E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva à sua infância de viagens à Maceió e a preocupação com o possível afundamento de uma área onde era explorada uma mina pela empresa Braskem, uma catástrofe que vem sendo anunciada.
“O risco iminente de colapso de uma mina da Braskem no bairro de Mutange, em Maceió, é apenas mais um exemplo entre outros a confirmar uma espúria teoria: no Brasil o buraco é mais embaixo. Que se neguem as evidências o quanto for possível até que a catástrofe se anuncie.
E o que é pior, o que está prestes a ocorrer em Maceió é pouco quando comparado com as consequências nefastas do aquecimento global. Aí estaremos quase que literalmente fritos.
Seja como for, o caso mexeu com meus brios. As lembranças de Alagoas, que me pareciam tão bem sedimentadas, vieram à tona depois da notícia que li na imprensa.
Eu me lembro de algo que me parecia uma ponte. Uma estrutura metálica que ia até ao mar em uma praia bonita mas pouquíssimo frequentada em Maceió. Ia-se a pé. Saindo da casa do tio Paulo, bastava seguir a direção oposta a quem vai para a praia da Avenida. Andava-se pouco para quem tem pés ligeiros dando de cara com o mar. Encantavam-me a solidão, o vento, a própria beleza do litoral de Alagoas. Eu ficava imaginando cá com meus botões por que raios as pessoas não moravam por ali.
Vindo do Rio, eu tinha a ideia de que, quanto mais perto da praia, mais valorizado é o preço do terreno, que morar perto da praia era coisa de rico. Eu só via por ali casas simples, de gente simples e morena.
Eu fui a Maceió tantas vezes na minha infância que a cidade faz parte de mim. Posso passar tardes inteiras espantando moscas e contando histórias das viagens. A grande admiração pela inusitada combinação de cores da Viação São Geraldo vem daí. O amor que eu sinto pelas linhas aéreas Transbrasil (à frente do seu tempo, a cauda do avião era pintada com as cores do arco-íris, muito LGBTQI+!) vem daí. O diacho do cofre, do tamanho de uma geladeira, na rua dos Timbiras está suspenso no ar desde sempre. Morria de vontade de saber o que tinha dentro. Nunca soube.
Eu não sei se meu pai sabia que aquelas viagens me marcariam fundo. Eu não sei se ele sabia o bem que me fez para o cinema dos meus olhos.
Minha mãe religiosamente costumava viajar para Maceió em dezembro, depois do Natal. Chegava essa época e era um tal de comprar passagem, sempre procurando qual era a melhor oferta. Na época da pandemia, ela estava lá sozinha.
Meu irmão deixou de lado todos os seus afazeres e foi para Maceió. Ele sabia que uma pessoa como ela, que viu poucas e boas, não teria paciência de colocar máscaras a todo instante ou de lavar cada item que fosse comprado no mercado.
Se o que meu irmão fez não foi um gesto de amor, eu não sei mais o que é. É claro, por termos sido criados assim, ele humilde e orgulhamente dirá que fez apenas o que tinha que ser feito. E por lá ficaram até ser possível voltar para o Rio, com a matriarca devidamente vacinada.
Desde a pandemia, ele fez mais uma viagem para Maceió, eu acho. Ele acabou conhecendo a cidade muito mais que eu e é atualmente a pessoa em que mais confio para ouvir falar de Maceió. Foi ele quem me disse sobre o crescimento da cidade, sobre os prédios altos construídos na orla. Falou-me inclusive de uma torre altíssima lá para as bandas de Cruz das Almas.
Quando enviei a meu irmão notícias da última semana sobre o caso “sal-gema”, ele me disse que o que ocorria era capaz de chegar até as bandas do Farol, bairro de classe média. O pessoal da tia Lourdes estava um tanto apreensivo com as notícias. Isto quer dizer que o Farol, bairro vizinho do Mutange, agora passa a correr o risco de desaparecer?
Iminente quer dizer algo que está próximo de acontecer. Acontecer, por sua vez, é diferente de ocorrer. Tragédia anunciada não acontece, ocorre.
Alagoas não tem esse nome à toa. Há muita água de muitas lagoas por lá, o que torna o solo mais alagadiço, instável. Uma cratera do tamanho de um Maracanã está prestes a se abrir para que parte de um bairro seja engolido.
Exagero meu? Talvez. E quem vai pagar a conta?”
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Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.