Por Vitória Régia da Silva e Natália Leão*, compartilhado de GN –
Relatório Minera, produto do Hub Gênero e Número, revela o impacto da pandemia no mercado de trabalho com uma perspectiva de gênero e raça; elas também são a maioria entre as pessoas que não estão buscando trabalho
“A parte mais difícil dessa pandemia é você olhar para o futuro próximo e não ver uma saída. É saber que está longe dos seus filhos, não saber quando vai poder estar com eles novamente, como vai sustentar minimamente eles e não ter nenhuma perspectiva a respeito disso por estar desempregada. O mínimo que eu queria era estar com meus filhos e estar comendo”, diz a pedagoga Juliana Jeniffer Silva Ferreira, 39 anos. A paulistana se mudou em março do ano passado, pouco antes de ser decretada a pandemia de covid-19, para o Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades. Com a crise sanitária, perdeu a vaga de emprego que estava certa e teve que morar por três meses de favor na casa de amigos enquanto seus três filhos estavam em Paraisópolis, uma favela de São Paulo. Por ter asma e ser do grupo de risco da covid-19, não poderia voltar para casa.
Como mãe solo, Ferreira tinha direito ao auxílio emergencial, mas teve que lutar na justiça para conseguir. E isso levou tempo. Só em outubro de 2020 teve o auxílio aprovado, cujas parcelas recebeu até dezembro, quando o benefício foi suspenso. “Quando eu fiquei sabendo que o auxílio foi cancelado, eu tive uma crise muito pesada. Foi bem difícil porque, se recebendo o auxílio já estava muito difícil, imagina sem. Pensei que a gente iria morrer de fome, já que não conseguiria um emprego e não teria mais o auxílio. Fiquei desesperada! Quem é pobre, mulher e negro nesse país está em uma situação muito difícil”, desabafa aos prantos.
Histórias como a de Juliana Jeniffer Silva Ferreira se repetem em um país de crise sanitária e econômica. Em outubro de 2020 havia 7,1 milhões de mulheres em busca de trabalho no Brasil, sendo que 4,4 milhões delas eram negras. Apesar de as mulheres representarem 53% da população economicamente ativa brasileira, elas seguem sendo sub-representadas entre os ocupados (43%) e super-representadas entre os desocupados (51%) e fora da força de trabalho (64%), segundo dados do 3º trimestre de 2020 da Pnad Contínua, analisados pelo relatório Minera, que apresenta conteúdo analítico e ferramentas para a gestão orientada à diversidade e inclusão e é o primeiro produto inédito do Hub Gênero e Número.
“A desigualdade de gênero e raça que já estava formada antes da crise, se acentua com a pandemia porque afeta de forma diferenciada os grupos que já eram marcados pela vulnerabilidade. Por isso, ressaltar o caráter estrutural do machismo e racismo na nossa sociedade nos possibilita entender como as hierarquias estão colocadas no mercado de trabalho e como as mulheres ocupam um lugar muito mais vulnerável”, destaca Giselle dos Anjos Santos, consultora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert).
Os dados apontam diferenças no nível da ocupação entre homens e mulheres: a proporção de homens com 14 anos ou mais de idade trabalhando era superior ao de mulheres deste mesmo grupo etário também trabalhando. No 3º trimestre de 2020, o nível de ocupação dos homens, no Brasil, foi estimado em 57%, e o das mulheres, em 38%.
Para mulheres, crise econômica é risco para sustentação
As mulheres com vínculos trabalhistas formais, mesmo antes da pandemia, já eram minoria, e isso se ampliou no contexto de crise sanitária. No 3º trimestre de 2020, elas eram mais de 7,4 milhões, sendo 4,4 milhões de mulheres negras. Para Santos, além do crescimento do desemprego, podemos observar um crescimento da precarização do trabalho, especialmente para os grupos que já eram historicamente vulneráveis.
“A possibilidade de mulheres negras serem inseridas e incluídas dentro do mercado de trabalho formal é muito baixa. Há um grande número de empreendedoras – e ser empreendedora é algo que você pode ansiar -, mas esse empreendedorismo não é um empreendedorismo pensando em crescimento, na possibilidade de ampliar os negócios. É o empreendedorismo de sobrevivência. É o mínimo para garantir que consiga se alimentar e pagar a casa onde mora”, pontua Alessandra Benedito, professora de direito do trabalho na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenadora da área sobre equidade em empresas do Núcleo de Justiça Racial da FGV-Direito SP.
A convergência entre as crises econômica, sanitária e do cuidado agravou as desigualdades de gênero e raça, que já eram profundas, e empurrou mulheres para fora do mercado de trabalho. A recessão de 2020 levou à perda de espaço por parte das mulheres também no mercado de trabalho informal, onde eram 52% nos primeiros meses do ano e passaram a ser 49% no penúltimo trimestre.
Segundo a pesquisa “Sem parar: o trabalho e vida das mulheres na pandemia”, da Gênero e Número e da SempreViva Organização Feminista, realizada em abril/maio de 2020, 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco. A maior parte das entrevistadas que têm essa percepção são mulheres negras (55%), que no momento em que responderam à pesquisa tinham como dificuldade principal o pagamento de contas básicas ou do aluguel.
Essa é a situação de A**, uma jovem carioca de 27 anos que perdeu o emprego em maio de 2020, no início da pandemia. Profissional da área de turismo, uma das mais impactadas pelo desemprego devido às restrições impostas pelo isolamento social, teve que sair da casa de aluguel em que morava com o irmão e foi morar com a tia, para diminuir os custos. “Eu dependo das outras pessoas para me manter, para comprar comida e todo o básico. É muito ruim estar nessa situação de não poder comprar nada porque estou desempregada”, afirma.
Diante da perda de postos de trabalho e de renda instável, o auxílio emergencial foi um benefício importante para a sustentação das famílias brasileiras. Porém, frente às incertezas sobre a continuação do auxílio, cresce o cenário de insegurança alimentar para mulheres pobres, principalmente as negras e indígenas, já que entre todas as famílias com algum nível de insegurança alimentar, 32% são comandadas por mulheres negras ou indígenas, segundo reportagem da Gênero e Número.
A possibilidade de mulheres negras serem inseridas e incluídas dentro do mercado de trabalho formal é muito baixa. Há um grande número de empreendedoras – e ser empreendedora é algo que você pode ansiar -, mas esse empreendedorismo não é um empreendedorismo pensando em crescimento, na possibilidade de ampliar os negócios. É o empreendedorismo de sobrevivência.
– disse Alessandra Benedito, coordenadora da área sobre equidade em empresas do Núcleo de Justiça Racial da FGV-Direito SP.
Crise do cuidado e mulheres fora da força de trabalho
As mulheres são a maioria entre as pessoas que realizam tarefas não remuneradas e estão fora da força de trabalho (64%), o que significa que não trabalham nem buscam emprego. Segundo dados do IBGE levantados para o Minera, 93% das mulheres brasileiras realizam trabalhos não remunerados, em tarefas domésticas, de cuidado, voluntariado ou produção para consumo próprio, diante de 82% dos homens.
Para a consultora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, a crise sanitária, econômica ou de cuidado é vivenciada de forma diferente por mulheres, pessoas negras e indígenas, em termos de exposição a situações de violência, necessidade de cuidar de alguém ou da casa, além da vulnerabilidade e desigualdade. “A convenção social é a de que as mulheres desempenham determinadas atividades no lar que não é imposto aos homens, e isso cumpre um papel significativo na ocupação dos postos de trabalho”, explica Giselle dos Anjos Santos.
O impacto que essas atividades não remuneradas têm na rotina das mulheres foi mais um aspecto de destaque na pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, ao mostrar que metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém. O estudo revelou que, para 61% das entrevistadas, a responsabilidade com o trabalho doméstico e de cuidado dificultou a realização do trabalho remunerado durante o primeiro período de isolamento social.
Além disso, cerca de 4% das mulheres afirmaram que ficou inviável se dedicar a tarefas pelas quais recebiam remuneração. “A mulher não tem direito de reclamar, tem que fazer tudo e ainda achar bom, porque a sociedade ainda acha que nosso lugar é outro e as oportunidades de trabalho são poucas”, finaliza a pedagoga Juliana Ferreira.
*Vitória Régia da Silva é repórter e Natália Leão é coordenadora de dados da Gênero e Número
** preferiu não se identificar