Publicado em Socialista Morena –
Quando a francesa Chantal Montellier começou a se dedicar profissionalmente às histórias em quadrinhos, lá pelos idos de 1972, foi como se colocasse os pés na porta de um dos últimos “clubes do Bolinha” do mundo da arte. Entre as raras exceções naquele ambiente predominantemente masculino estava sua contemporânea Claire Bretécher, que desenhava, na revista de quadrinhos Pilote e na semanal Le Nouvel Observateur uma personagem com o nada lisonjeiro nome de Cellulite, “essencialmente preocupada por seus quilos a mais”, espeta Chantal, autora de uma versão de O Processo, de Franz Kafka, em HQ (Veneta).
“O aparecimento de meus quadrinhos distópicos e com engajamento político teve o efeito de uma bomba. Muitos se sentiram incomodados com minha existência e com o que eu produzia. Algumas reações foram violentas e sofri muitos ataques, para não falar do ostracismo. O mundo das histórias em quadrinhos não é apenas um ambiente machista e sexista, é também muito reacionário”, detona.
O feminismo sem papas na língua de Chantal faria dela, ao longo dos anos, persona non grata em alguns festivais de quadrinhos da França. Não à toa, a quadrinista de 68 anos esteve à frente do protesto contra o Festival de Angouléme, em janeiro deste ano. Os organizadores do festival, um dos mais importantes do mundo, foram acusados de machismo por fazer uma lista de 30 indicados ao Grand Prix sem absolutamente nenhuma mulher. Em 43 edições, aliás, somente uma ganhou o prêmio: a francesa Florence Cestac, em 2000.
Chantal chama Angouléme de Angoul’men. “É lamentável que o festival esteja com séculos de atraso e nas mãos de pessoas que, movidas por interesses sórdidos, impedem que cresça e se torne verdadeiramente inclusivo”, diz. Esta semana, a desenhista comemorou uma vitória. O ministério da Cultura francês anunciou que irá promover uma reforma “de envergadura” na direção do festival. Primeira medida em relação ao Grand Prix: a adoção de paridade homens/mulheres tanto na comissão de seleção quanto no júri.
Nos últimos anos, as histórias em quadrinhos, que andaram em baixa após o boom dos anos 1980, voltaram a ganhar espaço no mercado editorial e as mulheres vieram com uma força inédita. Algumas se tornaram bestsellers, como a série autobiográfica da franco-iraniana Marjane Satrapi, Persépolis, que ganhou versão para o cinema em 2007, vencedor do prêmio do júri no festival de Cannes daquele ano.
Fun Home, da norte-americana Alison Bechdel, foi adaptada para um musical da Broadway ganhador de cinco prêmios Tony, inclusive o de Melhor Musical, no ano passado. A quadrinista dá nome ao “teste de Bechdel”, para catalogar filmes não-sexistas: se tem duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não seja homem, passa. Boa parte das obras de Hollywood falhou no teste.
Muitas destas autoras estrangeiras podem ser lidas em português. A editora Nemo, por exemplo, tem trazido algumas boas novidades, como a norte-americana Julia Wertz (Entre Umas e Outras), as francesas Pénélope Bagieu (Uma Morte Horrível) e Margaux Motin (Placas Tectônicas) e a equatoriana radicada na Colômbia Power Paola (Vírus Tropical).
Cada uma com seu jeito de desenhar e de narrar. Julia se preocupa menos com o traço e mais com a história. Seu delicioso humor autodepreciativo lembra Peter Bagge (Ódio) e de fato ela diz ter bastante influência do criador de Buddy Bradley, que inclusive escreveu o prefácio da série com a qual estourou, The Fart Party Volume I (traduzindo: A Festa do Peido!!!).
Pénélope parece docinha, mas é aparência: a protagonista Zoé, com seus olhos enormes de cervo desprotegido e jeitinho de Amélie Poulain, engana. Mas o final é surpreendente.
Vírus Tropical, de Power Paola, traz toda a carga dramática da latinidade numa história de mulheres, mãe, irmãs, filhas. Um bildungsroman (romance de formação) feminino, em quadrinhos.
Margaux Motin é a mais girlie das quatro, mas também muito engraçada.
Delas, só Pénélope escolheu a ficção. As outras três quadrinistas, como muitas das mulheres que publicaram HQs recentemente, têm em comum uma narrativa mais autobiográfica do que ficcional, ao contrário do que se vê nos machíssimos gibis de super-heróis. O que me provocou a vontade de fazer a mesma pergunta a todas as mulheres quadrinistas com quem eu conversei: afinal, existe um jeito “feminino” de fazer quadrinhos e um jeito “masculino”?
“Mulheres e homens não possuem o mesmo sexo nem o mesmo lugar na sociedade nem a mesma história nem as mesmas possibilidades de se realizar, então não podem ter o mesmo imaginário”, diz Chantal. “Parece que as mulheres criadoras preferem quadrinhos de não-ficção, mas isto está mudando, com a aparição de mais quadrinhos de ficção feitos por elas. Eu acho que a maioria das mulheres simplesmente não se identifica com os quadrinhos de superheróis, mas todos os outros gêneros lhes interessam. E isto irá continuar a se expandir à medida que mais tipos de quadrinhos aparecerem, então não isso não será assunto a ser questionado”, opina Julia Wertz.
“Isso da ‘narrativa feminina ser mais autobiográfica’ é a maior falácia que eu escuto, e escuto mais vezes do que eu gostaria”, dispara a cearense Sirlanney Nogueira, criadora da página Magra de Ruim, com mais de 170 mil seguidores no facebook. “Quem fala isso deve desconhecer toda a obra do Henry Miller, do Bukowski, do Jonh Fante e toda a literatura beatnik, só para citar alguns. Mas se você divide o mundo na concepção binária ‘masculino vs. feminino’, temos algo para falar sobre o delicado, as cores, os temas mais comuns do ‘universo feminino’ que estão ausentes no que comumente chamamos de ‘universo masculino’. Se for assim, Alphonse Mucha é uma mulher! Com todas aquelas flores… E não só ele como também a Art Nouveau inteira seria feminina… O que eu quero dizer é que esses conceitos que geralmente colocam a ‘literatura feminina’, ou ‘quadrinhos femininos’ como um subgênero, são muito equivocados.”
Power Paola: “Creio que cada vez há menos diferença. Conheço muitos homens desenhistas que poderiam dizer que seu desenho é feminino e que utilizam temas autobiográficos ou pessoais. Eu já não vejo muitas diferenças, sobretudo nos quadrinhos que leio”.
Outro assunto que tampouco gera unanimidade entre as mulheres quadrinistas é o incômodo de algumas feministas com o traço “objetificador” de gênios dos quadrinhos do sexo masculino, como o italiano Milo Manara, alvo de protestos em 2014 por desenhar uma Mulher Aranha com um bumbum “excessivamente” voluptuoso –Manara, no entanto, foi um dos primeiros a se levantar contra a exclusão de mulheres quadrinistas em Angouléme, e pediu para que seu nome fosse excluído da lista de indicados ao Grand Prix. Haveria certo exagero nas críticas aos desenhistas homens e a forma como sensualizam as figuras femininas em sua obra?
“Com certeza isso existe, mas eu não ligo, me parece um sinal da imaturidade deles e eu brinco a respeito. Também não acredito em ficar patrulhando cada pequena coisa em termos de politicamente correto”, diz Julia. “Pode ser que muitos homens desenhem as mulheres enfatizando seu corpo, mas para mim não é esse o problema e sim quando os personagens femininos caem em estereótipos e clichês de como as mulheres somos, e isso eu vejo tanto em desenhistas mulheres como em homens”, opina Power Paola.
“Quando li a declaração do Manara, eu ri pra não chorar”, rebate a gaúcha Fabiane Langona, autora da Chiquinha. “Qualquer um que não seja cego pode claramente perceber. Existem diversas formas de enfatizar o corpo feminino. Uma é colocando a mulher numa posição apenas objetificada (algo que pessoalmente chamo/generalizo como quadrinhos para fins masturbatórios) e outra é tratando o mesmo com uma suave realidade: pelos, gorduras, sangue. Essa é a ênfase que procuro dar. A ênfase em um feminino sem esse véu de divindade e perfeição. O feminino que eu enxergo. Claro, com suas belezas, mas com sua escrotidão. Proporcionais.”
Sirlanney concorda. “É notória a desumanização da mulher nas HQs da grande indústria. Elas são o tempo todo representadas como presas sexuais. Essa objetificação e julgamento a partir da aparência pretendem tirar nossa complexidade e valores como seres humanos, para prevalecer o poder do homem sobre nossos corpos”, diz. “Os caras reclamam e dizem que é exagero e que também tem os corpos idealizados pelos quadrinhos de super heróis. Mas a verdade é que se você pegar o Manara, por exemplo, o homem está livre de qualquer idealização física, enquanto ele perpetua a humilhação da mulher e o abuso físico como uma arte erotizada.”
Fabiane torce o nariz até mesmo para a própria “ausência” da mulher na história da história em quadrinhos. “Não acho que as mulheres ‘demoraram’ para fazer quadrinhos e me entristece demais esta visão. As mulheres realmente demoraram para fazer quadrinhos ou historicamente foram mantidas anônimas e isoladas como parte de um padrão sociocultural onde a arte produzida por homens sempre obteve maior visibilidade e respeito?”, questiona.
Ela exemplifica com o fato de, durante a primeira metade do século 20, grande parte das autoras de histórias em quadrinhos usarem pseudônimos masculinos ou andróginos para evitar a rejeição aos seus trabalhos e alavancarem as vendas. “June Mills, criadora da Miss Fury, assinava com uma versão de seu nome do meio, Tarpé, isso em 1941. Marjorie Buell, criadora da extremamente popular Little Lulu(Luluzinha entre nós), assinava como Marge. Só fui descobrir, com alegria extrema, que tratava-se de uma moça autora depois de adulta”, diz Fabiane. Quem diria, a criadora do “clube do Bolinha” era mulher!
Outra boa lembrança de Chiquinha é Nair de Tefé (1886-1981), primeira cartunista brasileira e considerada uma das pioneiras em todo o mundo, que usava um pseudônimo ambíguo: seu nome ao contrário, Rian. Muita gente pensava que era um homem… “Ainda com foco no Brasil, posso citar a grande artista-musa-heroína-modernista Pagú, que em 1931 já havia se arriscado no universo dos quadrinhos. Sua personagem, chamada Kbelluda (o nome em si já é maravilhoso!), trazia acidez e humor também focado na política da época.”
Seja como for, é inegável que as mulheres quadrinistas vêm ganhando cada vez mais visibilidade, o que se traduz também em espaços específicos para elas, como o site Lady’s Comics, mantido por três amigas fãs de quadrinhos justamente para divulgar a produção feminina, tanto nova quanto antiga. “No ano passado lançamos o primeiro volume da revista RISCA! para resgatar e reafirmar a multiplicidade de traços, mulheres, lutas políticas e produções de autoras da década de 1960, registrando essas autoras em impresso para fixar na memória das pessoas que quadrinho não é apenas para o público masculino, hetero e branco ou apenas infantil. É para todos”, diz Samanta Coan, uma das criadoras do site, que hoje funciona como coletivo. A internet tem sido uma aliada preciosa: muitas meninas publicam suas HQs primeiro online e depois migram para o papel.
As garotas do Lady’s Comics produziram um pequeno documentário bem bacaninha com esta nova cena de mulheres quadrinistas no Brasil no FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos), em Belo Horizonte, em 2015. São dezenas de novas autoras, impressionante.
Perguntei à Mariamma Fonseca, do Lady’s Comics, se ela acha que o universo das histórias em quadrinhos é machista. “O mundo é. Não seria diferente nas HQs.”
Mas está mudando.