Por Manuel Muñiz e Pablo Pardo, para El Mundo, reproduzido no Carta Maior –
Segundo Chomsky, o apoio às democracias está diminuindo no mundo todo, pois elas não são verdadeiras democracias: as decisões são sempre tomadas por elites
Um pequeno escritório com teto inclinado, com paredes cheias de livros e uma mesa de centro repleta de papéis desordenados e um computador. Assim é o local de trabalho desse que é, provavelmente, o linguista mais influente das últimas décadas. Além disso, Noam Chomsky também é o principal líder da esquerda radical no mundo.
Chomsky tem um escritório convencional, num edifício nada convencional. O Centro Ray e Maria Stata, do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT, segundo sua sigla em inglês), é uma pequena – e controvertida – joia arquitetônica desenhada por Frank Gehry, o mesmo autor do Guggenheim de Bilbao. Basta ver a forma o complexo para perceber a evidente marca de Gehry: os dois edifícios que compõem o Centro – o Alexander W. Dreyfoos, onde está o escritório de Chomsky, e o William H. Gates, que tem o nome do pai de Bill Gates, o homem que financiou sua construção – não têm paredes retas, e sim muros que se dobram.
Para os críticos de Chomsky, talvez o edifício seja um paradoxo. Aos seus 87 anos, o professor mantém firmemente suas ideias desde os Anos 60, quando desenvolveu a teoria de que os seres humanos estamos programados para manejar a linguagem de uma maneira predeterminada em nossos neurônios. Também mantêm suas ideias políticas, pois continua defendendo os mesmos ideais de esquerda. Assim como o desenho do Centro Ray e Maria Stata, Chomsky é bastante criticado, não tanto em termos de linguística, onde suas teorias ainda são dominantes, mas principalmente em termos políticos. Ele foi acusado de defender o genocídio dos judeus, por sua postura a favor da liberdade de expressão inclusive em casos como a negação do Holocausto – algo curioso, sendo ele mesmo judeu –, de se condescendente com ditadores e de se opor ao Ocidente e especialmente aos Estados Unidos em diversos temas importantes.
– Obama acaba de visitar Cuba. É um sinal de que a política dos Estados Unidos está mudando?
– Não. É um sinal de que o poder nos Estados Unidos está diminuindo muito rapidamente. Me refiro à capacidade de impor decisões a outros países, que é a definição de poder em termos de relações internacionais. A viagem foi apresentada como uma valente iniciativa política de Obama para acabar com o isolamento de Cuba. E na verdade era os Estados Unidos que corria o risco de ficar isolado no contexto da América Latina, por sua teimosia sobre o tema cubano. Em 2014, na Cúpula das Américas realizada em Santiago do Chile, os Estados Unidos ficou isolado em dois pontos: sua política para Cuba e a guerra contra as drogas. Estava claro que, na cúpula seguinte, que aconteceria no Panamá, a situação seria pior se mantivesse essa postura, e que o país corria o risco de ficar isolado na prática.
– O declínio dos Estados Unidos se produz sobretudo devido à ascensão da China. Há risco de um conflito entre os dois países?
– Creio que não, porque a China tem uma política exterior e de defesa dissuasória, que não visa projetar seu poder. Com a excepção do Mar do Sul da China – uma parte do Oceano Pacífico que equivale a sete vezes o território da Espanha que Pequim está tentando anexar na prática. O verdadeiro problema dos Estados Unidos é com a Rússia. Há pouco, o ex-secretário de defesa de Bill Clinton, William Perry, disse que o risco de um conflito nuclear com a Rússia é maior que durante a Guerra Fria. Existe um arco de instabilidade ao longo da fronteira oeste de Rússia, desde os Estados bálticos até a Turquia, passando pela Ucrânia.
– Apesar de a China estar se tornando uma superpotência…
– Já é uma superpotência econômica.
– Apesar de a China estar se tornando uma superpotência econômica, os Estados Unidos seguirão sendo o poder dominante no mundo durante as próximas décadas?
– Vai a ser a influência dominante. Mas está perdendo poder rapidamente. Voltando ao caso da América Latina: é uma região que esteve submetida a elites estrangeiras durante 500 anos. E agora isso está mudando. O mundo econômico antes era unipolar, porque quando a II Guerra Mundial acabou, os Estados Unidos, tinha mais poder os demais, e nunca houve um país com tamanho poder em toda a História. Logo, passou a ser tripolar, com três eixos – um ao redor dos Estados Unidos, outro da Alemanh e um terceiro ao redor do Japão –, e agora é multipolar, com o surgimento dos BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), Taiwan e outras locomotivas econômicas. Do punto de vista militar, os Estados Unidos continuam sem ter um rival à altura. Porém, isso não se traduz na capacidade de impor seu punto de vista aos demais. Quando o governo de Obama diz que “lidera por trás” (dos bastidores), não está mentindo. Essa expressão nasceu durante a intervenção na Líbia, em 2011, que foi liderada pela Grã-Bretanha, que puxou a França, que puxou os Estados Unidos. E agora, n Síria, a política dos Estados Unidos é totalmente contraditória. Obama está apoiando o grupo mais efetivo na luta contra o Estado Islâmico, que são os curdos sírios, mas esses mesmos curdos têm vínculos com os curdos do Iraque, entre os quais há organizações que os Estados Unidos considera terroristas. E, por sua vez, os curdos da Turquia são considerados, pelo governo desse país – que é um dos membros mais importantes da OTAN – a maior ameaça para sua segurança nacional.
– É impossível deixar de perguntar a você se acha que os Estados Unidos tem feito algo de bom, o se existe alguma grande potência que seja um modelo.
– Não há nenhuma. As grandes potências não são a Oxfam – organização não governamental de combate à pobreza –, e se baseiam na maximização do poder. Às vezes, suas consequências são beneficiosas, mas de forma involuntária. Por exemplo, a ocupação da Europa por parte de Estados Unidos depois da II Guerra Mundial foi, em grande medida, antidemocrática, e em países como Grécia e Itália significou a supressão de sistemas democráticos radicais – em ambos os países, os comunistas não chegaram ao poder, o que provocou uma guerra civil na Grécia. Mas a reconstrução organizada pelos europeus, foi um sucesso. A Europa foi, durante dois séculos, o lugar mais politicamente salvagem do mundo. E agora, graças à União Europeia, é um continente bastante pacífico.
– E isso foi decidido pelos Estados Unidos ou foi uma coincidência?
– Em parte, isso foi desenhado por Washington. Estados Unidos apoiou uma Europa unida porque isso beneficiava mais as suas empresas, que preferiam um mercado unificado. Mas também é verdade que os Estados Unidos temia, durante a Guerra Fria, que a Europa pudesse se transformar numa terceira força entre Washington e Moscou. Mas os Estados Unidos continuam envolvidos com a Europa. Agora, através da OTAN, está patrulhando as fronteiras da União Europeia e assumindo certa liderança na crise dos refugiados. Também arca com uma parte muito grande dos custos, de forma que os europeus muitas vezes se abstêm de desenvolver suas próprias políticas de defesa, porque os Estados Unidos estão aí para cuidar desse tema. Mas os Estados Unidos para muito menos do que pagava na época da Guerra Fria, e muito menos do que deveria. Os Estados Unidos não está somente negando acesso aos refugiados do Oriente Médio, se comparamos com o realizado por países como Suécia e Alemanha. Evidentemente, todo o Ocidente está acolhendo muito menos refugiados que países como Líbano e Jordânia, apesar de que essas pessoas fogem de guerras causadas, em grande medida, pelas políticas do Ocidente.
– Por sua vez, em países como a França, onde existe a Frente Nacional, ou na Alemanha, com os neonazistas, a chegada desses refugiados está provocando reações nacionalistas.
– Essa é a verdadeira crise, não a dos refugiados! Vejam os Estados Unidos, onde temos Trump, com seu ataque discursivo aos refugiados do Oriente Médio, e a Obama, que é o presidente que mais expulsou imigrantes indocumentados. As políticas de Obama para com o México e as da Alemanha para com a Turquia são muito similares. Os dois dizem a esses países: “vocês devem se encarregar dessa gente, mantê-la longe das nossas fronteiras”. Há três semanas atrás, um homem que vivia aqui em Boston há 25 anos, que tinha uma família e um negócio próprio, foi expulso do país, teve que voltar à Guatemala, de onde havia vindo nos Anos 80, na época em que o seu país vivia sob um virtual genocídio sancionado e aprovado pelos Estados Unidos. Portanto, parece que se trata primeiro de destruir um país, e depois de não querer que os cidadãos desse país fujam dele. É o que os Estados Unidos fazem com a América Central e com o México, e o que a União Europeia faz com o Oriente Médio.
– A Europa e os Estados Unidos estão vivendo reações políticas similares devido à chegada de pessoas de outros países?
– Não se trata só de uma reação política, porque ao reagir também se atua. Trump e Ted Cruz, os dois principais candidatos republicanos, criam opinião pública. Quando Trump diz: “o México está nos enviando assassinos e estupradores”, está explorando e amplificando elementos da opinião pública. E o mesmo acontece na Europa.
– Nestas eleições, você apoia o candidato da esquerda democrata, Bernie Sanders.
– É interessante que chamem Sanders de radical. Se tomamos em conta o seu programa, tem muito a ver com o New Deal – as políticas econômicas adotadas pelos Estados Unidos para combater a Grande Depressão. Eisenhower não teria se oposto a Sanders. Ele apoiava um projeto de saúde pública. E o sistema de saúde dos Estados Unidos é uma vergonha. O custo por pessoa é duas vezes mais caro que a média dos países da OCDE, além de ser ineficiente, e ter custos burocráticos imensos. E 60% da opinião pública quer um sistema público. Seria mais eficiente e eliminaria o deficit público. Economicamente é possível, mas politicamente, não. E aí está Sanders.
– Falando em eleições: os dados da Pesquisa Mundial de Valores (World Value Surveys) revelam que o apoio à democracia está diminuindo em todo o mundo.
– Não estou de acordo. Está diminuindo o apoio às democracias formais, porque não são verdadeiras democracias. Na Europa, as decisões são tomadas em Bruxelas. Nos Estados Unidos cerca de 70% de população, os 70% com menor renda, está totalmente desvinculada do processo político. Isso demonstra que há uma correlação enorme entre o nível econômico e educativo e mobilização política. Não é de se estranhar que as pessoas não estejam entusiasmadas com esse tipo de democracia.
– Existe desencanto com as elites?
– Com certeza. As políticas neoliberais vem sendo muito negativas para as pessoas comuns em todos os lugares. Na Europa, aplicar a austeridade em meio a um quadro de recessão foi algo absurdo, e inclusive os economistas do FMI criticaram os efeitos dessas políticas nos países periféricos da Zona Euro, como a Espanha. É algo que só pode ser explicado como uma luta de classes: o objetivo era minar a democracia e eliminar as conquistas da social democracia, que foram bastante significativas. Portanto, essa resposta não deveria nos surpreender. Porém, os mesmos dados da Pesquisa Mundial de Valores manifestam os ricos são, também cada dia mais céticos com respeito à democracia. Porque há um verdadeiro Estado de bem-estar para os muito ricos, mas os muito ricos querem mais. Não querem que exista limites à sua capacidade de roubar os demais.
– A tecnologia beneficia os ricos?
– Não. Quem ela beneficia ou não é uma questão de preferências políticas.
– Até onde essa situação pode nos levar?
– Talvez a mais democracia. O Podemos não se opõe à democracia, pelo contrário, reivindica mais democracia. Assim como o Syriza, antes de capitular. O caso grego é interessante. Convocaram um referendo, para que os gregos tivessem voz nos assuntos, para que não fosse um processo antidemocrático. Mas foi antidemocrática a reação tão histérica da União Europeia. O Syriza foi pulverizado pelos eurocratas, para demostrar aos europeus que deveriam abandonar toda e qualquer esperança de ter mais democracia.
– A situação é sustentável?
– Eu vejo muito improvável. Quando o centro se colapsa, sobram somente os extremos. Eu sou velho o bastante para recordar os discursos de Hitler na rádio. Recordo a excitação, o medo… assustava. Aquilo aconteceu na Alemanha dos Anos 30. Uma década antes, nos Anos 20, a Alemanha estava no topo da civilização ocidental em termos científicos e culturais. Dez anos mais tarde, se encontrava no abismo mais profundo da História da humanidade. É o que sucede quando o centro desaparece.
– O que você acha da Teoria da Singularidade, que diz que no futuro, algo entre 25 e 100 anos, haverá máquinas que serão capazes de aprender e substituir os seres humanos?
– Uma bobagem. Vamos destruir a nós mesmos muito antes disso, com uma guerra nuclear. E, se não for com uma guerra, será através do aquecimento do planeta.
* Linguista, filósofo e ativista político estadunidense, professor emérito de linguística no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT).
Tradução: Victor Farinelli