Compartilhado de Tutaméia –
Para tentar bajular os estrangeiros, o governo Fernando Henrique Cardoso anunciou, no finalzinho de 2000, que a Petrobras iria virar Petrobrax. A mudança foi bombardeada pela oposição e até por governistas no Congresso. A ideia, formatada por uma agência de publicidade sem licitação, era desvincular a empresa de seu caráter estatal e nacional, abrindo caminho para uma privatização –processos que FHC iniciou quando colocou as ações da companhia na Bolsa de Nova York, em 1997.
A manobra acabou sendo engavetada na época. Mas agora, na prática, ela está sendo implementada por Bolsonaro, que realiza o maior desmonte já sofrido pela empresa. Quem constata essa realidade é Guilherme Estrella, geólogo, ex-diretor de exploração e produção da Petrobrás e “pai do pré-sal”, que, com William Nozaki, cientista político e economista, participa de entrevista ao TUTAMÉIA no momento em que a empresa completa 67 anos, no último dia 3 de outubro.
“Estamos vendendo ativos, sendo esquartejados não para o capitalismo produtivo. O que estamos sofrendo é uma privatização ligada à faceta que hoje domina o capitalismo, que é o financeiro. Tudo que estamos enfrentando é produto do governo Fernando Henrique Cardoso, que fez um governo criminoso em relação aos interesses brasileiros, com a abertura da Petrobras na Bolsa de Nova York. Hoje em torno de 60 a 70% dos acionistas são estrangeiros. Isso significa que até 70% dos lucros é dirigido a esses grupos, que são financeiros. Esse governo que está aí e desde o golpe de 2016 é ligado a esses capitalistas. A Petrobras acabou. O nome da Petrobras hoje é Petrobrax. A nossa Petrobras acabou. Está de costas para o Brasil. Não tem mais interesse no Brasil, a não ser tirar muito dinheiro, tirar recursos daqui e exportar recursos. Nós estamos com a Petrobrax, que é a Petrobras que estava lá no governo FHC”, afirma Estrella.
Nessa conversa (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), Estrella e Nozaki descrevem a lógica financeira que hoje norteia a atuação da empresa sob Bolsonaro.
“Se vende os ativos da Petrobras e se fica com um filé mignon –o pré-sal, com poços que produzem 30 mil barris por dia e têm o mercado do Rio e São Paulo em frente, 300 km. O restante da Petrobras não existe mais. Por que vamos manter urucu ou os campos terrestres da Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Espírito Santo ou outras refinarias? Esses são ativos industriais, enquanto o ativo da Bacia de Campos e as refinarias do sudeste brasileiro são ativos financeiros, porque produzem muito lucro em tempo muito pequeno e sem risco, com um custo de manutenção muito baixos”, aponta Estrella.
Segundo ele, “a empresa hoje não é industrial, é uma empresa de investimentos financeiros. Isso foi interrompido em 2003 [com o governo Lula] e foi retomado agora na forma de arrasar. A empresa é um fundo de investimento no setor petrolífero transnacional com os campos do pré-sal, alguma coisa em águas profundas da Bacia de Campos. Mas o restante está sendo vendido como sucata! Uma refinaria dessas, digamos, por hipótese, é vendida por 500 milhões de dólares. Eu pego esse dinheiro, é meu lucro e distribuo. Entra pro meu bolso agora, hoje. Macaé como sucata entra hoje no meu bolso. E estão transformando o trabalhador da Petrobras como o de um uber. O modelo é esse. É o melhor negócio para os fundos internacionais. Compra hoje, começa a ter lucro amanhã e remete esses lucros para fora. O Brasil todo está sendo transformado num ativo financeiro dos grandes fundos de investimento internacionais. Não tem mais nada a ver com a produção”.
William Nozaki, professor de ciência política da economia da Fundação Escola de Sociologia e Política, concorda com as afirmações de Estrella e alerta para as consequências danosas para a soberania nacional.
“A financeirização da Petrobras é o primeiro grande saldo dos interesses estrangeiros do capital internacional sobre a empresa. Essa abertura e o desmonte generalizado da Petrobras estão abrindo segmentos da cadeira produtiva de óleo e gás para as empresas estrangeiras e para o capital norte-americano de forma muito intensa. Somos o maior território e o país mais relevante numa área geoestratégica importantíssima para os Estados Unidos. O comprometimento da segurança energética e da soberania petrolífera brasileira significa o enfraquecimento geopolítico do Brasil. É fundamental para que as forças norte-americanas lancem seus tentáculos sobre nós. Não por acaso, as grandes empresas de perfuração e de sonda dos EUA e as empresas petrolíferas que atam como parceiras da Petrobras estão se aproveitando dos ganhos financeiros, de benefícios e isenções fiscais e têm acesso a informações geológicas de engenharia e tecnologia que fazem parte do coração estrutural da Petrobras. Tudo isso nos deixa angustiados”, declara Nozaki.
Nozaki e Estrella enfatizam que essas transformações da Petrobras deixarão a empresa com o seu filé em área estratégica para o país, onde se localizam os grandes centros urbanos e se concentra uma boa parte da população. Há, assim, “um sistema industrial estrangeiro, de 15, 20 bilhões de dólares, instalado a 300 quilômetros da costa, com a Quarta Frota [dos EUA] reativada três meses depois que descobrimos o pré-sal”, lembra o geólogo.
Na conversa, Estrella e Nozaki debatem o desenvolvimento histórico da Petrobras e as consequências das transformações de agora. Ressaltam que a verticalização da empresa, com presença em várias áreas (pesquisa, exploração, refino, distribuição, petroquímica etc) viabilizou o seu crescimento e a descoberta e exploração do pré-sal.
“A Petrobras foi montada antes da descoberta do petróleo. Por isso, o capital privado não se apresentou [em 1953, quando da sua fundação como estatal, por Getúlio Vargas]. Quando ela nasce, o seu coração é o parque de refino [que hoje está sendo desmontado e privatizado]. O que está em curso hoje é o mais preocupante desmonte da história da Petrobras. É um projeto quer transformar a Petrobras numa empresa única e exclusivamente extrativa regional”, diz Nozaki.
O economista afirma estar muito preocupado com a privatização das refinarias. “É a venda de metade da capacidade de refino no país. É uma ameaça ao abastecimento do mercado interno de derivados. É o mais dramático encolhimento, um desmonte muito contundente. Mas tenho muita confiança na capacidade de resiliência da Petrobras, do corpo técnico”.
Ambos analisam as raízes e os caminhos para a superação dessa era de destruição.
Diz Estrella:
Saímos da ditadura militar com um arremedo de democracia. Até hoje o poder não foi reconquistado pela sociedade brasileira. FHC destruiu o Estado brasileiro, cometeu um crime absoluto com a privatização da Telebrás. Nós estávamos na fronteira do conhecimento. Tudo foi destruído em uma semana. Nosso governo [do PT] tentou reverter essa situação, mas com consciência de que não tínhamos o poder na mão. Pré-sal, Brics –chegou a um ponto que os caras disseram: Não tem jeito. Quando perderam em 2014, não aceitaram o resultado e partiram para derrubar tudo. Em 2016 derrubaram um governo democraticamente eleito com um golpe. Eu não aceito isso. O que foi feito a partir de 2016 não tem legitimidade com o Estado Democrático de Direito. Com a Lava Jato houve intervenção estrangeira na condução da política pública brasileira. Prenderam o homem que ia ser eleito presidente da República. [Com Lula] não estaríamos nessa tragédia que estamos vivendo. Elegeram essa figura que está aí. Esse governo não tem legitimidade. Os partidos de oposição têm que partir desse pressuposto político, até ideológico, principalmente ético. Este governo não tem legitimidade! Estamos sob uma ditadura, inclusive militar”.
Na sua visão, “não vamos reverter isso se não considerarmos que esse governo é ilegítimo e que a prisão do Lula foi criminosa; esse é o ponto de partida. Estamos sob um governo de ocupação, como os franceses [na República de Vichy], no tempo da resistência francesa”. Para enfrentar essa situação, ele defende pressão popular, unidade das oposições nas eleições deste ano e um referendo revogatório para cancelar as decisões governamentais desde 2016.
“É com pressão popular que começamos a transformar. Estamos vendo o nosso país sendo destruído como nação e como sociedade organizada. É preciso uma virada. Se isso não acontecer, nós acabamos como nação soberana. Seremos uma ficha da roleta do cassino internacional, meus amigos! É preciso enfrentar isso unidos. Nossas divergências são periféricas. O que está em jogo é a história do Brasil, a história dos nossos filhos, dos nossos netos, das gerações futuras. Se há um país no mundo com o seu potencial, com o seu povo absolutamente extraordinário excepcional, se há um país e um povo que possa peitar essa realidade e vencer essas dificuldades é o Brasil com o povo brasileiro”, afirma Estrella.
Nozaki concorda:
“É uma situação trágica e dramática, mas, inevitavelmente, vai ter uma saída. A sociedade brasileira não aguenta o projeto de destruição que está em curso. Esse projeto não sustenta a sociedade brasileira. As contradições [dentro do projeto] estão de explicitando cada vez de forma mais intensa. Os caminhos de saída vão se desenhar, talvez numa velocidade mais rápida do que a gente imagina, porque, nesse mundo de revoluções tecnológicas, a própria velocidade dos ciclos políticos também está sofrendo alterações. A mesa vai virar. O Brasil como nação vai se recompor”.