Por Marizilda Cruppe, compartilhado de Projeto Colabora –
O encontro de uma cozinheira paraense e a maior planta aquática do mundo que já rendeu mais de vinte receitas gastronômicas
Dulce recebe os visitantes em sua casa, uma típica palafita amazônica, com chazinho de preciosa na garrafa térmica, um sorriso no rosto sem rugas e o dedo estendido na direção de suas “meninas”. De um deque bem mais alto que o lago, sob a sombra de um paricazeiro e uma meracrueira os turistas sacam seus celulares e começam uma sessão fotográfica que só termina na despedida, infalivelmente, em uma selfie com a anfitriã. Pisciana de 49 anos, recém completados, Dulcecléia Oliveira vive com o marido, Evandro, em uma casa confortável construída por eles e preparada para as cheias do inverno amazônico. Seu endereço é Canal do Jari, bem ali na confluência de três grandes rios: Amazonas, Tapajós e Arapiuns, na região de Santarém, oeste do Pará. O Jari é alimentado pelas águas marrons do Amazonas e é moradia para botos, peixes-boi, jacarés, cobras, aves, preguiças, macacos e tartarugas. Só se chega até as casas de barco e é comum no período alagado alguns moradores se mudarem para a terra firme. Quando foram morar no terreno cedido pelo pai de Evandro pensaram numa maneira de deixar o lago em frente da casa menos ocioso e garantir peixe para a alimentação durante a vazante, no verão. Tiveram a ideia de plantar vitória-régia, pois a planta faria sombra para os peixes, a parte submersa serviria de alimento para os animais e, de bônus, teriam um lindo jardim. “É um casal de doidos”, diria o sogro de Dulce, pois nunca havia escutado falar de gente que plantasse vitória-régia.
Um mural na parede da casa mostra fotos de várias etapas da vida da planta. A mini palestra começa depois que a mesa está posta. Toalha estampada, petiscos nas cuias, tucupi, limão, geleia e pronto. Dulce aponta o mural com uma varinha e na sua fala leve e divertida mistura informação científica recém adquirida com o saber dos nativos. Os turistas variam expressões de incredulidade, ceticismo e surpresa. Não sabem se filmam a explicação ou se fotografam a comida. Com a experiência de quem já recebeu sete mil visitantes e fez cerca de seis mil degustações em 4 anos, Dulce não demora a chegar ao clímax da visita, o momento de comer a dita cuja da planta. Entre gemidinhos de satisfação ouve-se uma ou outra frase que escapa das bocas sempre cheias. As muitas perguntas são respondidas com paciência. A partir daí, vem o repeteco, a votação do petisco preferido e fotos, muitas fotos. Na degustação Dulce oferece tempura, batatinha, rabanada, geleia, picles e quiche. Tudo feito com vitória-régia. “Mas isso não é banana?”, “parece bolinho de arroz”, “é muito melhor que bolinho de arroz”, “como você descobriu que podia comer?”. E assim a conversa entre anfitriã e visitantes vai criando vida própria.
Dulce é nascida em Capitão Poço, nordeste do estado, e conta que sempre amou plantas e animais. Até poder realizar o sonho de ter o próprio jardim sofreu um bocado. Seus pais se separaram quando ela tinha 6 meses. Foi criada pela avó materna longe dos cinco irmãos e dos pais. O #Colabora perguntou como foi a sua infância. “Nossa senhora, agora nós vamos pegar pesado que a minha infância não foi boa não, não foi não. Minha avó era muito, muito, muito pobre”. Ela lembra a recomendação da avó para que na escola não fosse ao banheiro na frente das colegas, mistério que a menina só foi desvendar quando adulta. Dona Odina queria evitar que as crianças debochassem das duas únicas calcinhas da neta, furadas e remendadas. “Hoje é o que chamam de bullying, né?”. Viveu com a avó e o avô, Fortunato, até os 12 anos. Por um ano tentou viver com a mãe, mas não se entendia com o padrasto. Saiu de casa e da escola para morar em um quartinho no fundo do quintal de uma família que ela esqueceu (ou quis esquecer) o nome; “eles não foram muito legais comigo”. Viveu assim por dois anos. E como você se sustentava? “Nossa, eu fazia de tudo. Eu roçava, eu capinava, eu varria quintal, eu cuidava de criança, tudo que você possa imaginar.” A maternidade chegou aos 18 anos. Quando o filho tinha 4 meses o casal se separou, o pai levou a criança e depois deu o bebê para uma família conhecida cuidar. Jairo agora tem 30 anos, vive em Capitão Poço, e é pai de um menino de 2 anos. “Meu filho tem duas mães”, ela sorri emocionada.
Nativa da bacia amazônica, a planta aquática é conhecida entre os povos indígenas por Uapé, Iapucacaa, Nampé, Irupé ou Jaçanã, mesmo nome do pássaro que acasala e coloca os ovos sobre as folhas que podem chegar a dois metros e meio de diâmetro. O nome não indígena foi dado por um pesquisador inglês que levou sementes para cultivar nos jardins do palácio real, em Londres, no século XIX. Vitória, portanto, é uma homenagem a uma rainha britânica. “A vitória régia é a rainha e eu sou a porta-voz. Eu tenho que fazer juz ao nome dela”, reverencia a súdita Dulce. Uma folha de Victoria amazonica pode suportar até quarenta e cinco quilos se forem bem distribuídos pela superfície. Um sofisticado sistema de drenagem permite que a folha flutue mesmo durante chuvas fortes. A floração vai do início de março até julho. A flor branca abre apenas à noite e desta forma dura quarenta e oito horas. Depois, essa mesma flor se torna rosa e está pronta para a polinização. De abril a setembro Dulce acrescenta um prato na degustação, a pipoca de sementes de vitória-régia.
Após a separação, Dulce foi para Belém morar com seu pai, a esta altura com nova esposa e filhos. A tentativa durou 6 meses. Mudou-se para um quartinho e fez de tudo para se manter. “Via a frente da casa das pessoas suja eu batia e perguntava se podia limpar. Eu ganhava um cruzeiro, dois. Como eu fazia de tudo, se você chegava com a unha suja eu perguntava se eu podia limpar. Eu não sabia nada, nada. Não sabia nada, mas tentava. Depois eu trabalhei de babá. Já com 24 anos eu conheci uma família que me trouxe para Santarém para cuidar do pai que era doente”. Dulce deu seu jeito de concluir o ensino médio e de fazer cursos profissionalizantes. “Até que o senhor que eu cuidava morreu e eu comecei tudo novamente”. Você ficou sem casa? “Eles não precisavam mais de mim e a indenização foi zero, praticamente, eu não tinha carteira assinada”. Você pensou em entrar na justiça? “Não. Falta de orientação, digamos, ou talvez para evitar confusão, né, com gente rica porque a gente se acovarda bastante diante disso. Só que eu também não podia voltar para minha terra do jeito que eu estava, sem nada. Se era para começar do zero, tudo de novo, eu começava aqui mesmo”. A antiga vizinha e amiga, Soledade Vidal, conta que Dulce passava um aperto danado quando arranjou um carrinho de ambulante e passou a fazer jornada dupla. “Ela saía às 3 da manhã empurrando aquele carrinho pela rua para vender café, tapioquinha e bolo na beira do cais. Na parte da tarde vendia churrasquinho na frente de casa. Quando estava muito cansada ela costumava me dizer que um dia seria muito famosa. E quando o aluguel estava atrasado ela vendia o pouco que tinha para pagar”. O carrinho está guardado em Santarém até hoje como recordação desses tempos difíceis. Até que apareceu uma prova para cozinheira da Marinha Mercante. “Eu estava tão desacreditada em mim que eu nem fui conferir o resultado da prova.” Foi na navegação que Evandro e Dulce se conheceram há onze anos. Ele deixou a marinha mercante antes da mulher e se ocupou da construção da casa.
Aval científico
Em 2014 plantaram as primeiras mudas de plantas nativas trazidas do lago do sogro. “Eram dez mudas. No dia seguinte só tinha três porque os bichos tinham comido o resto”. O jardim tem hoje cento e trinta e uma plantas adultas e oitenta e nove no berçário. As bebezinhas serão transferidas para o lago principal no verão, que vai de julho a dezembro. Dulce ama tanto suas “meninas” que vai às lágrimas ao falar delas, “para mim são como filhas”. Criou petiscos e experimentou receitas. Quando algum turista pergunta: “mas pode mesmo comer?” ela responde de um jeito engraçado “eu comi e estou aqui, não morri”, a gargalhada é geral. Lutou para que a planta fosse reconhecida como comestível. “Em 2015 e 2016 eu andava com vitória-régia na bolsa pra cima e pra baixo mostrando pra todo mundo.” Mulher inteligente, Dulce sabia que precisava do respaldo da ciência e, em 2016, procurou a Universidade Federal do Oeste do Pará, a UFOPA. “Quando eu recebi as amostras que a Dulce deixou, um tempo depois, já estavam estragadas. E eu nem sabia direito do que se tratava”, conta a doutora em ciências biológicas e professora da UFOPA, Rosa Mourão. O encontro das duas cientistas (cada uma no seu quadrado) só aconteceu ano passado, durante um evento de gastronomia em Alter do Chão. A professora assistiu uma apresentação de Dulce e não a relacionou com a mulher que a procurou na universidade porque aquela era a Dulcecléia. Terminada a apresentação do prato, a professora foi se apresentar à palestrante e propor uma parceria. Foi quando Dulce/Dulcecléia disse que esperava há 3 anos pelo encontro. Um mês depois, a professora Rosa, e mais duas pessoas de uma microempresa que vende produtos regionais, visitaram a casa de Dulce, no Jari, e ali, finalmente, nasceu a parceria. “Fechamos uma parceria tanto científica quanto comercial” lembra a Rosa. Dulce queria que a universidade pesquisasse a planta e fornecesse dados científicos para que as pessoas confiassem. “Ela queria que fosse feita a composição centesimal para saber a quantidade de proteínas, carboidratos, lipídios”, lembra a professora. Assim nasceu a conserva de vitória-régia, feita com o pecíolo, uma espécie de caule que fica submerso. No rótulo, um desenho do rosto de Dulce. As pesquisas são realizadas no Laboratório de Bioprospecção e Biologia Experimental, do Instituto de Saúde Coletiva. “Nós levamos um ano para pesquisar o pecíolo. Na ciência os resultados nem sempre saem da noite para o dia. Agora vamos começar a pesquisar a folha”, conta a professora que se rasga em elogios à parceira: “ela é uma pessoa fantástica, muito antenada, de uma energia boa, é a parceria que eu mais gostei até agora, não só pelo conhecimento que ela passa pra gente como pela energia que a Dulce tem”. Thiago Souza, empresário da área de turismo fez a degustação com a mulher, a veterinária Tatiana Escobar e o filho Lucas, de um ano e meio. Todos aprovaram a degustação, “é um diferencial”, diz Thiago, “é a cereja do bolo, a Dulce é muito criativa”, completa Tatiana.
O último grupo de turistas vai embora e Dulce finalmente se senta no melhor lugar da casa, na sombra das árvores do deque. Ela chora sentida quando lembra como é tratada em alguns eventos que participou depois que a fama de suas “filhas” começou a se espalhar. Recebeu convites para viajar para eventos privados sem receber nada, já viu suas “rainhas” serem apresentadas por chefs enquanto ela ficava de lado. “Meu Deus, quando será que vão acreditar que eu sou inteligente?”
A repórter pergunta, e quando você senta aqui e olha o seu jardim? “Ah, tem preço para pagar um negócio desse? Não tem, mulher! Ainda tem complemento, um varal de andorinhas, de vez em quando um jacaré em cima das folhas…Não tem preço não, mulher, valeu a pena ter passado por tudo que eu passei, valeu”.
Dicas para quem for visitar o jardim da Dulce
Obedeça às recomendações de não entrar com lanchas no meio das plantas. Apesar de fortes são sensíveis e a busca pelo melhor ângulo para a selfie pode estragar uma planta. Leve o seu lixo de volta. Dulce conta que alguns turistas menos atentos deixam embalagens de plástico e alumínio. Não há coleta de lixo no canal, o que a obriga a juntar o lixo deixado e levá-lo de barco até Santarém para descartá-lo. A empolgação dos visitantes é grande e, às vezes, alguns vão embora e esquecem de pagar a degustação. Atenção aí para ajudar a economia a girar. Para quem ainda não pode tirar férias para desfrutar de Alter do Chão e das vitórias-régias do jardim da Dulce, em junho ela participará de uma feira no Anhembi, em São Paulo. Serão apenas cento e cinquenta degustações. Vale a pena entrar na fila.
Dulce no Instagram @dulce_jardimvitoriaregia