A escritora e psicanalista Elisama Santos está lançando Vamos conversar – Um pequeno manual de Comunicação não Violenta para a vida real. É o quarto da sequência dos best-sellers Educação não violenta (2019), Por que gritamos? (2020) e Conversas Corajosas, todos publicados pela Paz & Terra e que a fizeram chegar à lista dos autores mais procurados do país.
Por Marcelo Menna Barreto, compartilhado de Extra Classe
Foto: Elisama Santos, escritora e psicanalista – Isaac Martins/ Divulgação
Autoridade nacional no método desenvolvido pelo psicólogo norte-americano Marshall Bertram Rosenberg, autor de frases como: “Quando compreendemos as necessidades que motivam nosso próprio comportamento e o de outros, não temos inimigos”, Elisama sistematiza agora tudo o que aprendeu em seus anos de vivência e estudo da comunicação não violenta (CNV).
Nesta entrevista para o Extra Classe, ela passeia com maestria por temas como a importância dos conflitos para o nosso crescimento, a necessidade de assumirmos as diferenças e deixa claro que “tolerar o intolerável é, em regra, violentar a nós mesmos”, ao afirmar que a não violência não é sinônimo de passividade e ausência de limites.
Elisama, ainda, ministra palestras sobre educação parental e é apresentadora dos programas SAC das Emoções (GNT) e Vai passar, podcast exclusivo do Spotify, onde responde a dúvidas de pais e educadores de maneira leve e direta, além de conversar sobre maternidade, paternidade, relacionamentos e autocuidado.
Extra Classe – Seu novo livro, intitulado Vamos Conversar, pode ser encarado como uma síntese dos três anteriores e que fizeram bastante sucesso?
Elisama Santos – Não sei se posso chamar de síntese, porque existem ideias novas nele. A cada ano, aprendo mais sobre relações, psicanálise, não violência; e este aprendizado se reflete em tudo que escrevo.
EC – Como responder à pergunta que dá nome ao primeiro capítulo Quem tem medo de conflito?
Elisama – Nós aprendemos a ter medo dos conflitos, porque entendemos que são confrontos que podem custar a nossa paz, a nossa saúde mental e a saúde das nossas relações. Temos medo das mudanças que os conflitos podem trazer para a nossa vida e, por isso, costumeiramente fugimos deles. Queremos economizar energia e não colocamos no cálculo a energia que desperdiçamos nos esforçando para caber em situações incômodas e violentas, porque não queremos encarar os problemas e conflitos.
Foto: Paz e Terra/Divulgação
Se não nomeio a diferença, como vou desenvolver ferramentas respeitosas para lidar com ela? Como vou reparar as eventuais consequências danosas da sua existência? Como vou entender o que sinto ameaçado – e por isso me incomodo – diante da diferença? Negar a diferença é se fechar para os questionamentos e transformações que ela provoca
EC – Por que o conflito é importante para o crescimento pessoal?
Elisama – Conflitos são divergências de ideias que nos causam incômodo. São convites para enxergamos as situações por ângulos diferentes dos que já conhecemos. Cada vez que nos permitimos ampliar a nossa forma de encarar o mundo e as situações, aprendemos mais sobre nós, sobre o outro e sobre a vida. Não são aprendizados fáceis e eu não quero, de forma alguma, fazer parecer que precisamos agradecer pelos desconfortos que precisamos viver.
EC – Por que não?
Elisama – Eu queria uma vida tranquila em que tudo fosse do meu jeito; seria uma delícia (risos)! Mas até o meu jeito foi se transformando à medida que a vida me convoca a mudar, a aprender, a crescer. As relações que vivenciam o conflito com coragem e honestidade são seguras e fortes. Quem foge do conflito costuma normalizar a mentira e a dissimulação na relação, por um motivo simples: não somos iguais. Ou a gente assume as diferenças e lida com elas, ou finge que elas não existem. Acredito que a segunda opção não seja a melhor delas.
EC – Como, então, em sua opinião, devemos assumir as diferenças e lidar com elas?
Elisama – Quando falo as palavras mentira e dissimulação, parece que estou falando de vilões de novela. A gente associa essas palavras a pessoas más, mas nós mentimos e dissimulamos, na maior parte das vezes, para agradar e evitar a dor – tanto a nossa quanto a dor do outro. Mentimos para fingir que não nos incomodamos com esta ou aquela postura; dissimulamos quando colocamos um sorriso no rosto e dizemos sim, quando tudo que gostaríamos era sustentar um sonoro não.
EC – Como assim?
Elisama – Ao negar as diferenças, fingir que não existem e que não mexem conosco, mentimos para nós e para quem convive conosco, minando a relação, sem a intenção de fazê-lo. A gente só aprende a lidar com o que aceita que existe.
EC – Então?
Elisama – Se não nomeio a diferença, como vou desenvolver ferramentas respeitosas para lidar com ela? Como vou reparar as eventuais consequências danosas da sua existência? Como vou entender o que sinto ameaçado – e por isso me incomodo – diante da diferença? Negar a diferença é se fechar para os questionamentos e transformações que ela provoca.
EC – Por exemplo?
Elisama – Um exemplo comum é a ilusão de que somos todos iguais. Repetidas vezes, com o intuito de anunciar-se como alguém inclusivo e respeitoso, fala-se em não ver cor, em não notar a raça das pessoas ao redor, em sermos todos iguais. Ocorre que somos um país que viveu intensas violências em virtude da colonização e escravização dos povos originários, não somos iguais. Se nego a existência da cor, como nomearei o racismo? Como vou pensar em formas de impedir que aconteça? Como vou reparar os sofrimentos decorrentes da sua existência? Fingir que a diferença não existe é se omitir diante das violências. Somos diferentes, temos histórias de vida diferentes, temos convicções diferentes e precisamos reconhecê-las para tornarmos a convivência mais saudável e respeitosa para todos.
EC – A senhora relativiza o “óbvio”. Por quê? A palavra deveria ser retirada do vocabulário?
Elisama – Não acredito que deva ser tirada do vocabulário, mas, certamente, precisamos rever a sua aplicação. Nada é óbvio. Ninguém vê o mundo da exata forma que o vemos. Ninguém tem a nossa história de vida, o nosso jeito de sentir, de enxergar o mundo. Ninguém percebe a realidade da exata forma que a percebemos. Quando digo que algo é óbvio, estou afirmando que é visto pelo outro da exata forma que também vejo, estou acreditando que o outro recebe o que lhe acontece da mesma forma que eu e isso é uma ilusão. Assumir que nada é óbvio nos tira do nosso jeito de ver e nos coloca em direção ao encontro com o outro.
Foto: Isaac Martins/ Divulgação
Se, em vez de fugirmos dos assuntos difíceis, acreditando que não são temas para a escola, nós falarmos sobre eles, construiremos um ambiente melhor para todos os envolvidos
EC – No ambiente escolar, vivenciamos recentemente absurdas cenas de massacres, violência e censura, que se somam às históricas situações de bullying e de conflitos entre professores, alunos, pais e direções. Como lidar com essa realidade?
Elisama – Precisamos entender que a escola não é um ambiente apartado da sociedade, mas parte dela. Isso quer dizer que as situações de violência e agressão que estão ocorrendo na escola refletem o mundo em que a comunidade escolar está inserida. Podemos pensar em formas de dialogar e lidar com os problemas que estão surgindo entre professores, alunos, pais e direção, mas não podemos acreditar que serão resolvidos se, socialmente, estamos cada vez mais intolerantes e indispostos ao diálogo. A escola não será uma ilha de paz, amor e harmonia se fora dela a sociedade está caótica. É urgente que ampliemos a nossa visão e pensemos as situações que estamos presenciando para além dos muros da escola.
EC – O filósofo Karl Popper propôs o paradoxo de que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. Em um contexto de radicalização política, é possível praticar comunicação não violenta com pessoas de pensamentos e práticas intolerantes e violentas?
Elisama – A não violência não é sinônimo de passividade e ausência de limites. Costumamos confundir as coisas e, com isso, acreditar que seguiremos compreendendo e acolhendo o outro sem considerarmos as nossas próprias necessidades e fronteiras. Por vezes, a conexão com o que é importante em nós nos fará tomar decisões e adotar posturas que causam incômodo no outro, que barram o seu desejo. E não seria isso a vida em sociedade? Este delicado – e tenso – equilíbrio entre os anseios de todos e o respeito ao outro? O que quero trazer aqui é que tolerar o intolerável é, em regra, violentar a nós mesmos, e a não violência em direção ao outro não pode nos custar altas doses de violência autoimposta.
EC – Nos contextos da desigualdade social e de hierarquia do poder nas instituições, pode existir diálogo real entre sujeitos que ocupam posições distantes?
Elisama – Importante lembrar que não há diálogo real quando a relação é assimétrica e desigual. Quando falamos da política, não podemos acreditar que estamos todos ocupando iguais papéis, com iguais condições de vida. As violências sociais não são interpretações da realidade, mas fatos observáveis. Desconsiderar a realidade compartilhada para tolerar a realidade psíquica de cada indivíduo pode, também, ser violento. São tantas as armadilhas que podemos cair acreditando que estamos vivendo alinhados com a empatia e o respeito.
EC – Você afirma que o que aconteceu na infância de cada indivíduo reverbera na sua forma de ver o mundo, na narrativa da vida e, principalmente, na forma como educa seus filhos. O que pode ter acontecido na infância de pessoas com pensamentos e discursos vazios de reflexão, mas cheio de preconceito e ódio?
Elisama – É difícil dizer o que leva uma pessoa a agir como age, falar como fala, acreditar no que acredita. Não temos a exatidão de um cálculo matemático, em que podemos separar cada elemento que compõe uma equação. Somos complexos demais para isso. O que posso afirmar é que cada um de nós desenvolveu, ao longo da vida, estratégias para se sentir mais amado, acolhido, aceito – mesmo que nunca tenha, conscientemente, pensado nisso. Assim como todos nós também desenvolvemos estratégias para fugir do desprazer e do desconforto. Nos agarramos às nossas estratégias com força, porque temos medo de encarar o desamparo e a complexidade da vida.
EC – E os discursos de ódio?
Elisama – Os discursos de ódio, tão difundidos atualmente, dão respostas simples para problemas complexos. Fazem acreditar que se essa ou aquela mudança não acontecer, a vida seguirá sem sobressaltos. Fazem com que os seus seguidores se sintam amparados, protegidos, importantes e parte de algo maior – para alguns, pela primeira vez na vida.
EC – O que fazer diante disso?
Elisama – Entender esse grupo, assumindo a sua heterogeneidade, nos ajuda a pensar estratégias que evitam que sigam crescendo. Os acontecimentos da infância nos ensinam como estar no mundo, deixam as suas marcas, mas não podemos apenas culpar a infância de quem propaga discursos de ódio, mas observar o contexto social, o ambiente que propicia que tais ideias se espalhem. Se não tomarmos cuidado, buscamos, também, uma explicação simples para um problema que tem muitas camadas e colocamos no indivíduo a conta de algo que é social.
Foto: Isaac Martins/ Divulgação
Quanto mais violenta a estrutura social, mais frequentes as situações em que a escola precisará interferir como construtora de um mundo mais justo e igualitário. Racismo, machismo, homofobia, e tantos e tantos outros temas estão presentes na escola, diariamente, quer os professores e coordenadores assumam, quer finjam que não existem.
EC – Como a cultura da não violência, da tolerância, pode ser trabalhada no ambiente escolar?
Elisama – A comunidade escolar é rica em diferenças! São diversos mundos que se encontram em prol da construção de um futuro promissor para o indivíduo e para a sociedade. Se conseguimos falar sobre essas diferenças e chamamos os desconfortos para conversar, construímos algo potente. Se, em vez de fugirmos dos assuntos difíceis, acreditando que não são temas para a escola, nós falarmos sobre eles, construiremos um ambiente melhor para todos os envolvidos. Acreditamos que a escola é um lugar para aprender matemática, geografia e todos os conhecimentos cartesianos, mas esquecemos que ela possui uma responsabilidade maior, de desenvolvimento da capacidade de diálogo, de exercício de uma cidadania responsável e consciente.
EC – A senhora pode exemplificar assuntos difíceis que podem e devem ser trabalhados no ambiente escolar, em vez de se fugir deles?
Elisama – Quanto mais violenta a estrutura social, mais frequentes as situações em que a escola precisará interferir como construtora de um mundo mais justo e igualitário. Racismo, machismo, homofobia, e tantos e tantos outros temas estão presentes na escola, diariamente, quer os professores e coordenadores assumam, quer finjam que não existem. Quando assumimos o nosso papel de anfitriões das crianças e adolescentes neste mundo caótico, entendemos que falar sobre os seus medos, dúvidas e dificuldades é essencial para que se tornem cidadãos conscientes. Para que possam, inclusive, ter espaço interno para aprender. Ou será que um aluno vítima de racismo diariamente está em sua melhor condição para desenvolvimento do aprendizado? As meninas que sofrem com o machismo dos colegas estão em um ambiente que estimula o seu crescimento? A escola não pode se furtar de abordar temas difíceis em rodas de conversas e ações educativas ou viverá as consequências dessa omissão. E essa responsabilidade não deve recair nos ombros dos professores apenas, que já fazem tanto diariamente com tão poucos recursos, mas das secretarias de Educação e estudiosos do tema.
EC – Em um país em que a escola reproduz e é consequência de profunda desigualdade, o que dificulta estabelecer diálogos não violentos nas escolas públicas tão precarizadas no Brasil?
Elisama – Quando assumimos esta responsabilidade, entendemos que falar sobre sentimentos, emoções, dificuldades pessoais e coletivas é, também, parte dos seus encargos. Acontece que grande parte das instituições de ensino do país sofre com abandono e falta de estrutura física para funcionar, ofertando o mínimo para os estudantes e funcionários. Violentada pelo poder público, o exercício do cuidado entra em disputa com outras necessidades urgentes. A escola acompanha as mudanças sociais, não nos esqueçamos disso.