Na corda bamba entrevista mauro castro, um escritor que vive literalmente com o taxímetro ligado

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Quem deu a barbada foi o Paulo Scott numa postagem com direito à foto na sua página do facebook: E eis quem encontro na saída de Garopaba. O escritor, o ser humano, a lenda: Taxitramas.

Por Fabiano Maciel, compartilhado de Na Corda Bamba




Quem é de Porto Alegre e presta atenção na boa literatura sabe. Recomendo com entusiasmo. Recomendação feita, escrevi pro cara, que respondeu na hora, sem embromação. Aproveitem pra ler antes de virar pra bandeira 2. E se alguém quiser ajudar o Na Corda Bamba a pagar esta corrida, é só assinar nos botões vermelhos lá embaixo ou fazer um pix para o email: fabpmaciel@gmail.com Partiu a edição n° 70! Saravá!

FM: É possível dirigir e escrever ao mesmo tempo? Rapaz, já aconteceu de eu elaborar um texto todo dirigindo, pelo microfone do Android. Aliás, 99% do que eu escrevo hoje é no smartphone. A questão da mobilidade pra mim é fundamental, não dá pra esperar chegar em casa pra escrever. Tem que aproveitar o calor da hora, literalmente.

FM: Você escolheu ser taxista ou você virou taxista? Eu era um desenhista mal remunerado, que ganhava menos que os motoristas de táxi que trabalhavam pro meu pai… Dai foi tipo me dá pra cá um táxi que eu vou a luta. Peguei no volante e estou até hoje experimentando. 

você que é taxista explorado, não fique aí parado!

FM: Conta um pouco das suas origens: família, bairro onde morou-mora? Sou herdeiro de uma antiga linhagem de mentirosos, digo, taxistas. Meu pai era chofer de praça. Nasci em Viamão, vim para Porto Alegre aos 14 anos, bairro Partenon, onde vivo até hoje. Trabalho na região do Menino Deus onde fica meu ponto.

FM: Em Porto Alegre, antes da gente virar qualquer coisa, a gente tem que ler e ouvir os gaúchos. Li Érico antes do Drummond, Josué Guimarães antes de Guimarães Rosa e Moacir Scliar antes de Borges. Contigo também foi assim?  A literatura comigo rolou justamente ao contrário. Eu li muito romanção, tipo Morris WestSidney Sheldon, comprado em sebos, lia três, trocava por um e assim por diante. Isso foi até eu conhecer o Caio Fernando Abreu, que era passageiro do meu ponto. Ficamos amigos. Eu era o taxista legal que sempre tinha um livro sobre o painel do táxi. Só então eu descobri a literatura gaúcha, pelas mãos do Caio. Vai vendo.

nenhum best-seller dura para sempre
não sei se o livro é bom, a capa é linda

FM: Eu vivi em Porto Alegre até meus 20 anos. ou seja, de 65 até 85. Uma lembrança que não me sai da memória, são dos táxis fuscas com  grades pra evitar assalto. O curioso é que em 2010, fui à Montevideo e encontrei táxis assim…

Largando uma senhorinha no fundo da Maria Degolada, desci o que pude na vila, pra ela não se molhar muito. Um dilúvio desabando, o dia virou noite, um horror. A tiazinha pagou a corrida e sumiu na escuridão da quebrada. Eu manobrando o táxi, só pensando em sair dali, a chuvarada transbordando os arroios, os postes tortos ameaçando cair com o vento, granizo, zona de alta periculosidade… Foi quando surgiu de um beco um magrão fazendo sinal pra mim. Meio encolhido, protegendo-se da chuva guasqueada, do vento, um magrão volumoso, esquisito, mal iluminado pelos faróis do táxi. Impossível visualizar direito. Eu ainda meio trancado na ruela da Degolada, não podendo nem acelerar pra fazer de conta que não vi o boneco. Bah, vou ser assaltado, alguma coisa me disse. Ferrou. O magrão mal vestido, bermuda, um pinto de molhado… Destravei a porta. Fazer o que. Assaltado, certo.

Ele embarcou se espanejando, desculpando-se por molhar todo o táxi. Tudo bem. Pediu que o levasse até a Bonja, vila Bom Jesus. Eita, outra zona complicada, ferrou. Juro que fiz as contas dos assaltados. Pelas minhas contas, já mais de 5 anos do último atraque. Nenhum taxista sobrevive tanto tempo sem perder pros vagabundos. Ferrou.

Vamo lá. Limpador de parabrisa no máximo, dobra aqui, cuida os alagamentos, cruza com cuidado. O magrão meio quieto, dei um jeito de puxar assunto. E essa chuva, hein? Aproveitei pra filmar o maluco pelo retrovisor. Se ele vai me assaltar, quero ver bem o 3×4 do cara. Foi aí que eu vi os brincos. Dois brincos. Um em cada orelha! Rapaz, foi nesse exato momento que eu percebi que estava tudo bem. Meu espírito se desarmou. Um cara que usa brinco, dois brincos, é um cara do bem. Tem que ser. E não deu outra.

Engatamos uma conversa. O magrão é colorado doente. Fechou. Torcida organizada. Disse que a irmã dele joga no time feminino do Inter. A guria é promessa. Vai estourar nos profissionais. O cara é encarregado de estoque em um grande supermercado, super gente-boa, descontraiu geral o ambiente no táxi. Até a chuva amainou. Bah, e eu pensando mal do magrão. Tri preconceituoso, é foda. Só porque o cara é pobre, só porque tá na perifa. Preconceito.

Baixamos na Bonja, pros lado do mato Sampaio, desce aqui, entra ali. Tudo meio alagado. Pode descer, não dá nada. Bequinho apertado. Tem espaço pra manobrar lá no fundo? Aqui mora minha irmã, a que joga bola. Ah, tá. Desce mais embaixo. Bah, não tem saída. Só mais um pouco, a chuva recomeçando, o táxi meio que atolando. Tá bom aqui. O magrão foi curto e grosso:

— Não quero nem o teu dinheiro, motora. Fica com esse troco de merda pra continuar trabalhando. Passa só esse teu celular bacana, aí. Preciso dele pra pagar umas dividas. Vou descer, entrar naquele beco e tu vai vazar. De ré. Mas VAZA! Não olha pra trás. Some daqui se não eu te furo, taxista filho da puta! Depois de 5 anos, perdi. Recomeçando a contagem. Estamos trabalhando a zero dias sem ser assaltado.

a capa ilustrada pelo próprio mauro
taxi tramas hq e esse maciel tá devendo uma

FM: Que escritores você gosta de ler?  Tenho lido pouco (confesso). Estou relendo Trilogia Suja de Havana, do Pedro Juan Gutiérrez (é bom não reler um livro que te impactou em um outro momento da tua vida). Gosto muito de um vizinho meu, aqui da Lomba do Pinheiro, o José Faleiro e terminei de ler há pouco o novo do Daniel Galera (que eu adoro) O Deus das Avencas (Barba ensopada de Sangue é um clássico).

FM: Que escritor você gostaria de ser? Luis Fernando Verissimo é o tipo de escritor que eu admiro. Fala pouco e escreve (escrevia) muito. Peguei ele uma vez. Sentou na frente comigo. Dona Lúcia, sua mulher, no banco de trás. Eu mostrando meu livro, tentando interagir. Perguntava alguma coisa e ele monossilábico, dona Lúcia, lá atrás complementando a resposta. Hahaha

FM: Quando você encontra um outro escritor no táxi, vocês conversam sobre literatura? Cara, escritor é o seguinte. Quando embarca um passageiro, eu mostro meu livro, o cara diz: eu também escrevo… fudeu. Esse eu já sei que não compra livro. Escritor não compra livro e o meu negócio é vender, tá ligado? Daí é um tal do cara falar do livro dele e blablabla e já era. Perdi a venda.

veríssimo não falou ao longo do trajeto.

Agora a pouco, um ladrão me ofereceu uma lanterna. De graça. Perguntou se eu não queria ficar pra mim. Recusei. Ele confessou que roubou. Disse que rouba pequenos objetos, frascos de perfume vazios, copos lascados, chaveiros, calendários de anos passados, bibelôs de prateleira… Furta da sua própria casa, rouba da esposa, ela nem percebe de tanta coisa que guarda. Disse que sua mulher é acumuladora compulsiva. Enche gavetas, armários, embaixo da cama, atrás das portas, não bota nada fora. Nada. Assim, não vendo outro jeito, ele passou a roubar as coisas e oferecer a estranhos, doar, dar de presente. Perguntou se eu não queria, mesmo, ficar com a lanterna. Não obrigado.

FM:  Você também ilustrou seu livro. Você é ou foi leitor de quadrinhos? Que quadrinhos te interessavam? Sim, li muito quadrinho, produzi um fanzine quando adolescente inspirado na revista Chiclete com Banana. Los três amigos Angeli, Glauco e Laerte. Tem um projeto do TAXITRAMAS em quadrinhos… Talvez saia.

FM: Você já viu Taxi Driver? Como não enlouquecer no trânsito? Já assisti Taxi Driver sim, recentemente olhei de novo, mas nos filmes onde o táxi está no centro da trama, ainda prefiro Colateral. Já pirei muito o cabeção no trânsito, mas o tempo é o senhor da razão. A loucura me domesticou (não que eu não mande alguém à merda de vez em quando).

FM: Qual a pior corrida que um taxista pode fazer em Porto Alegre? A pior corrida pode ser também a melhor. É a corrida pra bêbado. É o seguinte: bêbado ou não te paga, ou te paga duas, très vezes e continua conversando e quando vai descer do táxi te paga de novo. 

FM: Qual a maior roubada que você já se meteu como taxista? Tirando os quatro assaltos, as roubadas foram muitas. Até proposta para ficar na frente de um motel com uma passageira que achava que seu marido estava lá dentro com uma amante. Mas a pior talvez tenha sido socorrer um folião no carnaval com a perna quebrada, entrar no pronto socorro e começar a discutir com a auxiliar de enfermagem que veio nos receber. Ela me puteando por eu ter colocado o pano de lavar o táxi sobre a fratura exposta do passageiro. Batemos boca e continuamos brigando até hoje (hoje é a nossa filha que assiste ao bate boca). Mais de quarenta anos casado com a baixinha.

FM: Bah! Casou com a auxiliar que tava te puteando! Sim. Contei essa história lá no face.

FM: Qual o pior lugar de Porto Alegre para dirigir? O pior lugar para dirigir em Porto Alegre, sem dúvida, é o Moinhos de Vento, zona nobre da cidade. Lá, quem não tem um carro tem dois. Até os cachorros andam motorizados, um horror. Gente esnobe, sem paciência com carro grande. Na Bonja, Cruzeiro, Campo da Tuca é que meu táxi tá de boa.

FM: Antes eu achava os táxis laranjas horrorosos, depois passei a achar que eles faziam parte da personalidade da cidade. Hoje, acho deprimente eles não serem mais laranja. Rapaz, eu lamentei muito a troca de cor dos táxis de Porto Alegre. Bah, que pena. Uma foto qualquer, mesmo que aérea, a gente sabia que era Porto Alegre, tipo Nova Iorque, Rio de Janeiro, Curitiba, a cor peculiar dos táxis são um charme pra cidade.

táxi na porta do mufuletta em 2010 foto: fabiano maciel
táxis em frente ao Ocidente. 2011 foto: Fabiano Maciel

Tiozinho velha guarda, daqueles que gosta de sentar na frente, ao lado do taxista. Ele embarca com uma bolsa de colostomia pendurada, sacudindo, estufada de xixi. Eu apreensivo, meu carro cheirozinho, aroma citrus no ar. Ajudo a prender o cinto com a ponta dos dedos e começo a rezar. Por sorte, o que eu temia aconteceu só no desembarque. A torneirinha bateu na soleira da porta. O tiozinho entrando no prédio, deixando na calçada, atrás de si, um rastro de mijo.

o táxi agora é branquelejo. foto de luciano bianchetto
táxis fuscas laranjas na borges foto do blog registros automotivos

FM: Nos anos 70 o jornalista Caco Barcellos trabalhou como taxista pra acompanhar a rotina na cidade…você consegue fazer um paralelo entre os anos 70 e hoje? Caco Barcelos como taxista é uma fraude maior que Carpinejar. Não acredite no que ele diz. Nos anos 70 o taxista Mauro Castro ainda não existia. 

FM: Uma pergunta muito importante e inevitável: colorado ou gremista? Colorado não praticante.

taxi cab para taxi cat

FM: A uberização da vida. O que você tem a dizer sobre isto? No começo eu tinha raiva dos motoras uber (com letra minúscula mesmo), hoje em dia tenho pena. Hoje eles estão na base da pirâmide trabalhista – lugar que já foi ocupado pelo taxista. A precarização das relações trabalhistas é a grande tragédia moderna. Começou justamente com o táxi, todos deram de ombros. Agora o bicho tá pegando geral. Salve-se quem puder, mermão! 

foto do paulo scott

Por hoje é isto macacada! Quem estiver em Porto Alegre e precisar de um bonde, quer dizer, de um táxi, o tel. do Mauro é (51)99985.7307 A corda agradece a chegada de Adriana DorfmanClélia Bessa e Guilherme Valiengo, super obrigado. Beijos na carótida e PAZ!

a imagem da capa de hoje é um táxi fusca em porto alegre, nos anos 60, antes de ficarem laranjas.

LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!

morris west e sidney sheldon eram até os anos 70, campeões absolutos de venda. sérgio augusto escrevendo em 94 sobre josé mauro de vasconcelos, inseriu o best-seller no contexto. a fdsp já muito mais bem frequentada…

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/7/24/mais!/15.html

caio fernando abreu é praticamente um mito pra minha geração. a trinca da brasiliense morangos mofadosporcos com asas e folhas das folhas da relva podia ser encontrada em quase todas as prateleiras de meus amigos em 1983.

morangos mofados

josé falero, quem sabe um dia, tope falar aqui pra corda bamba.

https://brasil.elpais.com/cultura/2021-08-09/um-escritor-em-busca-da-formula-magica-da-paz.html

cinema com taxímetro ligado:

meu favorito, jim jarmuschuma noite sobre a terra, roberto benigni, gena rowlands e muito mais:

rico ri à toazé trindade começa a parada recusando uma corrida até o Irajá:

uma música que já rolou numa playlist da corda, taxi grab, com jethro tull:

vanessa paradis vai de taxi:

geraldo azevedo vai de táxi pra estação lunar:

cartum do hubert

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