Por Cícero César Sotero Batista, doutor em Litertatura, professor na Rede Municipal de Educação de Nova Iguaçú/RJ.
Em mim, a pandemia deixou marcas profundas. Cicatrizes. Na situação em que se encontravam as escolas voltadas para as classes populares, aulas virtuais ou híbridas resultaram em retumbante fracasso. Descobriu-se algo que em retrospectiva nos parece cada vez mais óbvio: muitos de nossos alunos não têm internet nem o mínimo de preparação para assistir a aulas em ambiente digital. Nem a aula digital pode ser igual à da educação frontal, que seria dada a cuspe e giz.
A escola ainda possui um papel de relevância no quesito é preciso aprender a aprender. Isto é, disciplina, força mental, apoio dos pais, uma confiança inabalável na importância da educação escolar, não só para o futuro mas para o dia a dia da convivência em sociedade, entre outras coisas.
Não se esqueçam: conteúdo não é tudo mas é importante. Por que não haveria aulas de filosofia, de artes, de cultura brasileira? Não só no ensino médio mas no fundamental também?
Diante do exposto acima, é preciso lembrar o quanto nos esforçamos para que mínimas asas fossem criadas para a dança no abismo que tivemos de enfrentar. À época eu assisti a algumas aulas de colegas que deram aulas interessantíssimas mesmo em contexto tão adverso. Fiquei feliz.
Pessoalmente, eu ficava contente quando um aluno ou um grupo de alunos aparecia para a aula. Sempre os mesmos. Eu via suas caras, suas casas, suas mesas. Eu tirava fotos deles para me certificar de que tal alegria era possível. Quando as aulas retornaram, eu os procurava com os olhos e com o coração.
NORMALIDADE PARA QUEM, CARA PÁLIDA?
Retornamos em busca da “normalidade” das aulas presenciais. Eu deveria colocar mais aspas na palavra normalidade. Pois já eram grandes, por vezes intransponíveis as dificuldades do dia a dia na escola antes da maldita pandemia.
Alunos desrespeitosos, com problemas sérios de indisciplina e alfabetização, por vezes me faziam pensar na lógico do efeito Tostines: alguns alunos são indisciplinados porque são analfabetos ou são analfabetos por conta da indisciplina?
Seja como for, eles estão aí entre nós, nos causando sentimentos que vão da tristeza mais profunda à resignação mais abjeta. Seja como for, a escola é ainda um dos melhores lugares para eles – pelo menos, melhor do que o reformatório a escola é. Isto porque eles são repreendidos mas também ouvidos com atenção. Assim aprendemos a falar a língua deles, na esperança que eles também aprendam a falar um pouco da nossa língua do Pê (a língua do professor).
Cito Paulo Freire: palavra-mundo.
OS MAIS DE SETE TRABALHOS DO PROFESSOR
É digno de um Hércules o trabalho do professor: não podemos nos esquecer: é mal-remunerado e executado em escolas que já deveriam ter sido reformadas para atender às demandas de uma sociedade que se quer democrática. O que está faltando para que isto ocorra? Já temos muitos alunos na escola. Eles estão freqüentando. Quanto tempo nos resta para que uma mera climatização de salas não passe de uma promessa de campanha para enganar trouxas?
Seja como for, a climatização das salas deve ser feita para que não precisemos apenas contar os alunos nem contê-los a todo tempo; para que seja possível contar com eles e que para eles possam contar conosco – porque este é o nosso papel.
REFLEXÕES DE UM PROFESSOR
Eis algumas reflexões de um professor que é homem branco de cinqüenta e um anos que não irá se aposentar tão cedo, com mestrado e doutorado, pai de dois, há mais ou menos treze anos na Rede Municipal de Nova Iguaçu.
Quando pensei na quinta-feira, dia 20 de abril, pensei que irá ocorrer um projeto de literatura na escola do qual não poderei participar por motivos óbvios: estarei em outra escola.
Esqueci-me completamente de que paira no ar uma ameaça de massacre nas escolas, organizado por pessoas com o intuito de comprometer o nosso trabalho, que já é difícil, diga-se de passagem.
Aliás, organizado uma pinóia. Não é à toa que uma das palavras mais usadas na internet é viralizar. Basta soprar uma história dessas nas redes sociais para que o medo se instale, sem que se dê tempo a gente para discutir se ela é tem pé ou cabeça. Eis a maneira de operar de qualquer Fake News. Leva-se muito mais tempo para desmenti-la do que para divulgá-la. E quem é o pai das Fake News?
Por derradeiro, fiquei sabendo no fim de semana: uma menina do sétimo ano da escola de meu filho levou uma faca para a escola. Pelo que entendi, ela assim o fez mais pra se proteger do que pra atacar gente indefesa. É disso que estou falando também. O medo sempre tomará conta dos mais vulneráveis.
Se eu pudesse, se eu a conhecesse, eu levaria para ela um bombom ou dois ou três. Nem sempre vai funcionar, a vida não é a todo instante um filme de superação, eu sei disso. Mas pelo menos vale como tentativa para se encurtar a distância entre mim e meus alunos.