Por Liana Melo, em Projeto Colabora –
Cemitério dos Anjinhos, nos fundos do São João Batista, esconde covas de crianças pobres
Não existe uma escala de angelicalidade no Cemitério dos Anjinhos. Escondido atrás de um bambuzal, no alto de uma colina, nos fundos do Cemitério São João Batista, em Botafogo, jaz uma sucessão de covas rasas, todas ocupadas por crianças com menos de sete anos. São milhares de cruzes e nenhum túmulo. Ser ou não ser pagão nunca foi o critério para estar enterrado lá. Ser miserável sim. Todos os ‘anjinhos’ do cemitério morreram vítimas de doenças decorrentes da pobreza extrema: fome e desnutrição, como consta no Registro de Óbitos do São João Batista. Seus pais não tiveram dinheiro para uma sepultura oficial. É um lugar relegado ao esquecimento, num cenário pontuado de marcadores da desigualdade social, a exemplo da vida de cada uma das crianças ali enterradas. A proibição para enterrar novos corpos é recente. Começou a vigorar há apenas nove anos.
Uma vegetação selvagem predomina no ambiente. Não há sinal de mão humana cuidando do local, regando as muitas folhas, totalmente secas, e as pouquíssimas flores que brotam aleatoriamente pelo terreno – ao contrário do que ocorre no restante do cemitério, sob a administração da concessionária Rio Pax, desde 2014. O único sinal de vida é proporcionado pela própria natureza. Quando um vento bate no bambuzal, ressoa um barulho típico: “quéc-quéc”. Fora isso, é silêncio e abandono. É um cenário perturbador. As milhares de cruzes espalhadas pelo terreno não estão adornadas com flores, fotos, brinquedos, chupetas, lembranças variadas… Nada disso. Os ‘anjinhos’ morreram invisíveis e assim se perpetuaram na história do cemitério.
Fundado em 1852 por D. Pedro II, o São João Batista foi fruto de esforço pessoal do imperador para melhorar as condições de insalubridade do Rio de Janeiro. As pessoas eram enterradas nas igrejas e não havia mais espaço para tantos mortos. Outra opção era o Cemitério da Saudade, localizado na Urca, zona sul da cidade, e que foi destruído por uma ressaca. O primeiro sepultamento no São João Batista demorou um pouco a ocorrer, porque nenhuma família de boa estirpe queria inaugurá-lo. Coube a tarefa à menina Rosaura, um ‘anjinho’ de apenas 4 anos, filha de escravos. O enterro ocorreu em dezembro daquele ano. Com o tempo, o São João Batista virou o preferido das famílias abastadas.
Enquanto o Cemitério dos Anjinhos vive à margem, e é um lugar desconhecido da grande maioria das pessoas, o São João Batista é uma espécie de grife pós morte. Sua lista de predicados é extensa. O maior museu a céu aberto da estatuária brasileira, com esculturas funerárias de nomes renomados como Rodolpho Bernardelli, Humberto Cozzo, Heitor Usai. Abriga o maior número de jazigos de chefes de estado no país, com pelo menos nove ex-presidentes da República, diversos primeiros-ministros da época do Brasil Império, e até um ex-chefe de estado de Portugal. Lá, também está enterrada uma grande quantidade de compositores e cantores famosos (Heitor Villa Lobos, Vicente Celestino, Francisco Alves, Carmem Miranda, Ary Barroso, Braguinha, Tom Jobim, Clara Nunes e Cazuza), além de poetas, como Carlos Drummond de Andrade.
Ao ganhar a concessão para administrar o cemitério, a Rio Pax adotou uma prática recorrente mundo afora. Como faz o Père-Lachaise, em Paris, o Saint James, em Londres, e o Recoleta, em Buenos Aires, o São João Batista passou a promover visitas guiadas. São passeios gratuitos, que ocorrem uma vez por mês, sempre em companhia do historiador Milton Teixeira, considerado um dos grandes conhecedores da história da cidade. Ele conta curiosidades dos personagens famosos, informa que o cemitério tem 25 mil túmulos e 65 mil brasileiros enterrados, inclusive judeus. Os túmulos de notáveis têm código de barras, que podem ser acionados pelos visitantes via celular.
Quanto aos ‘anjinhos’… Nenhuma referência. Ninguém conhece suas histórias. São crianças que nasceram sem futuro e morreram eternizadas nas estatísticas oficiais de mortalidade infantil no Brasil.