Música sacra afro-brasileira enfrenta resistência de alunos evangélicos na Escola de Música da UFRJ

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Por Leonardo Lichote, do O Globo , publicado no Portal Geledes – 

Professores contam que polêmica inclui obras de compositores como Villa-Lobos e Francisco Mignone

A professora Andrea Adour com alunos na Escola Nacional de Música Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

Andrea Adour, professora de Canto da Escola de Música da UFRJ, propõe o estudo das “Toadas de Xangô” de Guerra Peixe para sua turma. Um aluno, evangélico, reage:

— E se eu receber alguma entidade?




Andrea explica que a universidade não é um espaço de rito, de prática religiosa, e que aquela música entra ali como arte, vista de uma perspectiva laica, de conhecimento. O aluno entende e aceita cantar a peça — e outras de caráter sacro de matriz afrobrasileira apresentadas ao longo do curso.

Conflitos do tipo têm sido comuns ali — nem sempre, porém, com a mesma contemporização. Professores e alunos da Escola de Música contam que o estudo do repertório sacro hoje enfrenta esse desafio — há alunos que se manifestam e marcam resistência na própria sala de aula e outros que simplesmente trancam matrícula em determinadas disciplinas para evitar se deparar com um repertório que seja contra suas convicções religiosas (procurados pela reportagem, nenhum desses estudantes quis ser entrevistado).

— É comum alunos de formação religiosa mais fechada questionarem, se recusarem a cantar, quando apresentamos alguma obra que usa termos de origem afro, referindo-se a entidades como Oxalá, Oxum — conta Valéria Matos, professora de Regência Coral da UFRJ.

O estudante Paulo Maria, 19 anos, negro e evangélico, identifica racismo na reação à música sacra de temática afrobrasileira: ‘Quando canto peças que se referem a religiões afrobrasileiras, canto como artista. Mas essa situação faz parte da História brasileira. O negro foi feito escravo, a cultura afro foi jogada de lado pelos europeus’ Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

A relação de músicas que provocam reações passa por obras de compositores como Francisco Mignone e Villa-Lobos.

— Tivemos polêmica com “Cânticos de Obaluayê”, de Francisco Mignone, “Abalogun”, de Waldemar Henrique, “Xangô”, de Villa- Lobos. E até com músicas que não falam de orixás, mas que têm palavras como “macumba”, como é o caso de “Estrela é lua nova”, de Villa-Lobos — lista Andrea, que coordena o Africanias, grupo de pesquisa de repertório brasileiro, com ênfase nas influências negra e indígena.

A questão vem se afirmando de maneira tão clara que o II Congresso Internacional de Música Sacra — organizado pela UFRJ e realizado em julho, com Valéria como coordenadora geral — teve como tema exatamente “A universidade e as religiões em diálogo”.

— Diante da situação do Brasil hoje, quando a tolerância religiosa passa por momentos críticos, faz parte do papel da universidade educar para que essa tolerância se torne mais efetiva. O congresso teve esse objetivo. Trouxemos de vários lugares do Brasil professores que fazem pesquisas que mostram a importância dada à academia à música sacra em todas as direções: católica, protestantes, afrobrasileira, judaica, indígena… — explica Valéria, que dirige o Sacravox, projeto de extensão dedicado à música sacra brasileira.

O fenômeno de resistência a certo repertório sacro da Escola de Música é recente. Num momento em que o saber acadêmico é questionado por teorias que prescindem de qualquer base científica — o terraplanismo é apenas o exemplo mais evidente — é compreensível que isso se reflita ali. Valéria identiica outra razão:

— Devido a políticas de inclusão, a universidade ampliou seu número de inscritos, o que trouxe mais diversidade, grupos que antes não estavam no ambiente acadêmico. Isso é maravilhoso, mas obviamente surgem novas questões. O professor tem que entender que o canto lida com o universo sensível do indivíduo, que pode tocar em seu ambiente pessoal, religioso. Mas precisa ter o esclarecimento para explicar que a prática artística e cultural não é a prática religiosa.

Andrea prossegue:

— Não se pode permitir que uma cultura destrua outra, inclusive a cultura neopetencostal deve ser preservada. Não se trata de propagar determinada religião. Inclusive sou católica. Mas quando um aluno opta por um saber apenas, ele se fecha ao conhecimento.

Robson Lemos, estudante de mestrado da Escola de Música, também evangélico, vê a questão de forma semelhante. Ele relata que já presenciarem não só alunos de canto se negarem a executar músicas de temática afrobrasileira, mas também uma pianista da escola. Lemos conta que já ouviu argumentações que mostram “o desejo de subjugar outras culturas”.

— Vi certa vez um aluno se recusar a cantar, a professora indagou por que ele admitia músicas que mencionavam outras religiões, outras mitologias, mas não admitia os orixás. Ele respondeu que só canta repertório de religiões que eles já eliminaram.

Paulo Maria — estudante da Escola de Música, evangélico e integrante do Africanias — identifica o racismo estrutural na base da questão:

— Cantar essas músicas não afeta minha religiosidade. Quando canto peças que se referem a religiões afrobrasileiras, canto como artista. Mas essa situação faz parte da História brasileira. O negro foi feito escravo, a cultura afro foi jogada de lado pelos europeus. Nossa formação histórica é essa.

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