Por Natasha Mazzacaro, compartilhado de Projeto Colabora –
Cresce no país europeu o número de estabelecimentos cooperativados sem fins lucrativos, onde os “clientes-proprietários-empregados” pagam até 40% nas compras, remuneram mais justamente fornecedores e selecionam produtos locais com mais qualidade
Eis-me aqui, uma pessoa que nunca possuiu propriedade privada alguma na vida, de uma hora para outra, vislumbrar a ideia de virar dona de supermercado. Sim, eu também entraria para o clube dos empresários, o clube dos que possuem. Já estava perdida nos meus devaneios mais loucos, pensando no que eu iria fazer com todo o lucro que eu ganhasse, quando de repente um homem chama a minha atenção. A minha atenção, neste caso específico, veio materializada na forma de uma caixa de aipo, que habitava até aquele momento uma câmara frigorífica e que deveria ser posicionada nas prateleiras do setor de legumes para ser vendida horas mais tarde.
Tudo bem, aquela seria a primeira vez que eu me tornaria “proprietária” de um supermercado, mas também seria a primeira vez que eu trabalharia como “funcionária” de um supermercado. Eu explico….
Na França — um país que inclui não oficialmente o bien manger (comer bem) quase que ao lado dos valores Liberté, Égalité, Fraternité — tem crescido o número de supermercados que funcionam como cooperativas. Assim como os seus pares convencionais, esses estabelecimentos vendem todo tipo de produto alimentício, de limpeza e de higiene, com uma diferença fundamental: todos os consumidores são também funcionários e donos do supermercado.
Ao aderir ao projeto, eles compram uma parte social que varia de acordo com o orçamento de cada um (geralmente de 10 euros para estudantes a 100 euros para pessoas com rendimentos altos) e automaticamente passam a ter direito de voto sobre as decisões que são tomadas. A partir daí, os “clientes-patrões-empregados” têm que trabalhar (ou “doar seu tempo”, como eles preferem chamar) três horas por mês no estabelecimento para, em troca, poderem fazer livremente as suas compras.
Como não há fins lucrativos, os produtos acabam saindo mais baratos do que os oferecidos pelos supermercados convencionais. Há também uma transparência no preço de cada artigo vendido com uma taxação fixa, que geralmente gira em torno de 20% dependendo do mercado. Ou seja, se um pedaço de queijo custa 1 euro e 20 centavos, quer dizer que a cooperativa pagou 1 euro ao produtor. Os 20 centavos restantes servem para pagar as contas do estabelecimento, como luz e aluguel do local.
Na França, há 80 projetos desse tipo e 35 supermercados funcionando a pleno vapor. Eles se reúnem uma vez por ano para trocar experiências e ajudar iniciativas que estão engatinhando.
“Esse boom deve ser por causa de uma mistura do espírito contestador francês com uma obsessão por comida”, brinca o fotógrafo Charles Godron, membro do La Cagette (o caixote, em francês), um supermercado situado em Montpellier, no sudoeste da França: “Acho que nós estamos vendo o surgimento de uma nova geração de consumidores que quer retomar o controle da situação. Tem muita gente que se alimenta mal e o nosso objetivo é mostrar que podemos comer melhor com menos dinheiro”, ele avalia.
Pioneiro surgiu em Nova York
Na França, Godron completa, já existiam cooperativas alimentares geridas por produtores no século XIX, mas esse sistema foi esmagado nos anos 1970 pelas grandes redes de supermercado. Um filosofia fast food do “tudo pronto, nenhum trabalho”. Ironicamente, na mesma época surgiria em Nova York, nos Estados Unidos, o primeiro supermercado cooperativado, participativo e sem fins lucrativos do mundo : o Park Slope Food Coop.
Fundado em 1973, no Brooklyn, a cooperativa americana é um gigante que oferece 15 mil produtos para mais de 17 mil membros. Foi o Park Slope Food Coop que inspirou dois americanos que moravam em Paris a criarem o La Louve (a loba, em francês) em 2010. Um deles, Tom Boothe, fez inclusive um documentário sobre o projeto, nomeado “Food Coop”.
Daí para A Loba servir de modelo para outras dezenas de projetos em todo o território francês foi um pulo. O La Cagette, por exemplo, que começou com 10 pessoas em 2015, hoje reúne 3 mil clientes-donos-funcionários. Com uma gama de 3 mil produtos em sua loja, eles já venderam o equivalente a 5 milhões de euros desde o começo do supermercado. Apenas este ano, serão 750 mil euros que serão gastos com 120 produtores locais.
“Outro problema das grandes redes de supermercado é que eles não remuneram corretamente os produtores. Um quarto dos agricultores franceses, por exemplo, ganha uma média de 600 euros por mês, o que é menos da metade de um salário mínimo (1 539,42 euros brutos). Isso sem falar nos produtos de má qualidade, na massa colossal de embalagens, na distância percorrida… É um custo social e ambiental enorme”, explica Godron.
Produtos frescos e locais
Enquanto nas grandes redes supermercados francesas os produtos vêm de longe (em média 4 mil quilômetros de distância), no La Cagette eles compram de agricultores localizados a menos de 150 quilômetros de Montpellier.
No La Chouette (a coruja ou bacana, em francês), supermercado cooperativado de Toulouse, no centro-sul da França, por exemplo, os produtores que abastecem a seção de legumes e frutas (70% deles orgânicos) são os mesmos desde o começo. Se a qualidade do produto não cair, esse esquema não muda, já que são os membros que decidem quais itens entram e saem das prateleiras.
Essa ideia de comer local é muito querida pelos franceses de modo geral, explica o presidente do La Chouette, Christian Dupuy. Empresário aposentado da área da informática, ele tem verdadeira aversão aos supermercados convencionais e se dedica quase que em tempo integral à cooperativa toulousana.
“Cada um vem aqui por um motivo diferente. Mas a sensação de que somos enganados quando vamos a um supermercado convencional todo mundo compartilha. Eles nos impõem suas escolhas, com suas disposições nas prateleiras, suas estratégias de marketing, suas marcas próprias. Temos a impressão de que não controlamos mais o que compramos, de não sermos livres das nossas escolhas. No La Chouette, podemos justificar a presença de cada um dos produtos que está ali. Não deixa de ser um ato revolucionário, no sentido de que rompemos um sistema”, diz ele.
Muito além dos hipsters, uma questão social
Faz parte também do ato revolucionário dos supermercados cooperativados sair das suas próprias bolhas. Vistos por alguns como supermercados da moda ou meio hipsters, os membros dessa iniciativa querem justamente popularizar a ideia para fazê-la chegar aos que mais precisam dessa revolução alimentar francesa.
Por isso, todos os supermercados oferecem vários produtos do mesmo tipo, com preços e perfis diferentes. A ideia é que os clientes tenham opção na hora de comprar, mesmo se o orçamento familiar for mais apertado.
“No começo, tínhamos muitos membros do tipo militantes, que diziam não querer nunca mais botar os pés num supermercado convencional. Hoje, temos estudantes, desempregados, aposentados, gente que mora no bairro…”, enumera descreve Léa Baillet, que deixou um projeto de mestrado em Sociologia de lado para virar uma das cinco assalariadas do SuperQuinquin (ou super menino, no dialeto falado na região), supermercado localizado em Lille, no norte da França. “Normalmente, as pessoas que chegam até nós, já têm uma consciência e são sensíveis ao projeto. Mas o que nos interessa de verdade é furar essa bolha e chegar nas outras pessoas. Esse é o nosso maior trabalho”, conclui.
No La Chouette, por exemplo, eles pretendem furar a bolha visitando escolas, desenvolvendo um projeto de educação popular e de alimentação saudável, montando estandes em festas locais e inaugurando em três anos um megassupermercado de 650 metros quadrados num bairro popular de Toulouse (o supermercado atual tem 175 metros quadrados). O plano inclui ainda criar uma creche dentro do novo supermercado no mesmo modelo da creche do Park Slope Food Coop, para que os funcionários-clientes possam trabalhar ou fazer suas compras à vontade, sem se preocuparem com os seus filhos. Um sonho de consumo para quem sofre com o famoso “Compra, mãe!” proferido pelos pequenos.
Outro motivo pelo qual certas pessoas torcem o nariz para esse tipo de iniciativa tem a ver com uma suposta redução de postos de trabalho, argumento que é imediatamente desmantelado por Charles Godron, do La Cagette.
“Neste mesmo local onde instalamos a nossa loja atual, funcionava antes um supermercado convencional que foi à falência. Eles empregavam apenas duas pessoas e utilizavam somente um fornecedor. Nós, atualmente, temos oito pessoas assalariadas para ajudar os nossos 3 mil membros em suas tarefas. Nós somos a prova viva de que uma organização cidadã sem fins lucrativos gera emprego”, afirma, completando: “Aqui, todos têm o mesmo peso e não tomamos uma decisão até que todo mundo chegue a um consenso, coibindo uns de cortarem a fala dos outros e dos homens interromperem as mulheres, o que é comum na nossa sociedade. E esse é um sistema de governança e de tomada de decisão em grupo que pode ser transferido para absolutamente qualquer tipo de comércio. Sair de um sistema e criar um novo, onde um não é contra o outro, é maravilhoso. A competição não é positiva para nós. Positiva mesmo é a cooperação”.