Não culpem os robôs

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Por Vicenç Navarro, com tradução: Cauê Seignemartin Ameni e Simone Paz Hernandez, em Outras Palavras – 

Nos próximos anos, pode haver novas ondas de desemprego e precarização do trabalho. O pensamento dominante responsabilizará a automação e a robótica. É falsidade grosseira

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Existe uma percepção muito propagada de que as novas tecnologias de automação, biotecnologia, digitalização e inteligência artificial estão revolucionando os postos de trabalho, com enormes implicações na quantidade de vagas disponíveis, dado que todas essas inovações permitem – por meio de um enorme crescimento da produtividade – realizar as mesmas tarefas com um número menor de trabalhadores. Supõe-se que substituir trabalhadores por máquinas e robôs é hoje um fenômeno generalizado nos países de capitalismo avançado. A redução da população que trabalha e as novas realidades vividas por aqueles que continuam empregados seriam devidas à introdução destas mudanças, que compõem aquilo que conhecemos como revolução digital.




Além de eliminar postos de trabalho, esta revolução reconfigurou aqueles que restaram, ao permitir maior flexibilidade e substituir empregos estáveis por outros instáveis. Esta percepção assume-se que, da mesma forma que a linha de montagem (própria do fordismo e que caracterizou a revolução industrial) criou a classe operária, a robótica e a inteligência artificial, características da chamada revolução digital, estão criando o precariado — fusão dos termos “precário” e “proletariado”.

Sempre segundo essa leitura da realidade, a classe trabalhadora industrial está sendo substituída pelo precariado – isto é, trabalhadores em condições de trabalho muito precárias, com empregos instáveis e muito flexíveis, com baixos salários e contratos muito curtos. Nesta situação, assume-se que o mercado de trabalho será composto por uma minoria com empregos estáveis e salários altos, donos de um alto conhecimento especializado, que dirigirão as empresas digitalizadas; por um número maior de trabalhadores pouco especializados e com baixos salários; e, finalmente, por uma grande maioria desempregada, pois a revolução digital tornará desnecessários os trabalhos que requerem intervenção humana. Assim, surge a imagem de que, num futuro muito, quase metade dos postos de trabalho terá desaparecido.

Essa interpretação tem gerado um grande debate sobre as supostas consequências que esse futuro sem trabalho terá para a maior parte da população. O autor que introduziu o conceito de precariado, Guy Standing, em seu livro O Precariado – A Nova Classe Perigosa (Editora Intrínseca), chegou a sustentar que este precariado é, na realidade, uma nova classe social diferente da classe trabalhadora, com interesses às vezes opostos. O trabalhador com contrato fixo, estável e sempre empregado pelo mesmo empresário, está deixando de existir, segundo Standing. Em seu lugar, o tipo de trabalhador mais frequente será – como consequência da revolução digital – o trabalhador com contrato precário, curto, instável, variável, em contínua rotatividade, trabalhando ao longo de sua vida profissional em muitos lugares e postos de trabalho, dependente de vários empregadores, com os quais assina contratos no nível individual, e não coletivo. Serão trabalhadores com poderes escassos e poucos direitos sociais, laborais e políticos. Essa nova classe social inclui grande parte da população imigrante, e nela as mulheres estão claramente sobre-representadas (para uma crítica deste livro, leia o artigo “Politics Lost”, John Schmitt, Dissent, Summer 2016). Vale examinar o tema em mais profundidade.

Existe uma revolução digital? Se sim, ela nos levará a um mundo sem trabalho?

A cifra frequentemente citada, de que a revolução digital irá eliminar quase o 50% dos postos de trabalho (no capitalismo avançado), foi lançada pelos professores Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne (ambos da Universidade de Oxford, Reino Unido). Em 17 de setembro de 2013, eles publicaram um artigo intitulado “The Future of Employment: How susceptible are jobs to computerisation?”. Neste texto, sugerem que, de acordo com o seu estudo, 47% dos postos de trabalho nos Estados Unidos correm o risco de desaparecer, como consequência da introdução de novas técnicas digitais, tais como a informatização e sua robotização. Indicam também que os trabalhos com maior risco de desaparecerem são aqueles que requerem menos educação e recebem salários mais baixos. Os autores analisam este risco em 702 tipos diferentes de emprego. O estudo teve grande influência e deu origem à percepção de que a revolução tecnológica que vemos hoje — a revolução digital — é uma das mais importantes que já existiram na evolução do capitalismo e terá o maior impacto nos mercados de trabalho.

Por trás das teorias, o determinismo tecnológico

Desde que o artigo de Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne foi escrito, em 2013, muitos trabalhos acadêmicos têm questionado sua tese. Por exemplo, um dos pensadores econômicos mais perspicazes dos Estados Unidos, Dean Baker, codiretor do conhecido Centro para Estudos Econômicos e Políticos (Center for Economic and Policy Research – CEPR) de Washington, vem questionando que a revolução digital tenha sido a maior causa da destruição do emprego nos EUA.

Ele assinala que se a revolução tecnológica e a robótica, tivessem constituído uma das principais causas da destruição do emprego nos EUA, também teria havido um forte crescimento na produtividade desse país, o que não ocorreu. Na realidade, o aumento da produtividade nos EUA nos últimos dez anos tem sido baixo (somente 1,4% ao ano), se comparado com os 3% do período de 1947-1973, durante a época “dourada” do capitalismo. Dean Baker ressalta que aquele grande crescimento esteve associado a um desemprego baixíssimo e salários bem altos. Comparar o que houve então (grande aumento da produtividade, baixo desemprego e salários mais elevados) com o que vem ocorrendo nos últimos dez anos (crescimento muito baixo da produtividade, alto desemprego e salários reduzidos) estimula a indagar: por que o crescimento da produtividade naquele período gerou altos salários e um grande número de empregos, e, ao contrário, hoje um aumento muito mais baixo da mesma está destruindo muitas vagas de trabalho e produzindo salários tão mais baixos?

E além: ainda de acordo com Dean Baker, desde o ano 2000 a demanda por trabalhadores menos qualificados e com salários baixos (que representam 30% da parte de baixa renda da força laboral) tem sido muito maior que a demanda por trabalhadores especializados e com salários altos.

Diante destes dados, torna-se difícil argumentar que os robôs e a inteligencia artificial, bem como outros elementos da revolução digital, sejam responsáveis pelo enorme aumento da precarização da classe trabalhadora. Em tempo, Baker aponta que toda essa tentativa de culpar a revolução digital pela perda de postos de trabalho estáveis e bem pagos serve para evitar uma análise das causas reais da precarização. Elas não são tecnológicas, mas políticas. De forma concreta: a debilidade do mundo do trabalho nos EUA deve-se ao tipo de intervenções públicas que o Estado — influenciado pelo mundo empresarial – realiza e impõe à população. Entre estas, estão as políticas públicas voltadas a debilitar os sindicatos, aplicadas desde os anos 1980. Elas afetaram muito negativamente a qualidade do mercado de trabalho, sua estabilidade e seus salários (Dean Baker, “The job-killing-robot myth”). Não é a revolução digital, mas a contrarrevolução neoliberal que destrói postos de trabalho e precariza o trabalho existente.

As causas políticas do desgaste do mercado de trabalho

Trabalhos realizados pelo CEPR têm demonstrado de forma clara que a tecnologia substituiu os trabalhadores no fim do século XIX e começo do século XX, gerando problemas graves, dado que isso provocou uma enorme queda dos salários e uma forte crise de demanda, que contribuiu com a Grande Depressão de 1929.

Porém, a causa dessa situação não foi a introdução de tecnologia, mas a inexistência de instrumentos para a defesa do mundo do trabalho. A fraqueza do mundo laboral permitiu a introdução de um tipo de tecnologia que, por sua vez, debilitou ainda mais os trabalhadores. Em contrapartida, entre o fim da II Guerra Mundial e 1973 vivemos o período conhecido como os “anos de ouro do capitalismo”. O mundo trabalhista tinha instrumentos como os sindicatos e partidos políticos enraizados em si mesmo ou próximos (casos dos partidos socialistas e democrata, respectivamente). Foi quando a introdução de tecnologia não resultou numa queda dos salários.

Muito pelo contrário: permitiu a elevação dos salários e também a geração de novos empregos. Aliás, a produtividade cresceu muito mais do que nos períodos anteriores. Foi exatamente essa expansão do poder do mundo do trabalho no mundo capitalista desenvolvido o que criou a resposta do mundo do capital, com o neoliberalismo iniciado pelo presidente Reagan, nos EUA, e por Margareth Thatcher. A partir de então, a tecnologia só serviu para fortalecer o mundo do capital. O aumento da produtividade beneficiou-o particularmente às custas do mundo do trabalho. Assim surgiu o precariado. E a digitalização tem contribuído ao considerável crescimento das rendas do capital graças às perdas dos trabalhadores. A situação está bem documentada na grande maioria dos países da OCDE, e não deve ser atribuída à digitalização, mas à vitória diária do mundo do capital sobre o mundo do trabalho.

O que está acontecendo no mercado de trabalho do capitalismo avançado? Haverá redução de postos de trabalho?

Hoje, nos Estados Unidos, segundo o professor Dani Rodrik, da Universidade de Harvard (“Innovation Is Not Enough”, 09/06/16), os setores que mais precisam de trabalhadores não são aqueles onde há maior troca tecnológica (áreas da informática e comunicação, que representam um porcentual econômico muito menor — 10% do PIB), mas as áreas como serviços sanitários, saúde, educação, habitação, transportes e comercio. Aí, as inovações tecnológicas não foram aplicadas maciçamente. Estes setores, porém, concentram mais de 60% do PIB. Só os serviços sanitários e sociais respondem por 25% – e nestes serviços, a dependência da tecnologia robótica é muito menor que nos primeiros setores. A difusão da tecnologia, apesar de ser notável, não foi tão importante como as industriais informáticas e da comunicação. Neste setores, majoritários, houve um grande crescimento do emprego, não apenas de pessoal especializado, mas (inclusive mais) de pessoas com baixa qualificação.

Com base nestes dados, Dani Rodrik conclui: ao contrário do que se diz, a tecnologia digital tem menos impacto no mercado de trabalho que outras tecnologias introduzidas em períodos anteriores, como a eletricidade, os automóveis, o ar condicionado, o avião etc. Nos setores como os serviços públicos do Estado de Bem-Estar, que empregam o maior número de trabalhadores, a natureza do trabalho o faz menos suscetível à troca de trabalhadores por tecnologias da revolução digital.

Os últimos dados sobre a criação de emprego na União Europeia não confirmam a tese do futuro sem trabalho

Confirmando o que sustenta o artigo de Rodrik, acabam de ser publicados os dados do Grupo de Conselheiros Econômicos da Casa Branca, sobre o impacto da revolução digital no mercado de trabalho. Seu presidente, Jason Furman, apresentou os dados em 7 de julho deste ano (“The Social and Economic Implications of Artificial Intelligence Tecnhologies in the Near-Term”). Enfatizou que a robótica permite a substituição de trabalhadores por novas tecnologias; porém reconheceu que esta introdução não foi determinante nas mudanças que estão ocorrendo na força laboral estadunidense. As novas tecnologias destroem, mas também criam postos de trabalho. E mais: o elemento chave que configura uma ou outras tendência não são as tecnologias em si, mas como são concebidas, para que e com qual objetivo.

É compreensível que, por se tratar de um alto funcionário do governo federal, Furman não analise neste informe a importância do contexto político na concepção e introdução das tecnologias. É um tema muito sensível, geralmente evitado nas altas esferas do governo federal. Ainda assim, o relatório assinala a importância do Estado em comandar o desenvolvimento e aplicação de grande número de tecnologias. Indica, portanto, que a influência política sobre o Estado tem muito a ver com o tipo de tecnologia utilizado para o mercado de trabalho. Por exemplo, a aprovação de patentes, ao permitir comportamentos monopolistas, joga um papel central na configuração das novas tecnologias.

Dean Baker, menos inibido por seu cargo, fala sem tabus, sublinhando o que muitos de nós têm enfatizado por longo tempo: os chamados problemas econômicos são realmente problemas políticos. Como sempre ocorreu, em todos os períodos anteriores, as variáveis mais importantes, que explicam como uma nova tecnologia pode beneficiar ou prejudicar as classes populares, são as variáveis políticas. Ou seja: quem controla cada tecnologia e com qual objetivo; como e quando se aplica. Tudo isso depende em grande medida do Estado, que influencia a sua criação e disseminação.

A grande precaridade existente hoje tem pouquíssimo a ver com a introdução de novas tecnologias e muito com o enorme poder que o mundo do capital adquiriu frente ao mundo do trabalho. É acontecimento que, como sustentei anteriormente, ocorre desde o inicio não da revolução digital, mas da contrarrevolução neoliberal nos anos 1980. A enorme influência do capital sobre o Estado explica esta situação. As forças progressistas não deveriam aceitar o determinismo tecnológico que oculta as causas políticas responsáveis pela precariedade. Grande parte da revolução digital foi originada no setor público e logo posta a disposição do grande capital, que utiliza, como previsível, para otimizar seu objetivo de ampliar seus privilégios à custa do bem-estar e da qualidade de vida da maioria da população (ver “Los mitos neoliberales sobre la superioridade de lo privado sobre lo público”, Público, 07/07/16).

Última nota: a importância de utilizar a revolução digital a favordas classes populares

É interessante acentuar que os postos de trabalho que estão se mecanizando são os de baixa qualificação. A causa, em parte, está no fato de a classe trabalhadora ter menos poder e, portanto, menos capacidade de opor-se à destruição de seus postos de trabalho. Também aqueles mais especializados poderiam ser substituídos pela informatização. Se isso não ocorre, ou acontece de maneira mais lenta, é devido ao maior poder de resistência dos que os ocupam.

Vale lembrar que o problema não está em substituir trabalhadores por robôs: deveria ser considerado positivo que todo tipo de trabalho repetitivo fosse substituído. O problema é como se está fazendo e com quais consequências. Há uma enorme necessidade e urgência de diminuir o tempo do trabalho, assim como de criar postos de trabalho e aumentar seu conteúdo estimulante e intelectual, em áreas de grande importância e necessidade, hoje claramente negligenciadas. Entre elas, os cuidados com pessoas e os grupos mais vulneráveis, crianças e idosos; ou, por exemplo, a reciclagem de toda a economia rumo a fontes de energia sustentáveis.

Dizer que não haverá trabalho é assumir que todas as necessidades humanas já estão cobertas, o que é obviamente falso. E aí reside o ponto mais fraco da tese segundo a qual haverá um futuro sem trabalho. Por outro lado, maior ou menor precariedade dependem do poder das instituições que defendem a classe trabalhadora em cada país, tais como sindicatos e partidos trabalhistas. O fato de que a precariedade seja menos estendida no norte do que no sul da Europa deve-se precisamente ao fato de a classe trabalhadora do sul ser mais fraca e dividida, enquanto no norte os partidos que têm raiz na classe trabalhadora são fortes. A evidência científica neste caso é avassaladora.

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