Não se deve acostumar com o que é ruim

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Por Tuca Munhoz, consultor especializado em acessibilidade

Por muitas e muitas vezes pessoas me abordaram na rua querendo me transmitir alguma mensagem de cura da deficiência, me indicando alguma igreja, no mais das vezes evangélica, mas não sempre, onde eu poderia encontrar a cura, um milagre, e então andar e me livrar da cadeira de rodas.




Estava chegando em casa e subia, andando, a Avenida São João (capital paulista), já no último quarteirão para chegar em casa, quando uma senhora começou andar ao meu lado, na mesma velocidade, e depois de alguns segundos me deu um sonoro bom dia!

Sua voz era forte e límpida. Era uma mulher preta, de aparência simples e sofrida, com uns 60 anos de idade.

Ela começou a puxar conversa e se referiu à minha deficiência. Isso é muito comum. Já passei por momentos assim centenas de vezes na vida e desde minha infância.

Na grande maioria das vezes são pessoas simples e religiosas que tomam essa iniciativa. Também, há muita curiosidade sobre a cadeira de rodas motorizada, e as pessoas sempre ficam impressionadas ao saberem que eu posso andar muitos e muitos quilômetros com ela.

No caso dessa senhora, ela começou a me contar de sua experiência vivenciando uma deficiência temporária. Não entendi bem o que foi, mas me pareceu que ela passou por algum problema grave de saúde.

Ela usou uma descrição dessa experiência que me marcou bastante, disse: “eu fui ao inferno e voltei”.

Disse também que ficou seis meses sem tomar banho, entre outros relatos do sofrimento pelo qual passou nesse período.

Ela insistiu para que eu procurasse modos para me curar da deficiência, e eu contra-argumentava que estava bem assim, que a deficiência não me causava mal e que me considerava um homem feliz e realizado.

Veementemente, ela não aceitava minha argumentação, o que chegou a me deixar contrariado.

Ela insistia que eu devia procurar uma cura, dizendo mesmo que ela poderia me ajudar nisso, que ela teria algum poder para me fazer andar.

Acabamos chegando na portaria de meu prédio e entrei, sem me despedir. Havia ficado bravo com a insistência dela por desconsiderar completamente minhas palavras. Foi quando ela disse a frase que dá título a esta crônica: “não se deve acostumar com o que é ruim”.

Como disse, por muitas e muitas vezes pessoas me abordaram na rua querendo me transmitir alguma mensagem de cura da deficiência, me indicando alguma igreja, no mais das vezes evangélica, mas não sempre, onde eu poderia encontrar a cura, um milagre, e então andar e me livrar da cadeira de rodas.

Como disse também, na esmagadora maioria das vezes são pessoas muito simples que se aproximam de mim com esse tipo de mensagem, mais frequentemente mulheres.

Ainda que haja uma certa impertinência, as pessoas consideram que podem chegar a mim e falarem o que bem entendam, sem ouvirem, ou sem compreenderem a minha opinião, aprendi a aproximação dessas pessoas como um gesto de boa vontade, como uma manifestação do querer bem ao próximo, da não aceitação do que se considera um sofrimento, um mal.

No caso dessa senhora, com a qual caminhei por alguns minutos, me impressionou muito o fato de que ficou muito evidente que a experiência dela com a deficiência foi uma experiência em que a pobreza e a falta de apoios e recursos agravou muito significativamente sua situação, a sua dor.

Por ter me relatado que ficou seis meses sem tomar banho, e que também se alimentou muito precariamente, tornou evidente, para mim, que o grande problema foi muito mais a sua situação de pobreza do que a deficiência.

Me pareceu que, para ela, a pobreza seria uma condição natural, enquanto a deficiência não.

A pobreza seria até mesmo uma condição positiva, a partir de uma concepção cristã que se opõe à riqueza enquanto um distanciamento de Deus.

Seria a deficiência, e a doença, também um distanciamento de Deus?

Escrevo para refletir, e provocar reflexões, sobre essa situação, da conjunção entre deficiência e pobreza. Realmente, para mim, é tranquilo ser uma pessoa com deficiência, os perrengues e os contratempos que sofro são pequenos perto de uma pessoa, com as mesmas condições físicas que as minhas, mas que viva em situação de pobreza, sem acesso aos recursos que eu tenho, sem acesso às informações e à rede de contatos que eu tenho.

Igualmente é o caso das pessoas com deficiência com as quais convivo e com as quais eu exerço o meu ativismo por nossos direitos.

Eu vejo, e meus pares, a pobreza de longe. Nós vemos a violência e a violação dos direitos das pessoas com deficiência de longe, não é uma situação cotidiana nossa.

Tenho procurado discutir, e compreender mais sobre o “atravessamento” da deficiência com as questões de gênero, raça, orientação sexual e outros. Mas, me sinto distante dessas temáticas, ainda que reconhecendo a importância delas.

Entendo que as discussões para a emancipação das pessoas com deficiência têm que se dar considerando necessariamente as condições econômicas em que vivem as pessoas, a absoluta falta de acesso aos direitos mais básicos, como os relatados por essa senhora, sem higiene e sem alimentação.

Durante nossa caminhada, ela me contou que mantém uma horta nos baixos de um viaduto aqui perto, e que colhe legumes muito bonitos. Vou visitá-la.

Não se deve acostumar com o que é ruim. Para ninguém!

Tuca Munhoz, consultor especializado em acessibilidade. Foi assessor na empresa São Paulo Transportes – SPTRANS para assuntos de mobilidade e acessibilidade para as pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida

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