Na Pavuna, fiapos de história do nosso cotidiano

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César leva a gente de carro e a pé pela Pavuna, mostrando “pequenas histórias cruéis, fiapos de história que a gente tem que cozer”.

Cícero César apresenta, assim, um pouco da Pavuna. Não conheço o local. Só sei que de lá foi para o Meu Santos Futebol Clube, o grande ponta esquerda João Paulo, o Papinha da Vila. Mas isso é outra história. Esta de glória!




Obs.: O Maurinho, citado no início do texto é o nosso amigo, professor Mauro Célio, que mora em Paquetá e dá aula em Nilópolis, onde mora o Cícero César, e em Bangu.

“Prezado Washington, o texto de hoje vem marcado pelo cansaço da minha visão. O Maurinho é testemunha de que boa parte do que relato, ocorrido na quarta-feira última, dia 8 de junho de 2022, foi mais ou menos assim.

O cotidiano das grandes cidades é cheio de tais pequenas histórias cruéis, fiapos de história que a gente tem que cozer. No fundo, a própria organização do trabalho contribui para que não se dê o devido valor às pessoas.

Cada uma delas passa por nós pensando em uma mulher ou no time, como diz o desfecho da letra de “De frente pro crime”, do nosso querido Aldir Blanc. Também somos um pouco mais que vultos para a maioria deles, obviamente.

Os nomes das pessoas são fictícios. Mas a história não é propriamente inventada.

Qual é, Qualé da Pavuna?

Para quem nunca passou pela Pavuna, desabafo: Talvez mais que o Rio profundo, a região da Pavuna nos mostre o Rio assoreado. O sentido figurado se apoia no literal, pois basta chover para que transborde o rio que corta a região, o Rio Pavuna. Falo de uma região que fica literalmente no fim da linha. É a última estação da linha 2 do Metrô do Rio de Janeiro.

Para quem não é da Pavuna, esclareço:

Não é uma região paupérrima, esquecida de Deus e dos governantes, não é nada disso. O fato de estabelecer praticamente um limite entre o munícipio do Rio de Janeiro e os da Baixada Fluminense faz com que a região seja um entrecruzar de gentes, de gostos, de tipos, tal como qualquer lugar de passagem que se preze.

Para todos os efeitos, a Pavuna é um bazar a céu aberto.   Ela é do povo e do pavão. Por isso mesmo é que me desagrada vê-la assim tão degradada.

Qualé e outros quase como ele

Por esses dias passei de carro pela Pavuna em direção à escola onde trabalho de manhã. Evita-se engarrafamentos, não acontecimentos, como pretendo deixar claro a quem ler o texto até o fim. 

No meu caso, ir pela Pavuna é bem mais rápido do que ir pela Avenida Brasil. Só que, como nem tudo é fácil, tem que se ficar parado no sinal por algum tempo. Não adianta, não há surpresas. Imbricam-se os veículos que querem ir para São João de Meriti com os que querem descer para o centro da cidade margeando a linha 2 do Metrô.

A expressão dar um nó no trânsito é insuficiente para retratar com fidelidade o que ocorre. Passar por ali é como se passar pelo olho da agulha.  Ali é o xis da questão.

Foi de dentro do carro que vi o Qualé. Lá vinha ele, todo  vestido de preto, absolutamente tresloucado. Fez-se de guarda de trânsito, imitando o apito e o gestual; estancou para encarar um cachorro brabo de rua em uma briga que poderia ter sido de cachorro grande.

Andou mais um pouco, possivelmente falando alto e sozinho.  No cruzamento, levou na ideia o salgado e o guaraná de um rapaz que atravessava, que, tendo sido pego desprevenido, não reagiu.  Da janela do carro deu para ver seu rosto tomar a expressão de quem fez algo contra a própria vontade. Ou seja, tirar doce da boca de crianças é para principiantes.

Ali se tirou foi metade de um salgado mesmo da boca de um adolescente que atravessava a rua rindo com os amigos, sem saber o que o esperava. Efeito-surpresa tem dessas coisas. Mais à frente, Qualé descartou o guardanapo e o copo na calçada debaixo do viaduto, dando sua contribuição para a pilha de detritos.

Só então a fila de carros andou, eu parti. E Qualé saiu do meu campo de visão.

Tudo aconteceu rapidamente como a explosão de um transformador. Fiquei pensando no que vi, no cara, e decidi que ele faria parte do texto que agora escrevo.

Surgiram-me dúvidas do tipo: será que ele era dos morros da Pedreira ou do Chapadão? Mesmo para um cara safo como ele, só se pode pertencer a um. Será que ele era o bisneto dos anti-heróis que protagonizam canções como “Pivete” e “Tiro de misericórdia”?

Não era ele um dos sinais que a miséria muda, se metamorfoseia, mas que alguns fatos se repetem e se repetem? Será que ele já tinha ouvido falar em Bebeto, que era fã do cantor Bebeto? Ou será que só conhece os batidões de hoje?

Será que ele estava bêbado, trincado, virado, será que ele é sempre assim, que se recorda de seus atos? Será que ele tirou a foto na qual se vê um menino sentado, de uniforme, todo orgulhoso na mesa da professora?

Será que ele conhecia um dos meus alunos, o que disse em tom de naturalidade na sala de aula que, se as coisas não dessem certo na vida, ele seria bandido como o irmão?

Matita e Tiquinho, de rua e na rua

De tanto pensar nele acabei me recordando do Matita, da Fazenda Botafogo, e do Tiquinho, da Mangueira.

Por incrível que pareça, quando os vi, os dois estavam dormindo literalmente nas ruas, ao alcance dos carros.

Cheguei a tentar convencer, o Matita, a dormir na calçada, lugar mais seguro, pois na rua um carro poderia pegá-lo a qualquer instante. Não perguntei se era exatamente isso o que ele queria, se ele queria, digamos, atrapalhar o tráfego.

Foi um rompante de minha parte, admito.  Quase me arrependi de meu gesto de bom samaritano. Além do mais, eu estava atrasado. Haveria de pegar a primeira das três conduções para chegar à minha segunda escola, que fica a uma hora e pouco de distância.

Na época, eu estava sem carro e o trajeto era uma grande aventura – ou desventura, a depender do dia.   

O Tiquinho que eu vi estava dormindo em uma curva de autoestrada, próxima do Morro de Mangueira. Dormia em posição fetal alheio aos carros que passavam tirando-lhe um fino. Eu estava de carro na ocasião, não falei com ele. Nem sei se falaria com ele, na verdade, se tivesse a oportunidade. Não andaria a pé por ali.

Por derradeiro, me pergunto o que eu daria ao Qualé se ele me abordasse: o carro, o cigarro, a carteira, a minha própria voz, o meu sorriso amarelo por ter sido pego, que nem o menino do salgado e guaraná, desprevenido?

Se ele não me parecesse hostil, eu acho que abriria a janela. Diria: “Qualé, Qualé?” Isso se o sinal não abrisse antes.”

A foto do post é de Renata Lombardi. Foto feita em São Paulo, mas poderia ser na Pavuna, do Matita ou do Tiquinho, do Qualé….

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