afasta de vez a possibilidade de mandados de busca e apreensões coletivos, como defende o ministro da Defesa, Raul Jungmann, bem como a tese levantada pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, de os militares receberem uma espécie de salvo conduto para não terem preocupações com possíveis cobranças judiciais:
“Na sequência da decretação da intervenção, a imprensa vem divulgando, além daquela atribuída ao Ministro da Defesa, declarações de autoridades federais civis e militares que direta ou indiretamente defendem a violação de direitos humanos por parte do interventor e das Forças Armadas que estão sendo mobilizadas para participar do esforço interventivo, ou pelo menos, a impunidade para eventuais abusos. Essas declarações são de extrema gravidade, pois podem produzir o efeito de estimular subordinados a praticarem abusos e violações aos direitos humanos, atingindo de modo severo a população do Rio de Janeiro, que historicamente suporta a violência em geral e a violência estatal em particular. A intervenção não pode ser realizada à margem dos direitos fundamentais. Ao contrário, somente será constitucional se for implementada para a garantia dos direitos fundamentais, inclusive à segurança pública, ao devido processo legal,à ampla defesa, à inafastabilidade da jurisdição, etc.”