Naquela tarde de maio – Parte 2

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 E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, traz aqui a segunda parte de crônicas sobre os motivos de que considera maio um mês cruel, recordando a passagem do seu pai. Eu, Washington, editor “pitaqueiro”, acrescento para a lista a passagem recente no 13 de maio de Pepe Mujica.

Vento de raio
Rainha de maio
Estrela cadente




Chegou de repente
O fim da viagem
Agora já não dá mais
Pra voltar atrás

Rainha de maio
Valeu o teu pique
Apenas para chover
No meu pique-nique

(Trecho de Vento de Maio, de Marcio Borges, Lô Borges e Telo Borges)

“Abril é mais cruel dos meses…”, é assim que o poeta T.S. Eliot inicia o seu “Terra desolada”, poema cheio de reentrâncias, de misturas, de reverberações místicas. Entretanto, com todo respeito a T.S.Eliot, para mim maio foi muito mais cruel que abril. Quis o destino que meu pai nascesse em um 16 de maio e morresse em um 23 de maio. Não há como esquecer. Este ano faz nove anos do falecimento do meu pai, Cícero Romeiro Batista. É certo que muitas lembranças vão se apagando enquanto outras teimosamente permanecem ou se misturam a outros eventos, formando uma colcha de retalhos difícil de descoser. Muito do que escrevo é uma maneira de ler as inscrições contidas nela.


Em 24 de maio de 2016, enterramos meu pai, conforme expressamente pedido por ele, em um jazigo de aluguel no cemitério São João Batista, em Botafogo. Depois de três anos, cremamos seus restos mortais e espalhamos suas cinzas sob os pés de uma árvore na Quinta da Boa Vista em uma operação que não deixa de ter uma parcela de comicidade, ainda que à nossa revelia.


No dia do enterro garoava. Tiraram-lhe a barba ainda no hospital. O que era um protocolo do CTI era para mim quase como desfigurá-lo. Não gostei. Lembro que ele agüentou estoicamente o quanto pode, mas desconfio que quando ele percebeu que não dava mais por ele se acabava logo aquele jogo de xadrez entre ele e o senhor Morte.


Meu pai não era um homem triste. Nunca foi. Sua ascensão social, como a de muitos em seu tempo, era fruto de um pequeno mas decisivo surto de desenvolvimento do país, que teve necessidade de ampliar seus quadros técnico-burocráticos mais ou menos em meados dos Anos 60.


Muito provavelmente ele foi o primeiro de sua família a obter diploma de nível superior, tendo-se graduado em ciências contábeis. Veio para o Sul-Maravilha no início da década de 1970 e aqui ficou. Trouxe a tiracolo minha mãe e eu. Meu irmão nasceu depois, já no Rio de Janeiro em 1975.


Aposentou-se na Petrobrás como técnico em contabilidade e, para não ficar parado, foi estudar psicologia e acabou chegando à psicanálise. Meu pai terminou a vida como psicanalista, com consultório e tudo, o que era tão inacreditável quanto um bancário virar cowboy: é ou não é muito difícil para alguém da área de exatas sistematizar o que é mais fugidio na vida, isto é, o discurso com suas mais de mil entradas e saídas e desvios? Enfim, digamos de maneira florida: trocar balancetes por Lacan deve ter sido algo muito desafiador para ele.


No dia do enterro, conheci três pacientes suas, que choraram mais do que a viúva. Meu pai era um nordestino de boa cepa, tinha boa escuta. Ele vinha de um tempo em que as pessoas conversavam mais, e só trocavam mensagens por cartas ou telegramas; tempos em que as pessoas iam tomar “fresca” na calçada para fugir do calor;, tempos em que se molhava a palavra com cachaça; enfim talvez uns tempos mais de cultura oral do que propriamente letrada.


Talvez isso explique que de quando em quando meu pai proferisse provérbios, máximas, aforismos, tais como “Barriga cheia, goiaba tem bicho”, muito usada por ele para se referir àqueles que, quando saciados, se tornam donos de um paladar difícil de agradar. Ou aquela outra: “Muito riso é sinal de pouco ciso”, que eu entendia o ciso como o dente que representa a idade da maturidade.


Mas rir era sempre um bom remédio. Meu pai dava boas risadas devido à minha cabeça de vento. Ele quase rolou de rir quando eu lhe contei que fui fazer uma prova em Diamantina, Minas Gerais, mas que, por ter trocado as datas, acabei por chegar uns dois meses antes da prova ocorrer.


Sinto falta desta risada espontânea. Se ele soubesse que eu continuo a dar mancadas, algumas delas homéricas, que fiz das mancadas matéria-prima para alguns dos meus escritos, talvez ele sorrisse por trás da barba, que é a imagem que faço dele como se vivo estivesse. É, pai, é melhor por as barbas de molho…


Deixo para os leitores um sonetilho com o seguinte pressuposto: quando era pequeno, meu pai comprou dois robôs iguais que davam cambalhotas. Um era para mim; outro, para meu irmão. Lembro-me de que as pilhas ficavam nos pés dos robôs e que eram grandes, enormes. Não é que a vida é meio como dar cambalhotas?

SONETO IN MEMORIAM (Para Chico e Cecília)

No fundo eu ainda sou uma criança
Quero o robô que dá cambalhotas
O campeão da primeira infância
Foi pro trabalho, mais tarde volta

Da vida adulta tenho implicância
Até parece que ela nasceu torta
Quem é do sonho de sonhar não cansa
Eu, na varanda, espero abrir a porta

Meus dois pequenos não terão lembranças?
Meus dois pequenos não ouvirão a história?

À medida que o enredo avança
O burro velho que sou não aguenta e chora:
Como, se ao chorar, se preenchesse a vacância
Ou se me confortasse: ele ainda não foi embora

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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