Naquela mesa de discórdia: um bela música em nome do pai

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Relação problemática entre pai e filho(a), mãe e filha(o) quem nunca teve ou desconhece alguma que atire a primeira pedra ou a primeira música. Para falar sobre isso, dando prosseguimento à série “Então, foi Assim?”, na qual o Bem Blogado reproduz textos da coleção literária de autoria do produtor multimídia, pesquisador, radialista, escritor e divulgador da música brasileira Ruy Godinho, vamos conhecer como foi feita a música Naquela mesa.” (WLA).

De filho para pai: a música foi feita por Sergio Bitencourt em homenagem póstuma a Jacob do Bandolim. Como diz Ruy Godinho,quem imaginava que a motivação para a criação de Naquela mesa havia sido a saudade de uma relação de plena harmonia e prazeroso companheirismo de pai pra filho, enganou-se profundamente. A verdadeira história é repleta de disputas, vaidade e desarmonia. E vai ser desvendada agora, com o devido respeito à memória do autor e do homenageado.”

Sergio Bittencourt[1] tinha como principal atividade o jornalismo. Escreveu para o Correio da Manhã, O Globo, O Fluminense e para a revista Amiga. Apresentou programas radiofônicos nas rádios Capital, Carioca, Nacional e Mauá, no Rio de Janeiro; e na Rádio Mulher, em São Paulo. Foi jurado dos programas de televisão Um Instante Maestro!, A Grande Chance e Flávio Cavalcanti, além de ter sido apresentador de um programa na Tevê Tupi. Provavelmente por essa razão e pelo fato de haver desencarnado com apenas trinta e oito anos de idade, não tenha tido uma alta produtividade como compositor musical.




Porém, na relação de pouco mais de trinta músicas que criou e que foram gravadas, estão, pelo menos, três obras-primas. Uma delas é a belíssima Modinha, defendida e gravada por Taiguara, vencedora do Festival O Brasil Canta o Rio, em 1968, regravada posteriormente por Nelson Gonçalves, Waleska e Tito Madi: Olho a rosa na janela/sonho um sonho pequenino/se eu pudesse ser menino/eu roubava esta rosa/e ofertava todo prosa/à primeira namorada…

A outra é Eu quero, gravada originalmente por Cláudio Faissal e depois por Carlos José, Nelson Gonçalves, Elymar Santos e Waleska, que foi sua principal intérprete: Eu quero que você me ame/que você me chame/quando precisar/eu quero saber ir embora/sem ter dia e hora/pra poder voltar…

E a terceira foi o emocionante choro Naquela mesa, uma homenagem póstuma ao pai, o genial Jacob Pick Bittencourt, mais conhecido como Jacob do Bandolim, gravada por Elizeth Cardoso, com participação especial do autor. E posteriormente registrada por Nelson Gonçalves, Erlon Chaves, Paul Mauriat e incorporada definitivamente ao repertório de seresteiros de todo o Brasil.

Podemos afirmar que as músicas de Sergio tinham fortes componentes autobiográficos. Compôs Modinha para Nem, um de seus conturbados amores; Eu quero, para uma paixão secreta; Naquela mesa, para o pai; e Acorda, Alice, música de protesto contra a ditadura, e por isso censurada, gravada por Waleska, tão logo fora liberada.

Provavelmente pelas dificuldades de temperamento, tenha tido poucas parcerias: Canoa (c/ Rildo Hora), Fase (c/ Elizabeth), O amigo (c/ Roberto Quartin), Pra saber o que é voltar (c/ Nonato Buzar), Linda, Silêncio, Tá bom, deixa, e Vim (c/ Eduardo Souto Neto).

Quem imaginava que a motivação para a criação de Naquela mesa havia sido a saudade de uma relação de plena harmonia e prazeroso companheirismo de pai pra filho, enganou-se profundamente. A verdadeira história é repleta de disputas, vaidade e desarmonia. E vai ser desvendada agora, com o devido respeito à memória do autor e do homenageado.

Sergio Bittencourt nasceu hemofílico, doença que fazia questão de esconder do grande público. Em razão disso, foi superprotegido pelos pais. Como consequência, forjou um caráter arrogante, recalcado, inseguro, e por isso, altamente polêmico. Não tinha meio-termo: ou as pessoas o amavam ou o odiavam.

Por trás do artista extremamente talentoso, especialmente sensível, radicalmente sentimental, e pontualmente bondoso, existia um cara que detestava cumprir ordens e que não havia aprendido a perder, o que o tornava antipático e sarcástico.

Paulo Roberto de Oliveira (2005), seu sócio e um de seus maiores amigos, ilustra, com riqueza de detalhes, diversos fatos que testemunhou.

Sergio não hesitava em usar sua fama como apresentador de programas de televisão de alcance nacional para subornar e conseguir seus objetivos, inclusive algumas reportagens e a liberação, por exemplo, do pagamento de impostos por excesso de cota de compras na Zona Franca de Manaus. Regras e leis que podiam ser burladas pela esperteza ou em troca de um disco autografado, que ele fazia questão de alardear.

Paulo Roberto revela que nos festivais de música, tão em moda nos anos de 1960 e 1970, em que apresentava as suas composições, a vaia surgia tão logo seu nome era citado. “Às vezes, saía aplaudido em razão da beleza de suas músicas”, como foi o caso de Modinha, que o consagrou como compositor e que lançou Taiguara como cantor.

Sergio Bittencourt foi um homem cheio de desafios a vencer. E o principal deles, além das sequelas da doença, foi o fato de ter nascido filho de Jacob do Bandolim. Atrás desse genial bandolinista e compositor, autor de Noites cariocas, Vibrações e Doce de coco[2], clássicos do repertório chorístico, existia um homem intolerante, irascível, chato e extremamente exigente, principalmente no âmbito familiar e musical.

É conhecido o seu rigor nos ensaios e a sua fama nos saraus, onde o silêncio durante a execução de uma música era um ato de contrição. Também é conhecida a sua implicância contra o popular compositor e cavaquinhista Waldir Azevedo e as bordoadas que deu no bandolinista pernambucano Luperce Miranda.

Pois, bem. Foi com o “gênio” desse gênio que o compositor e jornalista foi obrigado a conviver por longos anos. Paulo Roberto, que presenciou os fatos, conta, a bem da verdade, que Jacob e Sergio não se falavam.

A “convivência pacífica” era combinada da seguinte maneira: cada um só saía do seu quarto quando o outro estivesse ausente; quando um sentava-se à mesa, o outro aguardava no quarto.

Relata ainda que sabia que Sergio sempre teve uma paixão na vida: o pai. Jacob sempre foi seu ídolo como músico. Apenas não conseguia conviver com ele. Os dois não se cruzavam porque ambos tinham a mesma personalidade, o mesmo gênio. Com a diferença de que a vaidade de Jacob não admitia nunca que dentro de sua casa pudesse ter alguém com tanto talento quanto ele.

Na apresentação de Modinha, durante o festival, o cantor Taiguara fora acompanhado pelo conjunto Época de Ouro, com Jacob no bandolim. Como a música foi vencedora e gerou repercussão nacional para seu autor, Jacob se recusava a ser reconhecido apenas como o “pai de Sergio Bittencourt”. Para a vaidade e o narcisismo dele, isso era a morte.

Aquele filho que ele preconizou que seria o “jornaleiro da família”, além de haver se tornado um compositor consagrado, escrevia num dos principais jornais do país.

O primeiro lugar para Modinha teria sido a gota d’água. Se a relação dos dois era péssima, passara a insustentável. Jacob cortou totalmente a relação com o filho; tanto que, quando desencarnou em 1969, eles não se falavam.

Paulo Roberto ouviu muitas vezes Jacob criticar o filho, mas jamais ouviu críticas de Sergio ao pai. “Ele reclamava apenas da vaidade, do narcisismo e do quanto o pai era injusto com ele.”

Paulo teve o privilégio de ser a primeira pessoa a ouvir Naquela mesa. “Estávamos no Bierklause, boate famosa da década de 1970. Havia pouco tempo que Jacob do Bandolim havia falecido. E Sergio não falava no assunto nunca. Eu sabia que ele não falava por fuga, porque iria se emocionar. Eu tinha a certeza que as lembranças, as frustrações e a dor estavam presentes nele. Sempre respeitei o silêncio que guardava. Nós nos despedimos. Eu fui pra minha casa, na Tijuca; ele, para a dele, no Leblon. Ao chegar a casa, o telefone toca insistentemente. Era madrugada. Atendi e, do outro lado da linha, ele falou: ‘Escuta e vê se você gosta’.

Cantou Naquela mesa pra eu ouvir. Fiquei espantado pela emoção e poesia da letra e pela beleza da linha melódica. Mais espantado ainda com o tempo em que ele fez a música: de Copacabana até o Leblon. Menos de meia hora.

Depois que me mostrou a música, Sergio falou o seguinte: ‘O velho vai ficar puto da vida lá em cima, mas eu vou ganhar dinheiro à custa dele’. No dia seguinte, ele mostrou ao Lourival Marques, da Rádio Nacional e lá eles gravaram uma fita demo.”

 Naquela mesa foi gravada diversas vezes pela Divina, Elizeth Cardoso, inclusive no LP Preciso Aprender a Ser Só (Copacabana, 1972), registro que contou com a participação do autor. E, posteriormente, por Erlon Chaves e Paul Mauriat, no LP As Dez Canções Medalha de Ouro (Philips, 1973), e por Nelson Gonçalves, no LP Passado e Presente (RCA Victor, 1974).

Em sua participação na gravação original, Sergio Bittencourt se emociona e não consegue cantar o último verso: A saudade dele está doendo em mim.  “Eu estava no estúdio nesse dia e vi quando ele embargou a voz e chorou nesse final”, revela ainda Paulo Roberto de Oliveira em seu comovente livro.

A essa altura do irreversível processo de desenvolvimento universal, pai e filho já devem ter tido um reencontro, uma nova oportunidade de reconciliação e harmonização.

https://www.youtube.com/watch?v=W2lsgOZ-PLU

 

Naquela mesa

(Sergio Bittencourt)

Naquela mesa ele sentava sempre

E me dizia sempre o que é viver melhor

Naquela mesa ele contava histórias

Que hoje na memória eu guardo e sei de cor

Naquela mesa ele juntava gente

E contava contente o que fez de manhã

E nos seus olhos era tanto brilho

Que mais que seu filho

Eu fiquei seu fã

Eu não sabia que doía tanto

Uma mesa num canto, uma casa e um jardim

Se eu soubesse o quanto dói a vida

Essa dor tão doída, não doía assim

Agora resta uma mesa na sala

E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa tá faltando ele

E a saudade dele tá doendo em mim

Naquela mesa tá faltando ele

E a saudade dele tá doendo em mim

 

[1] Sergio Bittencourt 3/1/1941 Rio de Janeiro/RJ 9/7/1979 Rio de Janeiro/RJ.

[2] História contada em outro capítulo deste Volume.

 

Foto: Luiz Clementino

livros disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br

 

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