Por Lilian Venturini, Nexo –
Último dado nacional sobre essa parcela da população data de 2008, e apenas em 2020 números atualizados devem ser conhecidos. ‘Invisibilidade’ prejudica formulação de políticas eficientes
Quem vive em calçadas ou sob viadutos atualmente é quase tão invisível para o poder público quanto para quem passa apressado pelas ruas. A maioria dos municípios brasileiros, 77,3% do total, não tem pesquisas específicas, e também não existe um levantamento nacional recente sobre essas pessoas.
A falta desses dados interfere diretamente na elaboração de políticas sociais mais eficientes para essa população, como observa estudo feito pelo pesquisador Marco Antonio Carvalho Natalino, especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
A última pesquisa nacional data de 2008. Ela foi coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, mas envolveu apenas 71 cidades com mais de 300 mil habitantes e as capitais – com exceção de Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Porto Alegre, que já tinham levantamentos próprios.
A pesquisa apontou 31.922 pessoas vivendo em calçadas, praças, viadutos ou pernoitando em albergues ou instituições religiosas. “Passados oito anos, seus resultados começam a não mais refletir a dinâmica desta população no território”, afirma o pesquisador.
A pedido de órgãos federais, o IBGE vai incluir esse público no Censo, mas apenas no levantamento de 2020.
Ausência de metodologia é justificativa
O estudo elaborado por Natalino aponta como explicações para a ausência de dados desde a falta de prioridade por parte de administrações locais até dificuldades metodológicas.
Pesquisas envolvendo população nômade exigem métodos e padrões estatísticos diferentes de levantamentos domiciliares, como o Censo. É preciso, por exemplo, evitar que a mesma pessoa seja contada mais de uma vez, o que requer conhecimento mais detalhado da região por parte do pesquisador.
Outra dificuldade é falta de metodologia padronizada para esse tipo de pesquisa, em especial nas cidades maiores. Métodos unificados, se compartilhados entre cidades, poderão resultar em uma projeção mais confiável das estimativas nacionais.
O Ministério do Desenvolvimento Social usa atualmente como referência dados coletados pelas secretarias municipais. No entanto, ao menos até 2015, entre as 5.570 cidades brasileiras, 4.309 declararam não ter levantamentos ou dados sobre essa população.
Metrópoles e capitais têm cobertura melhor, mas essa também não alcança 100% das localidades. A Prefeitura de São Paulo faz levantamentos a cada três anos, realizados pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A versão mais recente foi divulgada em abril de 2016 e identificou 15.905 pessoas vivendo em situação de rua na capital paulista.
“A geração das informações acaba vindo junto com a construção de políticas públicas. [A implantação de] consultórios de rua, por exemplo, é uma iniciativa recente e sobre a qual se tem pouco dados. Pelo pouco que se sabe é possível dizer que a saúde para esse público ainda está muito atrasada. Quando se vai para área de moradia, a situação é pior ainda”
Marco Antonio Carvalho Natalino
pesquisador do Ipea
Natalino afirma que o desconhecimento do poder público tem consequências até mesmo para a falta de documentação mínima necessária por parte da população em situação de rua, o que dificulta o acesso dessas pessoas a serviços e benefícios sociais assegurados pelo Estado.
Maioria está no Sudeste
Com base nos dados de 1.924 municípios, Natalino fez um cálculo estimado da população em situação de rua no Brasil. Ele considerou fatores como o número total de habitantes, índices sociais e a proximidade da cidade de grandes centros urbanos – quanto maior o município, maior a concentração dessa população.
101.854
era o número de pessoas em situação de rua no Brasil em 2015, segundo estimativa de pesquisador do Ipea
De acordo com o pesquisador, este levantamento, no entanto, não reflete de forma precisa a situação das cidades. Primeiro porque muitos não têm pesquisas próprias e, segundo, porque as metodologias usadas pelos municípios são diferentes, o que pode resultar em variações no resultado final.
A despeito da imprecisão, os números permitem afirmar que a concentração da população em situação de rua é maior nas grandes cidades. Do total estimado, 77% está em municípios com mais de 100 mil habitantes.
A correlação entre tamanho das cidades e concentração de pessoas vivendo nas ruas fica mais visível quando se observa a divisão pelas regiões do Brasil.
QUAL O RETRATO NAS REGIÕES
O Sudeste, que abriga as três maiores regiões metropolitanas do país (São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), concentra 48,9% da população em situação de rua. Já na região Norte, o percentual cai para 4,3%.
A estimativa calculada por Natalino é compatível com a expectativa do próprio pesquisador e de representantes de órgãos ligados à assistência social. “Esse número é muito [grande] e é preciso fazer algo”, afirma ele. Na entrevista abaixo, o pesquisador fala sobre o que essa população diz sobre a realidade social brasileira.
A realidade das pessoas em situação de rua normalmente desperta pouco interesse na opinião pública. Isso interfere?
MARCO ANTONIO CARVALHO NATALINO Alguns públicos vulneráveis têm esse problema da invisibilidade. Historicamente essa discussão girou muito em torno dos indígenas, depois dos negros. Com certeza a população em situação de rua é um dos exemplos mais extremos dessa invisibilidade.
As pessoas passam nas ruas e não as veem. Isso se reflete nas políticas públicas. Os municípios não olham para essa população como um público para o qual se deva dar alguma prioridade. E essa prioridade não se trata apenas de assistência social, passa também pela moradia e saúde.
O que exatamente significa haver 101 mil moradores em situação de rua em um país como o Brasil?
MARCO ANTONIO CARVALHO NATALINO A população de rua às vezes é vista como um número pequeno (comparado à população total), mas acho que é uma forma equivocada de analisar essa questão. Têm determinados públicos que são tipos extremos.
Eles são exemplos de quanto nossa sociedade está indo para o caminho errado, uma espécie de termômetro. Para alguém chegar à situação de rua, ela passou por tantas privações, não só de renda. Quando se tem uma população de rua muito grande isso diz algo muito maior sobre a nossa sociedade.