Promotor retratado no filme sobre julgamento de ditadores argentinos explica como processo ajudou seu país a entender crimes de militares, e como impunidade no passado do Brasil se reflete na violência atual.
Por Rodrigo Ortega, g1, compartilhado de Construir Resistência
No curso de Cinema da Universidade do Sul da Califórnia, dos EUA, o professor argentino Luis Moreno Ocampo dá aulas sobre filmes de tribunal. Ter um caso bem contado na tela pode consolidar e renovar uma vitória no julgamento real, ele argumenta.
O substantivo Holocausto, em caixa alta, em referência ao extermínio dos judeus, não se tornou popular pelo julgamento de Nuremberg, que condenou nazistas em 1945. O termo foi consagrado mesmo pelo filme “Julgamento em Nuremberg”, de 1961, exemplifica o professor.
Luis Moreno Ocampo não é só teórico de julgamentos e narrativas. Antes de dar aulas, ele foi promotor adjunto de um caso histórico: a condenação dos líderes da ditadura militar argentina, em 1985. A história é contada no filme “Argentina, 1985”, vencedor do Globo de Ouro e indicado ao Oscar.
Ele ainda foi, durante nove anos, promotor chefe da Corte Criminal Internacional. Ao g1, Ocampo fala sobre a dificuldade julgamento na Argentina, o sucesso do filme e o desafio de democracias atuais:
- Ele conta que, em 1985, os especialistas em ciência política diziam que “não se devia incomodar os regimes anteriores”;
- mas países não puniram militares, como Brasil e Espanha, sentem reflexos até hoje, em práticas de assassinato e tortura nas polícias.
- Ocampo considera que a lealdade entre os militares impede que eles consigam investigar a si mesmos, como pode fazer a justiça comum.
- E como investigar os ataques a democracias atuais, como nos EUA e no Brasil? Siga o dinheiro e as comunicações – e atenção aos líderes civis que usam o poder militar, aconselha Ocampo.
Leia a entrevista abaixo:
g1 – Quando e como você ouviu falar do filme, e qual foi seu envolvimento?
Luis Moreno Ocampo – Há quatro anos. Na verdade, duas produtoras me ligaram para me entrevistar sobre o julgamento. Uma delas sumiu, mas Santiago Mitre (diretor e roteirista de “Argentina, 1985”) continuou trabalhando e me entrevistou algumas vezes. Ele também falou com várias pessoas mais jovens que eram da minha equipe. Eu fiquei impressionado com a quantidade de trabalho que ele teve para entender o que aconteceu e qual era o contexto.
g1 – Qual foi o seu contato com o ator que te interpretou, Peter Lanzani? O quanto ele te retrata de verdade?
Luis Moreno Ocampo – Conversamos por vídeo antes de eles começarem a filmar. Mas ele fez sua própria interpretação. Eles decidiram não copiar e colar nossa personalidade. Apenas tentaram entender quem éramos. O roteiro é muito bom nisso, porque é muito preciso e literal em tudo que aconteceu no tribunal. As testemunhas agem exatamente como no julgamento. Os argumentos dos procuradores são exatamente o que dissemos. Mas o contexto vem mais da criatividade deles.
Peter Lanzani é um ótimo ator. Ele é da idade dos meus filhos, e é muito popular entre os jovens aqui na Argentina. Ele nos ajuda muito a passar essa mensagem para as novas gerações. E isso é crucial, porque o filme é sobre a luta pela democracia.
Luis Moreno Ocampo no Julgamento das Juntas, em 1985, e o ator Peter Lanzani no papel do promotor no filme ‘Argentina, 1985’ — Foto: Divulgação / LuisMorenoOcampo.com
g1 – E você acha que os jovens na Argentina entendem a gravidade dos crimes dos militares?
Luis Moreno Ocampo – Esse foi o grande desafio em 1985. Não só ganhar a ação no tribunal, mas convencer os outros – minha mãe foi um símbolo das pessoas que não acreditavam nisso. Outra figura importante é o jornalista que me entrevista, que existiu na realidade. Esses dois personagens mostram como, em 1985, conseguimos passar essa informação e as pessoas entenderam.
g1 – Aqui no Brasil, depois dos ataques deste ano, há centenas de pessoas presas, mas não se parece ter chegado ainda aos líderes, como vocês fizeram no passado. Qual é o risco de punir apenas as pessoas menos importantes e deixar os poderosos impunes?
Luis Moreno Ocampo – Acho que é importante punir os líderes. Mas para ter um processo judicial contra os líderes você precisa de provas. Não é apenas a percepção. Então eu imagino que seja um trabalho em construção até entender quem fez o que.
g1 – No Brasil há uma discussão sobre deixar o julgamento de militares para a justiça militar. Você acha que é prudente deixar os militares julgarem a si mesmos?
Luis Moreno Ocampo – O filme mostra isso. Os militares tinham julgado a si mesmos. Mas, como o meu ponto de vista mostra, os militares têm lealdade. Esse é o principal valor militar. É um grande valor, mas é complicado quando você tem que investigar a si mesmo.
De qualquer forma, acredito que devemos ir além disso. Os militares são importantes, mas a coisa boa deles é que seguem instruções. Então, o presidente Lula, o comandante, vai controlar o exército. O problema são os líderes políticos. O que vai acontecer com eles? Ainda há líderes políticos apoiando o 8 de Janeiro? Esse é o maior problema, para mim, e vocês devem focar nisso.
g1- O grande trabalho de vocês parece ter sido a coleta de provas. Vocês conseguiram comprovar o crime de ataque à democracia. Como fazer isso, num caso como o brasileiro atual, e o que deveria ser seguido?
Luis Moreno Ocampo – É um caso diferente. No Brasil, minha sugestão é seguir o dinheiro e seguir as comunicações. Quem estava financiando o 8 de Janeiro? Quem estava apoiando politicamente o movimento?
Uma coisa que eu gosto do nosso filme não é só o que aconteceu no tribunal, mas também com as famílias. Se você entende as famílias, você entende o problema. Pode-se entrevistar as famílias das pessoas que foram a Brasília. As pessoas podem dar informações sobre quem os chamou, quem financiou. Eles podem ser fontes de informações.
g1 – Você falou que seu tio, que era militar, morreu sem falar com você. Mas como é o grupo da sua família hoje? Ainda há gente contra o seu julgamento?
Luis Moreno Ocampo – Não. Nessa questão da ditadura militar meu país chegou a um consenso. Meu tio e minha mãe foram contra mim, mas meus primos agora me apoiam. Não há distinção agora. Para a nova geração isso é claro. Por isso eu gosto desse filme falar com os jovens. O Santiago Mitre tem 42 anos, o Peter Lanzani tem 32, então a nova geração quis contar essa história, gosto muito disso.
Mas é engraçado, porque há tanto consenso sobre a democracia, que a nova geração pensa que ela é normal. Não. A democracia não é o normal, não é como o ar, você tem que lugar por ela, tem que protegê-la. Essa é a mensagem. Não só para a Argentina. Para o Brasil, Espanha, EUA, todo mundo.
g1 – As famílias aqui estão divididas. Até hoje muitas pessoas defendem a ditadura. Para nós é até estranho ver esse consenso aí.
Luis Moreno Ocampo – É similar à Espanha. A falta de investigação nos anos 80 teve consequências, não só no passado, a divisão continua no seu espírito.
Eu estou dando uma aula na escola de cinema, porque eu acredito que o importante não seja só ganhar casos no tribunal, mas a memória sobre o caso no tribunal. A palavra Holocausto aparece não apenas depois do julgamento de Nuremberg. Aparece depois do filme sobre o julgamento de Nuremberg. O julgamento aconteceu em 1945. O filme aconteceu em 1961. E depois disso a palavra Holocausto com letra maiúscula aparece.
E então a minissérie com Meryl Streep chamada “Holocausto” [1978] transformou a palavra em uma mensagem clara, escrita na pedra. Então não é só o fato, o julgamento em si, mas a memória do julgamento e sua comunicação que transforma a sociedade. E é nisso que o filme pode ajudar, não só a Argentina e o Brasil.
g1 – No Brasil há casos recentes da Operação Lava Jato em que servidores da justiça tornaram políticos. Há uma tentação de entrar na política depois de um caso grande assim?
Luis Moreno Ocampo – Para mim não. De jeito nenhum. Eu aprendi sobre política porque eu fui atuar em julgamentos de corrupção. Mas eu vejo como é complicado ser político. Então eu prefiro ficar de fora do jogo político.
Depois que eu terminei meu período como promotor na Argentina, e eu vi que a transição para a democracia tinha sido feita, eu deixei meu cargo e tive meu escritório por 10 anos. Trabalhei contra a corrupção para grandes empresas e defendi pessoas como o Maradona. Mas depois eu fui ensinar nas universidades de Stanford e Harvard, e depois me chamaram para ser o promotor chefe na Corte Criminal Internacional em Haia.
Eu pensava que o Julgamento das Juntas (como ficou conhecido o caso de 1985) era a maior coisa que eu tinha feito. Mas aí ele virou só o treinamento para a Corte Criminal Internacional. Então eu fiquei nove anos, e terminei agora. Fui ensinar em Harvard e Los Angeles sobre filmes, justiça e guerra.
Mas o juiz espanhol Baltasar Garzón foi para a vida política e teve problemas. Voltou a ser juiz. Na Itália alguns promotores foram para a política e depois voltaram. É complicado. É um jogo diferente. Não acho que precisamos fazê-lo.
O problema é que a atividade judicial é uma coisa. Mas aí você precisa dos líderes políticos para colocar as leis em prática, e isso é mais complicado, porque na vida política você tem que fazer acordos. Tive minha vida como promotor, aprendi muito sobre a vida política. Eu gosto de explicar isso, mas não gostaria de ser político.
Foto de 2016: o então procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno-Ocampo, chega em coletiva de imprensa em Haia, na Holanda, para