Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19

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Compartilhado de Projeto Colabora – 

Uma parceria entre cinco mídias independentes, que monitoram os casos durante o isolamento social, aponta que 195 mulheres foram mortas por crime de feminicídio em dois meses, segundo dados dos estados

Um levantamento inédito sobre a violência doméstica entre os meses de março e abril deste ano, durante a pandemia do novo coronavírus, apontou que os casos de feminicídio no País aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019. Somente nos dois meses, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes. Entre os 20 estados brasileiros que liberaram dados das secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de 54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo índice.




Nos 20 estados analisados, a média observada foi de 0,21 feminícidios por 100 mil mulheres. A taxa ficou acima da média em 11 estados, os quais detêm 40% da população feminina do total analisado e foram responsáveis por 59% das mortes (115 feminícidios).

O levantamento faz parte do monitoramento quadrimestral da série de reportagens Um vírus e duas guerras“, que será publicada ao longo de 2020, e é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Portal Catarinas, em Santa Catarina; e Ponte Jornalismo, em São Paulo.

A série monitora os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia, com objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil.

“A violência doméstica não diminuiu, ela está mais privada do que nunca. A mulher que vive com um agressor já vivia isolada, agora ela está praticamente em cárcere privado”, declara Conceição de Andrade, superintendente geral do Instituto Maria da Penha.

Infográfico: Fernando Alvarus

Falta de transparência e subnotificações

Especialistas advertem para a frequência da subnotificação neste período em que há dificuldades para se comunicar, acessar os canais de denúncia e até mesmo para chegar fisicamente até eles. Como afirmam as fontes entrevistadas, esses registros são fundamentais para romper o ciclo da violência e, consequentemente, a contenção da violência final, o feminicídio.

O aumento de 41% no número de feminicídios em São Paulo, por exemplo, se defronta com a redução de registros de 22% e 33% nos crimes de lesão corporal e ameaça, respectivamente. O crescimento de 431% nos relatos no Twitter de brigas de casal com indícios de violência doméstica, segundo relatório, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em abril deste ano, é outro fator que aponta a subnotificação dos casos.

O governo do Amazonas, que recebeu em 25 de maio o pedido de informações da reportagem sobre os casos de feminicídios, primeiro comunicou que não registrou mortes de mulheres de janeiro a abril deste ano. Mas a estatística enviada pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) registrou oito feminicídios no quadrimestre, somente em Manaus. A reportagem questionou os dados e a SSP voltou atrás, dizendo que eram informações de “casos suspeitos de feminicídio”, isto é, ainda em investigação pela Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS). Procurada, a delegacia informou, na terça-feira (16 de junho), que registrou quatro casos de feminicídios em 2020, sendo dois no mês de março, quando iniciou o isolamento social da pandemia do novo coronavírus.

A falta de transparência nas informações gera uma subnotificação dos casos de feminicídio no Estado do Amazonas como um todo. “É (o Amazonas) uma história de lacunas. Isso ajuda a gente a entender a dificuldade de mapear os dados no momento da pandemia. Mas não é uma situação que surge da pandemia; isso é uma situação de invisibilidade e negligência contra as mulheres, que sofrem violência, e que se arrasta por muito tempo”, afirma a professora e antropóloga Flávia Melo, criadora do Observatório da Violência de Gênero da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Relatos da violência no confinamento

Para além dos números que possibilitam analisar a dimensão dos crimes de ódio à condição da mulher no ambiente doméstico, a série traz relatos de mulheres que se viram enclausuradas com companheiros que usam da força para submetê-las à condição de cárcere privado e tortura durante a pandemia do novo coronavírus.

Para ter acesso aos relatos de violência doméstica, as cinco mídias envolvidas na série lançaram um pequeno formulário com questionário fechado. Ao final, a mulher pode deixar seu número de Whatsapp para que alguma jornalista entre em contato. Em todo o processo, o anonimato é mantido para a proteção das vidas das mulheres. O formulário ficará ativo até dezembro de 2020.

Algumas das mulheres contaram pela primeira vez o que ocorreu em seus lares que, longe de trazerem tranquilidade, são lugares em que a violência de gênero se manifesta de maneira ainda mais desproporcional. Os relatos estão nas reportagens das cinco regiões do País.

Angela*, 31, moradora de São Luís, no Maranhão, decidiu dar um basta à violência doméstica. Mesmo já tendo feito uma denúncia em uma delegacia perto de sua casa, as agressões não cessavam. E então ela decidiu, correndo todos os riscos, pedir proteção em meio ao isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Encontrou a proteção na Casa da Mulher Brasileira, uma instituição que existe desde 2017 na capital maranhense.

“Toda vez meu marido chegava em casa me agredindo. Isso acontece já de muito tempo, e era sempre na frente dos meus filhos”, afirmou Angela. Na Casa da Mulher Brasileira, ela fez um relato das agressões. “E aquilo ali tudo já foi me coisando e eu não aguentei mais, e resolvi pedir ajuda aqui. Isso já faz tempo, tempo demais. A agressão dele é mais quando ele bebe. Quando ele tá bonzinho, não fala essas coisas, só mas quando está alcoolizado com a bebida”.

Foto: Felipe Carneiro / Portal Catarinas

Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a existência da pandemia do novo coronavírus (SARS-Cov-2) no mundo. O vírus letal desenvolve a doença infecciosa Covid-19, que foi identificada por cientistas na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. Como não existe uma vacina ou remédio que cure a doença e, para evitar o colapso nos hospitais, a OMS sugeriu a quarentena e isolamento social da população no período da incidência da pandemia.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado em 28 de fevereiro. Até esta quarta-feira (17 de junho) foram notificados 955.377 casos confirmados da doença e 46.510 mil mortes por Covid-19.

A OMS alertou sobre o aumento da violência doméstica na pandemia da Covid-19. A Itália, por exemplo, que iniciou o isolamento social mais cedo do que o Brasil, registrou um aumento de 161,71% nas denúncias telefônicas entre os dias 1º e 18 de abril, de acordo com o Ministério da Família e da Igualdade de Oportunidades. Na Argentina, o canal de denúncias ‘Linha 144’ teve um aumento de 39% na segunda quinzena de março.

“As agressões ficaram ainda mais violentas durante o período de isolamento social, mas muitas, assim como vem ocorrendo no Brasil, estão com medo de denunciar e perder a guarda dos filhos, por serem imigrantes”, ex-modelo Luiza Brunet, que nos últimos quatro anos, desde que denunciou o então marido, o empresário Lírio Parisotto, assumiu o papel de embaixadora da luta contra a violência às mulheres do Instituto Avon. A agressão ocorreu em 2016.

No Brasil, o número de denúncias feitas ao Ligue 180 aumentou 34% entre março e abril deste ano em relação a 2019, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ao comparar apenas o mês de abril, o crescimento é de 36% entre os dois anos.

Baixo orçamento

Desde 2015, os programas de proteção à mulher vêm sofrendo um desmonte. O orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi reduzido de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo. Entre esses anos, os pagamentos para atendimento às mulheres em situação de violência diminuíram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil.

Um levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em abril deste ano revelou que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos gastou somente 0,13% dos R$ 400 milhões disponíveis no orçamento inicial.

“Nos países mais ricos, como Alemanha e Austrália, apesar da pandemia e do isolamento, as mulheres conseguiram acessar os serviços e as denúncias aumentaram. Nos países mais pobres, onde os serviços não estão funcionando adequadamente, as mulheres não conseguem acessá-los e os feminicídios crescem. O Brasil se enquadra nesses países onde as mulheres não denunciam e acabam passando por uma situação de violência muito forte. Elas morrem sem terem feito um registro de ocorrência, sem terem uma medida protetiva”, analisa Télia Negrão, conselheira diretora da Rede Feminista de Saúde e da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).

Metodologia de monitoramento da série

O monitoramento da série “Um vírus e duas guerras” foi realizado a partir de dados de feminicídios e violência doméstica solicitados às secretarias de segurança pública dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Cada iniciativa de mídia independente ficou responsável por uma região do país. Amazônia Real pelas regiões Norte e Centro-Oeste, Agência Eco Nordeste pela região homônima ao nome da mídia, Portal Catarinas pelo Sul, e #Colabora e Ponte Jornalismo pela região Sudeste.

O monitoramento levantou os dados parciais sobre violência doméstica nos estados, mas em algumas regiões os números fornecidos foram incompletos para fazer cruzamento no quadrimestre 2019/2020. Entre os que não enviaram informações precisas sobre feminicídio entre janeiro a abril de 2020 estão Amapá, Goiânia, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Paraná, Rondônia e o Distrito Federal.

Além disso, cada estado tem uma forma diferente de classificar os crimes compreendidos como violência doméstica, tipificados pela Lei Maria da Penha. Em alguns deles, nem mesmo há separação entre violência doméstica geral e violência doméstica contra as mulheres, como é o caso do Paraná. Este Estado também não entrou no mapa do monitoramento por não ter disponibilizado os números de feminicídio do mês de abril, demonstrando falta de transparência e, até mesmo, sonegação dos dados.

Em Santa Catarina, enquanto o feminicídio é tratado com atenção pelas autoridades que divulgam os números atualizados em relatório semanais, não é possível fazer uma série histórica dos casos de violência doméstica, ou mesmo um comparativo com o ano anterior. Isso porque, segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública, houve uma reformulação do sistema que integrou os registros das polícias civil e militar e o que impossibilitaria a divulgação dos dados anteriores para comparativo.

“Em termos de coordenadoria em violências domésticas há uma dificuldade enorme. Estamos tentando estabelecer um observatório das mulheres inclusive com a Assembleia Legislativa há cinco anos e ninguém topou. O Tribunal de Justiça do Estado se baseia apenas nos dados da corregedoria (só processos) então, não é geral”, relatou sobre a questão a desembargadora e titular da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid)/SC, Salete Sommariva.

Acre lidera taxa de quatro meses

O monitoramento da série “Um vírus e duas guerras” também analisou os dados do primeiro quadrimestre de 2020 comparado a igual período de 2019. O Estado do Pará registrou um número três vezes maior de feminicídios neste período em comparação ao ano anterior. No Acre essa ocorrência quase dobrou. O Rio Grande do Sul teve um acréscimo de 70% e São Paulo de 29%. Já o Mato Grosso teve uma alta de mais de 40% nos casos de feminicídio. O Estado do Acre lidera os números de feminicídios no quadrimestre, com uma taxa de 1,32 casos por grupo de 100 mil mulheres, seguido por Mato Grosso 1,26; Sergipe 0,67; Rio Grande do Sul 0,62; e Pará 0,59.

Infográfico: Fernando Alvarus / #Colabora

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